Saltar para o conteúdo

A Luneta Mágica/IV/XIII

Wikisource, a biblioteca livre


Um mês inteiro correu para mim sempre em gozos da visão do bem em todos e em toda parte.

Mas, eu o confesso, a própria visão do bem não é isenta de inconvenientes, e a cada dia que passava, alguma nova contrariedade vinha perturbar a doce vida que eu vivia.

Desejando muito casar-me, ter por companheira e sócia na fortuna amiga ou adversa, nos risos e no pranto, uma mulher bela e amável, eu sentia uma barreira indestrutível opondo-se, tornando impraticável a realização desse desejo.

Do mesmo modo que me julgo com o direito de exigir da mulher que me aceitasse por esposo fidelidade absoluta, coração meu só, amor sem fingimento, assim também quero respeitar iguais direitos naquela que me aceitar por marido, nem admito que seja pura e abençoada pelo céu a minha união com a noiva que eu levar ao altar, se ela tiver um pensamento para outro homem, e se eu tiver um pensamento amoroso para outra mulher.

Ora o que me está acontecendo é que, a pesar meu, eu amo Anica, Esmeralda, Nicota, e amo ainda com o mesmo ardor mais trinta jovens senhoras, que tenho estudado com a visão do bem!

Dizem que com uma paixão mata-se outra: é engano! Eu já me abraso em trinta e três paixões, e creio que irei além.

E o que mais me penaliza, não é o meu tormento, este doce veneno trinta e três vezes multiplicado, e a dor, a desconsolação ou a falsa esperança dessas trinta e três vitimas da minha sensibilidade esquisita; pois que pela visão do bem tenho reconhecido que cada uma delas também me ama, que todas elas também estão apaixonadas por mim!

Urgido, atraído por tantos amores, vivo como às tontas a correr pela cidade para pagar tributos de amor e adoração; mas se em toda parte tenho enlevos, tenho em toda parte saudades...

Neste mês já fui doze vezes a casa de Esmeralda, que me recebe sempre risonha e se despede de mim com uns ares que aos três primeiros minutos de fixidade da minha luneta me parecem de inexplicável admiração, e que logo depois a visão do bem me explica, que são de profunda melancolia, e de pungentes remorsos. O certo é que nas minhas doze visitas, o meu amor tem sido exclusivamente platônico, e a conversação que alimento sempre cheia de lições de virtude, e de suaves esperanças de regeneração moral pelo sincero e completo arrependimento do passado.

Esmeralda com a sua reputação de interesseira, e arruinadora de quantos a freqüentam, ainda não me impôs, nem sequer me pediu a mais insignificante despesa; quis uma vez fazer-lhe presente de uma jóia, e ela, coitadinha! respondeu-me quase chorando.

— Não lha mereço; eu sou vil, e indigna da sua bondade; se lhe é grato obsequiar-me, assine alguma quantia nesta subscrição destinada a salvar da miséria uma numerosa família.

E apresentou-me um papel, no qual achei muitos nomes, e alguns de pessoas consideráveis, que tinham contribuído com seus donativos.

Assinei e dei o dobro da maior quantia que vi subscrita.

Nobre e caridosa Esmeralda! as pobres contavam tanto com ela, que ate hoje tenho-lhe encontrado na mesa da sala mais oito subscrições para obras de misericórdia, para as quais também contribuí, como pude, a despeito da resistência, e dos protestos dessa moça tão mal julgada, dessa Madalena suave, que, eu o espero, o arrependimento há de purificar.

As subscrições têm me custado pouco mais de um conto de réis, de que fiz entrega a Esmeralda, e estou perfeitamente seguro de que ela não desviou um real do destino a que se dedicavam as quantias assinadas.

A Esmeralda é o gênio do bem. Um amigo, sem dúvida de caráter suspeitoso, procurou fazer-me acreditar que a infeliz rapariga zombava de mim, explorava a minha inexperiência, e que as subscrições eram falsas, e não passavam de velhacos e rudes laços armados ao meu dinheiro. Respondi a este aviso com o sorrir de quem abe o que faz, e como procede. Que me importam suspeitas vãs?... A visão do bem me da certeza de que Esmeralda preferiria morrer de fome a tomar para compra de seu pão a menor das quantias dadas pelos subscritores beneficentes.

Juro que o meu dinheiro foi religiosamente empregado em socorro da miséria e da orfandade.