A Mandinga/II
Elesbão Soares, apesar de não ser criança, pois já contava os seus cinqüenta bem passados, era muito amigo de mulheres novas e de vinho velho.
Na suave e descuidade convivência destes dois elementos — mulher e vinho — se lhe foram melando as pequenas economias — que constituiam o seu cabedal.
A tristeza e a filosofia, que são a ciência do pobre, já começavam a torturá-lo.
Ora, realmente, nesse nosso planeta sublunar só é verdadeiramente ridículo o homem que não tem dinheiro. Para o alcançar com limpeza sujeita-se um triste mortal a toda sorte de trabalhos e sacrifícios, canseiras e privações. É um penar do corpo com a alma sempre esmagada por um pensamento único, constante.
O meio mais fácil de chegar a ter dinheiro sem trabalho é um casamento rico.
Muitos tem empregado esse processo com bom êxito. Os exemplos saltam como camarões em terra seca.
Não me lembre quem disse que o homem que deseja casar rico sempre consegue o seu intento.
A questão cifra-se apenas nos seguintes mandamentos:
- Extirpar os escrúpulos da consciência, como quem extrai um dente cariado ou corta um calo que doi.
- Procurar a mulher através de todas as torpezas, como a galinha de Esopo procurava pérolas nos monturos.
- Suportar com paciência evangélica e cara alegre todas as desfeitas, como se tal coisa não acontecesse.
- Insistir no mesmo sistema com preserverança e sempre com a mesma cara, bem escanhoada de toda a sombra de pundonor, até o dia do casório.
A falar a verdade, o nosso herói já trazia a sua ferrada, quando apanhou o leque à porta da sacristia, o tal velhote muito sério, com cara de poucos amigos, também já trazia a pedra no sapato.
O Elesbão não entregou o leque à senhora que o deixara cair, para não dar nas vistas daquela troça de marmanjos, que sempre acompanhavam, e que costumavam escolher a igreja para ostentar os primores de educação.
Mas que o nosso homem já sentia as vísceras engalfinhadas pelos atrativos daquela distinta dama, isso é que não padece dúvida.
Era a tal história da cobra e do sapo.
Elesbão Soares não era verdadeiramente um homem bonito, na singela expressão desta palavra.
Antes pelo contrário.
O nariz parecia um promontório de tão largo e de rugoso que era. A boca era tão rasgada que parecia querer devorar as orelhas.
Para disfarçar estes pequenos defeitos físicos e naturais o nosso homem não poupava despesas.
Ele era a bela cartola de pele de seda.
Ele era a fina camisa engomada a capricho, bem alva, sem nenhuma nódoa.
Ele era a linda gravata de várias matizes, muito sarapintada, com o seu laço artístico.
Ele era a bem esticada sobrecasaca, ornada na boutonniére de um raminho composto de catinga de mulata, amor perfeito e alecrim cheiroso.
Ele era a fresca luva Jouvin cor de telha ou verde garrafa.
Ele era a bem talhada calça de casemira francesa.
Ele era as boas botinas de verniz, número 48, que lhe requeimavam os calos e joanetes, nos dias de sol, daquelas toesas, a que ele, ingenuamente, chamava pés e que vistos de longe pareciam as duas torres da igreja Matriz deitadas no chão e cobertas de couro da Rússia.
O sapateiro que lhe fazia as botinas (só de encomenda) era o Taveira, um ermitão que viveu, in illo tempore, que calçava a Humanidade em virtude da sua profissão, e usava a língua calçada de aço para melhor cortar nas vidas alheias, como quem corta em roupa de francês.
Um belo dia, o Taveira vendeu aloja, bateu a bela plumagem, e se foi a outras plagas, onde não houvesse Elesbão. Tal qual como as andorinhas, com uma única diferença: — foi e não voltou.
E retirou-se a tempo, quando não entisicava.
Não era brincadeira, o ter de fazer botinas daquele calibre a dois pospontos.
Aquilo que era um gastar de cerol, fio e sovela.
Junte-se a isso o trabalhinho de dar a língua constantemente, e me digam se há bofes que resistam.
O nosso Elesbão era homem muito precavido no tamanho da vida.
Quando soube que o Taveira tencionava mudar de terra, e antevendo a dificuldade de conseguir outro igual, tratou logo de comprar a forma de suas botinas, a qual forma é um verdadeiro monumento, de que a nobre e muito distinta diretoria da nossa Biblioteca Pública deve fazer aquisição, ao seu tempo, como início de um museu anexo àquele utilíssimo estabelecimento.
Dissemos que o Elesbão não era bonito, mas também não era tão feio como alguns o queriam pintar.
Dizem que não há formosura sem senões e ele só tinha três: — o nariz, a boca e os pés.
Há outros bípedes que tem muito mais mas como andam saturados de muita petulância e pouca vergonha, ninguém faz o devido reparo.
Assim vai o mundo e o melhor é deixar correr o marfim.
O Caboclo...................................................................................................
O leitor, se és meu amigo, dispensa-me de te fazer o retrato do Caboclo.
Aquilo não era um preto velho; era um verdadeiro orangotango.
Parecia que tinha parte com o Belzebu.
Coçava-se, como um macaco, — e falava só, — como um desesperado.
Conhecia as virtudes de quase todas as ervase raízes, fazia benzeduras que encantavam muita gente boa e sabia de feitiços como um graúdo.
Era um portento, o raio do preto.
Ganhou fama e teve época.
Já contava com uma clientela bem regular, que lá o ia consultar e pedir-lhe remédios para vencer as dificuldades da vida.
E ele a todos acudia com proficiência de um bruto que sabia muito.
Era de ver-se, quando alguma senhora — que ainda há deste gosto — o ia consultar sobre a fidelidade do esposo, que andava arredio do lar doméstico.
O preto ouvia, ouvia as lamentações da pobre mulher, com o aprumo de um professor de ciências naturais, e com os ares de importância que o assunto exigia.
Depois de fingir-se bem compenetrado da gravidade do caso, lançava em um fogareiro com brasa três pedras de sal, três gotas de azeite, três folhas de arruda e três palhinhas em cruzes, como manda a liturgia, e todos estes movimentos acompanhados de tal engrolada de palavras sem nexo, em um idioma completamente desconhecido, o que não parecia linguagem de gente cristã.
Aquilo era com toda certeza a língua do inferno.
E aquela pobre senhora, queda e muda, toda entregue às suas dolorosas suspeitas e amargos pensamentos ali esperava — entre receiosa e crente — à profecia daquela Pitonisa de nova espécie.
Há quem não acredite em bruxedos e feitiços, nem as artimanhas do Boi-Tatá.
Pois que não acreditem, e fazem muito bem. Cada doido com a sua mania.
Nisto as crenças, gostos e cores, não há discussão possível.
Todos tem igual direito, ou as leis que nos regem são falsas, como Judas.
Se não houvesse mau gosto, não se gastava o amarelo.
O nosso Elesbão não era desses. Extremamente chato do intelecto, quando se tratava de ciências. Não via meia polegada adiante do nariz.
Lápara ele as profecias do Caboclo era um evangelho.
Dir-se-ia que o preto velho lhe fizera coisa má, que lhe enguiçara o juizo.
O Caboclo tivera a rara habilidade de comunicar-lhe ao cérebro, que era de cera virgem e bem dura, as mais diabólicas sugestões.
Dizem que é a isto que os teólogos chamam: — possessão demoníaca.
Depois que se encontrara, pela vez primeira, com aquela guapa mocetona da porta da sacristia, o mafarrico tomara conta daquela alma invadida de feitiços e visões.
Não tinha parança nem sossego.
O sono era-lhe sempre povoado de sonhos, umas vezes horrorosos como os fantasmas de Cagliostro; outras, alegres e divertidas, em que ele via a felicidade com todo o seu cortejo de ilusões e esperanças, amor e glória.
Naquela madrugada de junho, em que o deixamos caminho da Várzea, onde morava o Caboclo, um minuano frio cortava que doía — exatamente como as navalhas do meu barbeiro.
Ao dobrar uma esquina, Elesbão tropeçou num vulto que jazia alí, estendido no chão.
O nosso homem deu um pulo para trás, como se estivesse pisado numa serpente, e estacou estarrecido.
Os cabelos enriçavam-lhe, como as piaçavas de uma vassoura usada.
O promontório, — quero dizer, — o nariz tomou proporções desusadas e movimentos insólitos, como se fora abalado por um terremoto.
O sangue esteve — quase, quase, — vai, não vai, — a coalhar-se-lhe nas veias.
Sentiu um nó na garganta, como se o estivessem enforcando pela parte de dentro.
Os olhos esbugalhados saltados das órbitas, seus naturais esconderijos, pareciam querer fugir-lhe da cara e apitar pela polícia.
Causa medo do homem que tem medo!
Imaginou estar adiante de um corpo morto, e já se sentia engasgalhado pela justiça, por suspeita daquele crime.
Assim permaneceu o pobre diabo durante alguns momentos estáticos, com as idéias embrulhadas, sem tomar uma resolução.
Por fim, recobrando o ânimo, fazendo das fraquezas, forças, desceu cautelosamente à calçada, a fim de tomar o meio da rua não tirando os olhos daquele vulto e experimentando na firmeza das pernas, no caso de alguma necessidade imprevista. Quando, — já do meio da rua, — enfrentou com a causa do susto que tivera, o corpo que ele supinha inanimado, moveu-se e erguendo-se à custo dos cotovelos, e uma voz muito sua conhecida lhe disse:
— Ah! É você, amiguinho? Pelas alminhas, dê-me uns cobres para eu ir comer no Mercado, ainda hoje não comi nada, assim Deus me salve. Só bebi um copo d'água e um pouco de café.
Era o Mutuca, devoto sincero e incorrigível ao deus Baco, que ali acamara para ali cozinhar a mona mais pesada de que há memória, e ali jazia naquele engano d'alma ledo e cego que a fortuna não deixa durar muito.
Certamente a caninha era de boa qualidade, pois o tornara impermeável à umidade e ao frio daquela agreste madrugada do mês de junho.
Mas, o que ia fazer Elesbão à casa do Caboclo aquela hora?
Quem era o velhote muito sério e com cara de poucos amigos?
Quem era aquela mocetona, airosa e bela, que deixara cair o leque, por quem o Elesbão se sentira avassalado de cruel paixão?
Mau, amigos leitores se começam com perguntas, estamos arranjados.
Tenham paciência, porque temos pano para mangas.
Ainda agora estamos no princípio, azeitando as asas para o grande vôo acrobático, cheio de muitas reviravoltas, que estamos ensaiando.
Isto vai ser um romance crônico, infindo, como a saudade daquele trovador da Judia de Tomaz Ribeiro.
E, destarte, o leitor fará de conta que é a tal hebréia linda a que se refere a poesia.
Se, tu, meu amigo, já estiveres dormindo, como aconteceu à linda hebréia, o escrivinhador destas linhas se julgará em demasia recompensado, porque elas serão de utilidade pública.
Nestes tempos calamitosos que estamos atravessando, quem pode dormir e cantar é muito feliz.
Quem dorme, esquece; — quem canta, seus males espanta.
O enredo desta peça mágica há de ser tão enredado que ninguém mais o desenredará, nem mesmo que baixe uma pastoral do bispo, aconselhando que se desfaça semelhante embrulhada.
Daqui por diante é provável que comecem a ferver surpresas de fazer arrepiar os cabelos.
Feitiços, bruxedos, incêndios, tempestades, furacões, raios, coriscos, maravilhas, maravilhas, tudo aqui será representado em notas alegres, saltitantes, petulantes, como a música de Offenbach.
De vez em quando, algumas cenas de horror, pintadas a roxo-terra e oca, para não ser tão triste.
A tinta preta só será empregada nos tipos de imprensa, e isto mesmo contra a nossa vontade.
Se pudéssemos, estes trincolhos literários seriam impressos em cores vivas e variadas, como uma iluminação veneziana.
Está hoje muito em moda filiar-se o que se escreve a certas escolas, tais como: realista, positivista, sentimentalista, etc., etc.
Este nosso modesto trabalho não pertence a nenhum destes sistemas. Filia-se simplesmente ao grupo folhetinista, de que ninguém se importa, por ser filho das ervas e do acaso.
Isto vai ser um quadro chinês, visto aos pedacinhos para não cansar.
Adorado leitor, tem resignação e espera, Roma não se fez num dia.
Destes pratinhos serve-se pouco de cada vez, exatamente como o paté de foie gras.
Lembra-te que és pó, e que nós somos três e que em pó te tornaremos a paciência, se tiveres a pachorra de nos acompanhar nesta via láctea de acontecimentos espaventosos, pois já deveis saber que a láctea e a sacra, são as duas maiores vias que se conhecem. Um trabalho de longo fôlego, como este, tem necessariamente de enveredar por um desses caminhos.
Nós somos três.
É um impossível que desta tripeça não saia obra fina e asseiada.
Continua...
- Sátiro Clemente
- Correio Mercantil, 19 de outubro de 1893.