A Mandinga/IV
Atraídos pelos gritos de dor do mísero Elesbão Soares, trovejados numa verdadeira escala ascendente, e pelas bravatas e furibundos panásicos do policial, e não tendo aliás encontrado já os outros meliantes, o comandante e o resto da sua escolta dirigiram-se ao telheiro da cocheira.
O comandante mandou buscar luz, e, fazendo cessar o fandango do soldado, abriu a tampa do caixão e olhou curiosamente para dentro.
O Elesbão, que tinha ficado com os pés de fora e deitado de costas sobre o milho, não tendo tido tempo de arrumar-se, e, tendo ficado preso naquela posição, com as atrozes dores que sofrera, rebolara-se tão doidamente, que a sua elegância estava totalmente desfeita. Saltara o milho por todos os lados e o desgraçado tinha por entre os cabelos, no rosto, na roupa, por dentro da camisa.
O gorgulho, que era abundante, começava a mover-se, o que afligia-o em extremo.
Uma nuvem tênue porém abundante de pó, levantada nos seus pulos, envolvia-o e Nhan Pombinha, num canto do caixão, muito metida no meio, e quase sufocada pelo pé e pela manta que cobrira a cabeça logo que sentira abrir-se o caixão. O comandante ao princípio não distinguiu nada, depois de pouco a pouco, foi-se elevando o pé, então mostrou-se-lhe o quadro descrito. Foi uma gargalhada geral que o respeito não pode comprimir. O Elesbão, sentindo os gorgulhos no rosto, quase a entrar-lhe pela boca e pelo nariz,pos-se a cuspir, assoprar, a fungar forte.
Nham Pombinha, pelo seu lado, e na posição em que estava, sentia também a bicharia a caminhar-lhe pelas pernas, e meter-se-lhes pelas meias a dentro, e, metendo a mão por debaixo das saias, com a sua rara habilidade de caçadora de pulgas, conseguia apanhá-los; mas eram tantos, tantos, que era já um inferno atendê-los.
— Salte cá para fora, ordenou o comandante da polícia, em tom ríspido.
O Elesbão moveu-se, moveu os pés, e um pouco desengonçado, pouco firme nos tornozelos, sempre soprando e gemendo, conseguiu sair. Pos-se de pé e sacudindo das suas belas roupas uma grande porção de milho, gaguejou logo:
— Não me prenda! Não me prenda!
— Cale a boca. Responda só o que eu lhe perguntar.
E o comandante fez um breve interrogatório, passou-lhe um grande sabão e fez-lhe saber que havia de dar um tanto para o Asilo de Mendigos, senão iria dar com as costelas no xadrez.
— E aquela madama, quem é? perguntou.
O Elesbão aditou logo que não sabia, que nem nunca a tinha visto mais gorda.
— Saia, saia, também.
Nham Pombinha bem percebeu que era com ela, mas fez-se desentendida.
— Não ouve? saia ou mando puxá-la por uma perna.
Levantou-se a dama, atabafada na sua capa e com o derradeiro gorgulho nas unhas.
— Quem é? Como se chama?
E dando um pequeno puxão à capa, descobriu a cabeça de Nham Pombinha.
O comandante estacou estupefato.
Conhecia, conhecia!
— A senhora! A senhora aqui?
O Elesbão quase caiu; abriu a boca de forma que quase se lhe via no estômago os restos da ceia; o nariz quase arrebentou com a força do sangue, e arrancando do fundo do peito um trêmulo sentimental, disse:
— É ela! Eu bem adivinhei aqui!
E querendo bater no coração, coçou desesperado o umbigo.
Nham Pombinha pediu ao comandante duas palavrinhas em particular.Concedido. Tanto chorou,prometeu e jurou que o comandante, que era um cavalheiro gentil com as damas, prometeu levá-la à casa e ser discreto sobre o caso.
Olhou fito para o Elesbão, transfigurado, e disse-lhe:
— Se você amanhã não entregar 50$000 para o Asilo, teremos que conversar.
E fazendo um sinal sairam os três.
Cá fora já a sua gente tinha metido para dentro do carro de aluguel de Nham Pombinha, toda a mobília do culto.
Era um confusão de cabeças de boi e miçangas e molhos de ervas, que enchia o carro.
O comandante, sem indagar, mandou tocar para casa da guarda, distribuiu a patrulha, que não pudera encontrar os outros crentes, e, oferecendo o braço à senhora, começou a andar, seguido do Elesbão.
Recaiu a pouco e pouco tudo no silêncio. Vinha rompendo o dia.
Começaram então a surdir os fugitivos: o Caboclo, o Jerônimo, o Maximiliano e os outros. E apesar de assustados, puseram-se a rir.
Escapos! Escapos!
Continua...
- S...
- Correio Mercantil, 26 de outubro de 1893.