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A Mandinga/XII

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Ninguém contara, porém, com o José Pereira de Moraes, o pai de Doricélia.

O homenzinho, apesar das suas contínuas rusgas com D. Claudina, mal chegou à casa e foi informado do que sucedera, de como cairam das nuvens aqueles maços de pelegas, quis logo encarregar-se da liquidação do bilhete e da gestão do dinheiro, lá segundo seus planos, visto que a Doricélia era menor e a ele cabia esse direito.

As duas mulheres, se bem que não discortinassem muito bem argumentos em contrário, viram-se em papos de aranha para retrucar, visto que não eram o respeito e a confiança, a nota predominante naquela trilogia familiar.

A Zé Pereira cabia o direito, cabia; mas havia de ser para fazer render a fortuna e não para esbanjá-la.

Pois o diabo do homem não estava já fazendo planos!?

Comprar casa na cidade, carro, cavalos, chácara fora, para os verões, uma viagem a "Europa" para irem todos ver os seus pais pais dele, lá pela ffreguesia de Gouvea, Conselho de Baião, próximo a real cidade do Peso da Regra.

Na volta, traria um carregamento de vinhos, depois compraria uma charqueada, e depois uma estância, e depois...

— Um diabo que te carregue, rugiu D.Claudina, que, conhecedora das aptidões do Moraes, já, com o seu bom tino previa que, a ser assim, aquilo tudo dava em águas barrela.

E demais ela já estava farta da cozinha e da vassoura. Por três meses em que tinha criado passava seis a fazer tudo pelas suas bentas mãos. Eram camisas engomadas, para o milord José Pereira de MOraes se exibir por aí além; tinha de bater os bifes e, às vezes, o pé quando o homenzinho se dava muito à rabugem.

A Doricélia, que, honra lhe seja, não ligava a esta história do dinheiro, o épico ardor dos dois velhotes, deixava-os discutir, limitando-se a dizer que queria vestidos como Fulana, chapéus como Sicrana e jóias como Beltrana.

— Pois é, concluiu José Pereira, pois é; foram dar ao tal Hilário o bilhete, e agora ele lambe uma comissão furiosa.

— Para pequena será... disse D. Claudina.

— Como, para pequena? redarguiu o Moraes.

— Eu cá me entendo.

— O que é? A senhora está me fazendo fosquinhas... Casamento? Olhe: o Hilário nem pintado. Já se esqueceu da história do Quatro-olhos? Agora que tenho fortuna é que não consinto mesmo amizades com aquele bisbórria.

— Fortuna? Não é sua. E hão de se casar porque eu quero, ele quer e ela há de querer, e Nham Pombinha também quer. Há de ser... há de ser... há e... e há de...

E batia o pé, acompanhada pela Doricélia, esta resmungando, por temor do pai.

Passados dias, quando Hilário depois de liquidar vantajosamente o feliz bilhete, o tal 17.300, veio entregar a casa do Moraes, o saldo, foi uma alegira enorme, quase uma alucinação.

O José Pereira, com grandes olhos esgazeados, ventas dilatadas, mão adunca, armada em garras, atirou-se quase ao rapaz, esquecido da cena do Quatro-olhos, perdoando por esquecido, ou antes, esquecendo por ganancioso...

— Afinal! Afinal! rouquejou ele, sem se lembrar até do que havia de pouco delicado neste grito de expansão.

— Sim, afinal, cá está e pelo melhor, fique sabendo. Arranjei um câmbio favorável.

— E a comissão, é muito alta? Ora lembre-se que deve ser cordato. Faça alguma diferença.

— Perdão. Eu não tirei comissão alguma. Basta-me a confiança das pessoas que me estimam.

E dardejou sobre a Doricélia um olhar leonino, colossal de eloqüencia e paixão.

— Mamãe, segredou esta a D. Claudina, vá já buscar o dente de jacaré...

É verdade, entretem conversa com o melro que eu já volto. E saiu apressadinha para o inteior da casa.

Hilário, com naturalidade, puxou dos amplos bolsos do jaquetão de flanela azul dois enormes pacotes de notas de banco apertadas em laços de barbante, e tocando no ombro do Moraes, disse-lhe:

— Faça o favor de conferir. Como um gato esfaimado, achando a jeito um gordo e inexperto camundongo, lança-lhe as unhas, sôfrego, o José Pereira atirou-se aos maços de dinheiro e começou a sua verificação.

Foi longa e penosa. O homem atrapalhava-se, misturava as cédulas, errava a conta.

D. Claudina, tendo voltado, pusera-se às costas do Hilário enquanto ele, um tanto curvado, tagarelava com Doricélia e com o dente de jacaré, metido entre os dois dedos, como uma figa, fazia cruzes sobre as espáduas dele, murmurando ao mesmo tempo palavras misteriosas. Os seus olhinhos fúlvos, brilhantes, lançavam chispas de entusiamo. Depois tornou a retirar-se sorrateiramente, voltando momentos depois, falando, fazendo movimentos, como para mostrar que só então voltara à sala. Sentou-se junto à filha e meteu-se também na conversa, lançando a furta vistas investigadoras para o José Pereira, ocupado lá na sua tarefa.

O Elesbão Soares, que tinha sido incansável durante os apuros do primeiro compasso da viuvez de Nham Pombinha, considerava-se e procedia como íntimo da casa.

Visitas freqüentes e mais do que devera ser razoável e a horas em que geralmente o Hilário estava na agência. Fazia-se espirituoso, tomava mais confiança no frasear, e de quando em quando lá trazia à baila a cena dos gorgulhos.

Nham Pombinha, quando ele falava, lembrava-se dos motivos primeiros das suas visitas ao Caboclo, e amuava-se.

Lembrava-se dos esforços feitos, das tentativas audaciosas da sua imaginação e depois de analisar as particularidades do assédio, enraivecia-se porque achava que tinha sido ludibriada com o Cirilo, e queria ter a desforra com o Hilário.

Quanto ao mais, não lhe viesse, com argumentos.

Quando, porém, viúva, agora não que refletisse propriamente, mas achando-se senhora do seu nariz, entendeu castigar o Hilário que tivera o arrojo de fazer-se de tolo e desdenhá-la...

Foi justamente quando o Elesbão tocado por sublime inspiração achou que devia tornar-se assíduo. Mais que nunca, tinham sido freqüentes as suas conferências com o Caboclo, que tinha sabido da morte do Cirilo e que, honra lhe seja, andava arisco... Nessas sessões, o Elesbão aliviava as algibeiras, e os pesares. O pretalhão conduzia o papalvo ao santuário dos encantamentos e repetia as suas invocações, adicionando-lhe sempre novas esquisitices.

Nham Pombinha, com seu aguilhão de despeito forte e disfarçado, ajudava as tentativas do Elesbão de modo que este, encontrando menor resistência do que supusera, dava as honras de guerra ao mandingueiro.

Incompreensível catavento:

Nham Pombinha, que, se não escutava deleitada as tolices do Elesbão Soares, ao menos tolerava-se muito às ocultas, redobrava os seus escondidos trabalhos de enfeitamento para com o Hilário, a quem, tratando com uma dureza e rispidez enorme, queria reduzir a cair-lhe aos pés, para ela então poder, simples vingança, mandá-lo à fava...

Correra o tempo.

A burguês vida desta gente, tinha declinado sem totáveis solavancos, guardando-se todas as suas posições, e todos eles, ao seu modo, pondo os manguitos de fora, o José Pereira de Morais, depois de dilacerantes cenas em que tinha as suas tenções de apresentar-se ministro da fazenda a Rui Barbosa, com largos planos financeiros, fora forçado a atender a prudente D. Claudina e acomodara a sorte grande da Doricélia de forma bem razoável, porém segura.

D. Claudina exibia afoitas toiletes espaventosas nas cores, e dos atavios em contraste com a Doricélia, que tinha tomado a resolução de só andar de branco...

O Hilário era até cacete nas suas relações com essa família e nada decidia, com perigo para ele, porque a D. Claudina já resmungava que, com mais de duzentos contos, os Hilários andam aos ponta-pés, e que se aquele queria vender o peixe caro, estava se ninando...

A Doricélia, que parece tinha de verdade a sua queda pelas espáduas, do Hilário, ficou arrepiada.

Se a mãe fizesse alguma inconveniência, se maltratasse o Hilário, agora que tem o calor do dinheiro ela se julgava uma potência?

Não se sabe como foi, mas passados dias, ao jantar, o Hilário em vez de levantar-se logo, como costumava, esperou longamente sentado. E Nham Pombinha também.

Ela pressentiu logo.

— Nham Pombinha, rompeu por fim o rapaz, eu desejava consultá-la sobre o casamento meu com a Doricélia. O que acha?

— Eu...?

— Ela tem me dado provas de amor. Eu simpatizo com ela. E demais, tenho mesmo vontade de me casar. Que diz?

— Faça o que quizer. Eu cá não tenho opiniões.

E levantou-se pálida e quase a chorar, mas senhoril, altaneira, recolhendo-se ao seu quarto, enquanto o Hilário, depois de acompanhá-la com os olhos, sem atinar com aquilo, também se levantou disposto já, até com raiva, a mostrar de que pau era a canoa, e que não era nenhum fedelho para ser governado pelas birras da madrasta.

E saiu para a casa de Doricélioa, a fazer o pedido oficial aos papás da pequena.

Nham Pombinha, sufocada de raiva, de amor subjugado, de despeito, de ódio, de vingança, desatou a chorar.

Anoiteceu.

Nham Pombinha, depois daquele grande acesso, ficou calma e com as faculdades adormecidas. Não raciocinava. Estava ali, abafando suspiros.

O seu Elesbão está aí, minha senhora, disse à porta a criada.

Continua...

Serafim Bemol
Correio Mercantil, 26 de novembro de 1893.