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A Mandinga/XV

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— Homessa, por quê? perguntou afoitamente Nham Pombinha, soberba, no seu gesto de despreocupação pelas conveniências sociais, e deixando Hilário de lado. Homessa, por quê? de que se admira? Por ventura não é muito natural que uma madrasta, quase uma segunda mãe, na noite em que desata o último vínculo que a trazia presa a um antigo casal, em que canta a última estrofe de um poema, por sinal bem pouco alegre, não é natural que ela desabafe as mágoas e as recordações de sua mocidade, no seio de um amigo íntimo, de um quase filho? O mundo está muito corrompido! Aposto que o Sr. Elesbão, seu marido, já me supunha capaz de traí-lo, justamente nas primeiras horas do nosso consórcio?

— Não. Mas é que...

— Sim, eu compreendo. O Sr. é como todo o mundo: julga pelas aparências. Julga de toda a fazenda pela dobra de cima. Oh! Como isso é mesquinho! Não se poder dar expansão às dores íntimas sem ter necessidade de demarcar a compasso os nossos gestos, de arranjar uma medida para as nossas interjeições de dor. Não, Elesbão, o Sr. não é capaz de pensar isso de mim. Bem dizia Semiramis...

— Mas menina, atalhou o Elesbão quase a chorar, e com o coração derretido como rapadura, não precisas de andar com essas coisas comigo, que eu n/ao sou de cerimônias. Eu respeito muito as tuas interjeições e até acho-as bonitas. Se tens saudade de Semiramis, mandamo-la convidar para almoçar conosco amanhã.

Vendo-te assim abraçada a um homem e a fazer-lhe meiguices, compreendes, hein, fiquei meio apatetado. Mas lá, agora, pensar coisas esquisitas... Deus nosso Senhor me salve que não.

Nham Pombinha compreendeu que estava tão senhora da situação, quanto Hilário estava atacado de uma imbecilidade visguenta incapaz de dar uma palavra.

Os homens são todos uns patetas para essas coisas de lances de apuro. Se não os resolvem brutalmente a bala, fazem de Sancho Pança.

Nham Pombinha com aquele dilúvio palavroso, apanhado no último romance que lera, atordoara o Elesbão, e deixara-o embasbacado a ouvir como a mulherzinha falava bem.

— É de muita força, calculava o Hilário...

— Não desconfiaste de mim,não é, Elesbão? Era a primeira vez que Pombinha o tratava na segunda pessoa, e o peor era que, com a presença do Hilário, as coisas não podiam tão depressa tomar o caminho desejado por um noivo.

Por fim, o Hilário compreendeu que tinha de dizer alguma coisa para sair daquele embaraço.

— Meu amigo Elesbão, Nham Pombinha, antes que eu me retirasse, quis despedir-se de mim sem testemunhas. Era natural. Eu represento para ela um passado mais ou menos tranqüilo e relativamente feliz. Ninguém se aparta de um teto velho sem lágrimas mas, ao mesmo tempo; nos olhos de uma noiva não se toleram lágrimas que não sejam as da emoção ou alegria. Então, eu, como seu enteado...

— Nâo há dúvida, menino, não há dúvida. Ora, para que hás de estar aí com esse latim todo. Eu sei o que são estas coisas.

E ia conduzindo o Hilário para fora do quarto, dando-lhe palmadinhas à espalda, chamando-o familiarmente o meu grandumba, seu felizardo, e outras coisas assim doces e amáveis.

À porta da rua, torcaram-se as últimas despedidas...

— Almooço ao meio-dia, em, querendo já sabes... é com franqueza.

E voltou à alcova.

Nham Pombinha estava em outro apartamento contíguo trocando as roupas, aborrecida, nervosa com aquela interrupção da sua conferência com Hilário, com aquele acabamento de idílio ridículo e desastrado.

E despia-se febriciante, atirando com tudo à cara da criada alemã, tomada pelo Elesbão na colônia, a qual não entendia nada e ia sofrendo tudo com uma pachorra toda tudesca.

Eram onze horas da noite.

— Então, minha mulherzinha, não acha que são horas de nos acomodarmos?

Nham Pombinha, por detrás do reposteiro, que dividia os apartamentos, respondeu em tom desabrido, nervoso, como quem está acostumada a fazer e a dizer que o que lhe vem à cabeça.

— Olhe: Sabe que mais? Está muito calor e, quando faz calor, eu gosto mais de dormir só. O meu primeiro já sabia.

Não era uma razão para que o Elesbão o soubesse, ele que ia apenas voltar a primeira página de um livro que não conhecia, e do qual só vira a capa.

— Mas Pombinha...

— Olhe: durma um sono quietinho. Lá pela madrugada, com a fresca, falaremos.

E o Elesbão penalizado, submisso, admirado de quanto lhe sucedia de extraordinário, exclamou, pela segunda vez, na noite de seu noivado:

— Homessa!

Conduzindo a vela e deixando tudo às escuras, passava a criada alemã, gorda, corada, rochochuda, bem junto ao grande leito do Elesbão, feito no Lopes, deixando após si um perfume de almíscar irritante.

Em casa do Hilário, ia tudo numa polvorosa.

Doricélia, ainda de pé, desperta, rasgando as rendas do penteador de cetim azul celeste do segundo dia do consórcio, e falando muito alto, atirava-se ao Hilário em invectivas, indignada com a desobediência do marido indo ao casamento da madrasta, e com sua longa ausência.

Pois o Hilário não tivera o descoco de entrar-lhe em casa meia hora depois da meia-noite?

— Isto é imoral, bradava ela, soprando as palavras ao nariz do Hilário. É imoral, um homem casado, há pouco tempo, entrar em casa estas horas!

Fora o caso que o Hilário, ao sair da casa do Elesbão, ficara como que entontecido.

As sensações fortes, que lhe tinham produzido os abraços de Nham Pombinha, magnífica, no seu traje de noiva, subitamente transformados em diálogo de comédia, pelo aparecimento inesperado e intempestivo do Elesbão, tinham-no deixado com a cabeça oca, sem saber o que fazer. E o pior era que ele tinha ainda de aturar a birra da Doricélia, quando voltasse para a casa.

Este pensamento, sobretudo, levara-o a, instintivamente, afastar-se da rua de sua casa, como quem quer demorar o mais possível o aparecimento de um perigo com o qual deve inevitavelmente, contar.

Para onde ir? Tudo estava fechado, aquela hora. Não havia um café, ao menos, onde a gente se distraísse, um quarto de hora, a fumar um charuto palestrando com um amigo.

E,como a noite estava calmae de luar, fora até o Santa Bárbara pela Ponte de Pedra... Depois dera mais uma dúzia de voltas, aborrecendo-se a valer, cabeceando algumas vezes de sono, ou fechando propositalmente os olhos para não ver o quadro que na sua imaginação pintava: Nham Pombinha nos braços do Elesbão.

Por fim, não teve remédio. Foi para casa...

Aí foi Tróia.

Doricélia não esteve com meias medidas.

O tema para palestra foi uma indiscreta pancada que o tímpano do relógio fez ressoar, indicando meia hora depois da meia-noite.

— Então agora é que você vem da casa daquela delambida? Pensei que ficasse a fazer companhia ao noivo ou estivesse ajudando nos arranjos!

E desandou a torrente:

Aquilo era uma pouca vergonha. Ir tirar uma moça donzela de casa de seus pais, onde vivia feliz, para dar-lhe maus tratos, deixá-la abandonada como uma trouxa. Ir ao casamento daquela mulher? Isso nunca. O mundo dizia muita coisa, e além disso, o marido não deve ir onde a esposa não vai. Todo mundo havia de ter reparado. Casados havia tão pouco tempo!

O senhor não responde? É que a sua consciência o condena. Se não fosse assim, havia de achar muito justo o que eu digo. Para que casou comigo? Por causa do meu dinheiro? Maridos desses andam aos centos, se eu quisesse. Não precisava que o senhor me aparecesse com essa cara de sonso. Olhe, fique sabendo que eu não aturo desaforos comigo. Se as cousas não entrarem nos eixos, não se queixe. Quem me avisa, meu amigo é.

— Hilário calado.

A Doricélia passou das exprobações aos insultos, e a tal ponto levou os ímpetos de sua cólera, que a velha Claudina acudiu assarapantada, em saia branca e bata, esfregando os olhos e com uma vela de carnaúba cor de rosa na mão.

— O que é isto? que destapatório é esse, meninos?

— Sua filha está doida, D. Claudina, não vê como ela está a se rasgar a roupa toda.

— Doida, doida? Doido está você, seu pilantra. A mamãe já me conhece. Eu sou uma pessoa decente, muito diversa da tal sua madrasta, que tem andado com todo o mundo.

D. Claudina (não fora ela sogra!) aplaudiu a filha, logo que esta a inteirou de tudo.

Aquilo não tinha jeito. Se sua mulher não queria que ele fosse ao casamento, ficasse em casa. A gente de bem faz assim. Se não para que se casou?

Olhe, concluiu a Claudina, a gente séria lava a roupa suja em casa. O senhor sabe que, quando uma pessoa toma compromissos, deve cumpri-los, ou passa por mau e por patife. Nham Pombinha não é melhor que a minha filha, pelo contrário até é muito pior. O senhor tem de acabar com essa amizade, se quiser viver em paz aqui.

Afinal, o Hilário, irritado, levantou-se da cadeira onde se tinha atirado desde o princípio da conversa, foi ao bico de gás e fechou.

— Sabe que mais, suas furias? — Boa noite.

E ia a caminho para o quarto de dormir, quando o ruído seco de um objeto que lhe caira do bolso posterior da casaca fê-lo voltar, abaixou-se e apanhou-o. Era o chinelo que lhe dera a Nham Pombinha, dizendo-lhe que perguntasse à mulher o que significava.

Foi uma inspioração... o que é raro, porque nada é menos próprio a inspirar-nos do que um chinelo.

Ergueu-se pronto e a luz tíbia da vela, mostrou o chinelo.

— As senhoras que são tão sabidas, tenham a bondade de dizer-me: Onde está o outro pé deste calçado?

Foi um golpe de teatro.

Mãe e filha lançaram-se olhares assustados e vesgos, gritando como possessas e fingindo um desmaio, sacudindo os membros, atiraram-se inteirissadas ao chão...

— A mandinga, a mandinga...

Apagou-se a vela.

O Hilário desapontado, fora de si, sem atinar com o que fazia, atirou com o chinelo a esmo, produzindo grande estrondo no vidro do aparador em que ele fora bater, e resolveu sair de casa naquele instante...

— Desmaiem por aí. Estão bem livres de que eu vá levantar, suas bruxas... Ah! temos mandinga? Pois quem com mandinga mata com mandinga morre... Espere e verão... Também vou a casa do tal Caboclo, conhecido de Nham Pombinha...

E saiu, mesmo de casaca e clack como estava, furioso, como um pé de vento, levando tudo por diante, derrubando cadeiras, batendo com as portas, com estrépito, mandando de presente ao diabo a hora em que tinha casado..., enquanto que o José Pereira de Moraes, em ceroulas e camiseta, barrete de dormir furado no tope, e com uma vela igual a de D. Claudina, aparecia na sala de jantar, com uma baioneta velha e enferrujada, embrulhada em papel pardo de venda, embaixo do braço, tropeçava no corpo da velha, e saía de novo direito à porta da rua, bradando:

— Ladrões, ladrões! Pega ladrão!

Continua...

D. Salústio
Correio Mercantil, 10 de dezembro de 1893.