A Mandinga/XVI
Hilário, saindo de casa, naquele desespero cego, pusera-se a andar por aí além. Bem sabia ele onde ia, onde era a pocilga do Caboclo!...
Ignorando tudo, bradou que ia procurá-lo, só para meter medo e fazer-se temer.
Afinal, cansado de andar trocando as pernas, pela madrugada voltou à casa e acomodou-se no sofá da sala de visitas, muito caladinho, muito silencioso, ansioso até por não ser visto e nem sentido.
De manhã deu-se papética cena: — explosão de desculpas, explicações, carinhos e festinhas, de modo que serenou a tormenta, dando-se tudo por esquecido e acabando em boa paz... aparente, aliás.
D. Claudina, porém, previdente, sabida e traquejada no mundo entendeu, que não devia-se descuidar, e de combinação com a Doricélia propôs-se de seguir uma regra de tratamento ao Hilário, pela qual o rapaz se tornaria caseiro, amigo dos seus lenços e deslembrado de más tenções. Por isso, daí em diante eram pitadinhas de certo pó denegrido, no café de manhã e o chá da noite, com bolos de magnífico aspecto, mas preparados no miolo com raspas de unhas e o diabo a quatro...
O Hilário, ao cabo de certo tempo, sem desconfiar da medicina, sentia-se de qualquer sofrimento vago, indeterminado, vertigentes, dores atrozes e rápidas como punhaladas, no estômago, um contínuo salivar enjoado...
Nham Pombinha, pelo seu lado, em crescente aumento de asco pelo Elesbão, a quem não queria senão para dar-lhe o gracioso papel de editor responsável, Nham Pombinha não descansava.
Tendo achado meios de afastar o marido, uma noite, conseguiu falar ao Caboclo e explicar-lhe pelo miúdo a sua posição e os seus projetos.
O preto velho, se bem que calejado na prática dessas falcatruas, admirou — não se sabe se mais se o cinismo da ex-viúva, referindo-se cruamente, sem tintas e nuas palavras — os seus desejos, se mais a pouca mossa que lhe fizera o arrastamento da vida do Cirilo, sucesso — que diabo — ao menos um pouco de remorso havia de provocar!
Mas como a paga era boa, a freguesa crédula e constante, o mandingueiro deu-lhe fórmulas especiais para o caso do Elesbão e iguais as que já fornecera a D. Claudina, para o caso do Hilário, de modo que este é que era o mais sacrificado, porque ingeria tudo em dose dupla.
Desde que o Elesbão tinha começado a absorção das coisas aplicadas por Nham Pombinha, esta não andou mais com meias medidas. Convidou insistentemente o Hilário a visitá-la, e foi, de dia, apertando mais o cerco ao já tão desvairado rapaz.
Oh! furiosas contorsões de uma ligação medonha, que tinha de permeio a lembrança vivaz do ludibriado morto, pai de Hilário, pai deste filho, que esquecia tudo, o que quebrava aos pés daquela mulher ardente as homenagens do respeito, da veneração, do culto devido à sua memória! Monstruoso a reviravolta de sentimentos, monstruoso amor, medonha expansão da carne, da carne exigente e intransigente, sepulcro de bons e são raciocínios, assassina da pureza de coração!
Passava-se o tempo, crescia furiosa ânsia de saciar aquela voragem. E como o Hilário resistia àqueles embates capazes de acachapar outro qualquer!
— Não Realmente este Caboclo vale tudo! dizia contentem Nham Pombinha.
O Elesbão, por seu lado, atristado e sonolento, decrescia, mirrava-se, acabava-se. Afinal, num dia, caiu na rua, nas mesmas condições em que o Cirilo já tombara, e morreu da mesma morte inesperada, estúpida e não esclarecida. Este sucesso foi como se não se tivesse dado, em nada alterou as relações do ex-enteado com a madrinha. Ao contrário, incendiou-se-lhes a vontade, vontade absurda de quebrarem todas as leis do decoro social e viverem, sob o mesmo teto, desse no que desse. E assim fizeram, depois de atirarem o cadáver do mísero Elesbão para o cemitério, com um mal escondido do assanho de alegria e de liberdade.
Dias volvidos sobre este arrojado procedimento, foi o Hilário chamado instantemente à sua casa, visto que se tratava de uma coisa muito séria. Foi, era o José Pereira de Moraes, que tinha sido cruelmente mordido pelo Quatro-olhos que havia ficado hidrófobo na véspera. O homem estava assustadíssimo, queimou as feridas com ferro em brasa, até nem se podia com o cheiro de carne tostada, e como lhe tinham ensinado que azeite de potro era muito bom para expelir os humores, o bárbaro tinha lhe bebido como três garrafas e ansiava agora, arrastando no esvaecimento da mais atroz desinteria, triunfalmente resistente às libras de polvilho, caldos de marmelo e folhas de araçá e aos frascos de bismuto, com que lhe atulhavam o enfraquecido estômago. Por fim, já sem forças, cadavérico, asqueroso até no horror visível do seu esgotamento, morreu sem um gemido.
Morreu com um passarinho! dizia soluçante D. Claudina.
O Hilário, coitado, estonteado, sentindo cada vezmais forte a sua dor de estranhas, procurou manter-se firme, e lá como pode assumiu o seu cargo de chefe da casa, mandando enterrar decentemente o José Pereira, dizer-lhe as respectivas missas, o seu agradecimentozinho pelos jornais, e fazendo-se logo enforcar o danado Quatro-olhos, no fundo do quintal, procedendo-se as operações fúnebres com grande luxo de precauções e alaridos.
Doricélia, disfarçadamente, punha em prática a sua tática de seduções...e uma noite, quando o Hilário, cada vez mais alquebrado, foi insistentemente chamado por um perfumado bilhetezinho de Nham Pombinha, ganhou a parada, porque o Hilário aliás sem grandes reservas pelo pudor de sua sogra e da sua mulher — respondeu que não poderia ir, porque se achava muito incomodado.
E mais, se vitória houve, a Doricélia confirmou-a logo na manhã seguinte, porque levantou-se risonha, esperta, cantarolando, fazendo enfim, contraste vivo com as últimas manhãs.
D. Claudina também já fora da cama, deu logo pelo júbilo da filha e dava-se parabéns pelo bom sucesso da última dose ao genro na véspera.
Tomavam as duas senhoras o seu matutino café com leite.
Depois de beberem uma grande xícara, acompanhada de duas respeitáveis fatias de pão, a Doricélia como que lembrou-se, e vivaz, jubilosa, levantando-se, disse à mãe:
— Vou tomar um banho no tanque!
— Espere um pouco, menina; tomaste agora café tão quente... Vai te fazer mal. Deixa descer, primeiro...
— Qual! Não acontece nada.
— Se fosse eu, não ia. Pode te dar algum pasmo!
— Não dá nada. Histórias.
— Vou!...
E foi.
Foi, arrumou as suas roupas, correu os olhos pelas faces visíveis das suas abundâncias corporais, anediou a sua macia e rosada pele e... catapruz! meteu-se de jacto no grande tanque e afundou-se na água fria e clara.
Por efeito natural de fenômenos patológicos, o café quente de inda agora, com a água fria,certamente, não se acertaram amigavelmente e quase repentinamente a mísera sentiu-se tonta, sem ouvido, tomada de imobilidade, abafada, muda, caiu prostada, músculos flácidos, boiando as suas banhas, na água tranqüila.
Em vista já da larga demora, D. Claudina estranhou o caso e foi averiguá-lo.
Chegou-se a porta do quarto de banho, chamou, chamou, bateu e nada. Espiou pelo buraco da fechadura. Horror! Pulou como uma louca, gritou pelo cozinheiro, pelo Hilário, pela alemã, fez um sarilho enorme, obrigou arrombar-se a porta, e ficou apatetada, imóvel sem chorar e repetindo apenas:
— Encarangada! Morreu encarangada!
Repentinamente D. Claudina, agitando os braços no ar, sem apoio, caiu de costas; esfolando profundamente o nariz; e aí morreu, deitando pela boca porção de sangue escuro e espumoso.
Feliz! Ao menos morreu de morte morrida!
Rebentara-lhe um maduro aneurisma.
Hilário e o cozinheiro, ali ficaram, estupefactos.
O cozinheiro, crioulo, moço ainda, vagabundo chapado, já muito conhecedor das desavenças daquela gente,com quem vivia, sem arredar o pé para a rua, por medo ao recrutamento, estático, perante a nudez morta daquele corpo, branco, cujas curvas lambia com um olhar velhado, foi rudemente arrancado à sua curiosidade pela voz impiedosa e áspera do Hilário, que lhe gritou rápido:
— Já daqui prá fora! E mais calmo acrescentou depois: Chama um carro e vai buscar-me o Dr. Eloi. Passa por casa de Nham Pombinha e dize-lhe de vir cá, já, já.
— Mas podem me pegar...
— Toma um carro, já te disse. Safa-te!
Saiu o mensageiro.
Hilário ali ficou um momento, relanceou um rápido olhar pelo quarto e depois abriu a válvula do tanque por onde começou a jorrar forte a água, um tudo nada aquecido pela permanencia do corpo de Doricélia, nela. Depois, chamando a criada alemã, aterrorizada com aqueles sucessos, com regular trabalho e esforço, conseguiu envolver o corpo da mulher no largo e felpudo lenço de banho, conduzindo-a para o seu quarto de dormir.
Volveu pelo mesmo fim a D. Claudina, inteiriçada e conduziu ao seu aposento, ficando nos assoalhos um trilho de largas gotas de sangue.
A alemã, tranzida de medo, logo que viu-se livre de tal fardo, saiu porta a fora e foi bater língua pela vizinhança, pálida trocando as palavras e jurando que ia logo no dia seguinte para a colônia, para perto de seu pai, na carroça de seu tio!
De modo, que daí há pouco a casa era invadida pelo mulherio da vizinhança ávida de curiosidade, caras compungidas e olhos perscrutadores. Hilário, atônito, começou a notar aquilo e não poude mais conter a onda. Contou o caso reunindo-as duas ou três velhuscas mais cheias de oferecimentos, entregou-lhe os molhos de chaves, indicou-lhes as gavetas onde julgava estarem as roupas, e meteu-se na sala onde estava mais à vontade. Redobravam aí suas dolorosas cólicas.
Chegou Nham Pombinha. Perguntou pelo Hilário e foi entrando afoitamente até onde estava. Por demais notara aquele ar de novidades, aquele rebuliço, que enchia a casa, mas ignorava por completo o sucedido.
Deu com os olhos em Hilário, recostado no sofá e pálido, desfeito, abatido, gemendo, com as mãos contraídas, comprimindo o estômago.
— Ai! ai! que dor, que dor atroz! gemeu o mísero.
— Mas o que é? O que sentes? indagou, aflita, Nham Pombinha.
— Aqui, aqui! Aí! Que fogo! Que dor!...
— Espere um momento, já te passa isso, eu volto.
Foi dentro, rápida, correndo quase, trouxe um copo d'água, vasou-lhe dentro uma porção de mandinga milagrosa do Caboclo. Misturou a beberagem deu-a a Hilário que enguliu avidamente, sem querer abrir os olhos, confiando e dócil, esperando pronto alívio ao seu sofrimento.
Foi golpe de graça.
Aquele organismo minado, corroído pelo efeito nocivo de tanta droga perigosa, daquele envenenamento lento, porém asqueroso persistente, não pode resistir e cedeu, desfibrou-se sob a ação rápida da poção de Nham Pombinha. Sacudiu-se convulsivamente, ameaçou um arranco violento, de olhos vítreos e ferozes, a boca aberta, narinas dilatadas, as mãos em garrasm crispadas sobre o estômago, deu um prolongado e doloroso gemido, e ficou-se, ficou-se, descaindo lentamente, inerte, frouxo, do sofá para o chão, onde parou, a face no tapete, um braço preso em cima, a roupa repuxada, silencioso, imóvel, morto!
Nham Pombinha, atônita, sem ter nunca imaginado aquele desfecho, adivinhou-o e fugiu, alucinada e cortada de medo, de piedade, de remorso e de angústia.
O Dr. Eloi, de chegada, ouvido o relatório, abriu imensamente os olhos. Quê? Em vez de um, em vez de dois, três, três cadáveres? Mas aquilo era uma matança, um acaba tudo, era o fim do mundo? Não andaria aí gato encerrado?!...
Mas não houve que dizer Doricélia, uma apoplexia, legal. D. Claudina, ruptura de aneurisma, legal. Na véspera ainda a desinteria de azeite de potro. No Moraes, legal também. Aquilo com Hilário é que era o diabo. Mas, enfim, não assistira o doente, nada lhe prescrevera, parecia coisa de estragos do coração, legal também, sem assistência médica, nota de barbas de molhor por causa das dúvidas. E deu os atestados. E vieram os caixões fúnebres e os outros aprestos dos defuntos. Alguns vizinhos, maridos das vizinhas, vieram também lançar a sua vista d'olhos, e deram os passos precisos para os enterros e avisos aos parentes, o principal, enfim.
Nham Pombinha, embezerrada, mandou dizer que positivamente não queria saber de nada e que se arranjassem.
As línguas então, trabalharam a valer. Parecia no Boato!
Concentrada nas suas recordações e no seu mordente remorso, só, ré perante a consciência, sacudida pelo terror, batida na sua defesa de ignorância, Nham Pombinha, fechada no seu quarto, passou uma noite medonha.
Pesadelos ou visões?
Revia, perpassavam-lhe diante dos olhos esgazeados, imagens vagamente desenhadas, com clarões fosforecentes; na meia luz da lamparina, via, via a cara boçal e esquisita do mandingueiro, com os dentes pretos, o branco dos olhos muito brilhante; assistia, jurava que assistia a uma sessão de bonzos, as invocações ao Xererê milagroso, dançando, sob o altar grotesco o corpo alquebrado do Cirilo, e coisa mais horrorosa, o pescoço desse corpo, que saracoteava, sustentava três cabeas: a do Hilário, a do Elesbão e a do Cirilo, rindo as três bocas, ferozes os três pares de olhos!
Aumentava o quadro, pulava a Claudina, pulava a Doricélia, o José Pereira, o Quatro-olhos, o cão estimado!... De repente, todos esses fantasmas acercavam-se-lhe, enganavam-a, mordiam-na, puchavam-lhe os cabelos, vasavam-lhe os olhos.
Então, levantou-se sem resolução, porém como fascinada, tirou do bolso vestido o vidrinho da última droga que acabara o Hilário, e bebeu-a de um só trago, sem uma visagem, sem repugnância. Atirou o vidro contra o espelho que refletia o seu corpo gentil, e de repente, às gargalhadas, atirou-se a pular, fazendo roda, dando às mãso a imaginários companheiros. às furiosas gargalhadas, sucederam gritos roucos, ofegantes e ela caiu, em cheio no chão, sem alento. Ou tinha enlouquecido de verdade, ou então ia criar macaquinhos no sótão. Em todo o caso uma lástima.
E acabou-se a Mandinga.
Serafim Bemol
- Correio Mercantil, 14 de dezembro de 1893.