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A Morgadinha dos Canaviais/V

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V


Henrique de Souzellas sentia-se cada vez mais penetrado da sympathia, que logo á primeira vista, aquella mulher lhe despertára.

Havia na morgadinha um mixto de candura e de ironia, certa delicada reserva fluctuando, como uma sombra diaphana, na conversa familiar, a que tão espontaneamente se dava; um visivel conhecimento dos usos e etiquetas sociaes, e ao mesmo tempo uma coragem para cortar por elles, como quem se sentia sobranceira a toda a ousadia, inaccessivel ás suspeitas dos mais atrevidos: havia tantos enygmas n’aquella sympathica indole feminina, que poucos seriam impassiveis deante d’ella.

A pensar n’isto se ficou Henrique de Souzellas, calado, immovel, absorto, seguindo com os olhos os movimentos de Magdalena, que, sem o menor constrangimento, proseguia nas suas occupações domesticas.

Ouviram-se finalmente passos e vozes de differentes timbres na sala immediata.

― Ellas ahi veem ― disse a morgadinha.

De feito, precedidas por Marianna e Eduardo, entraram na sala D. Victoria e Christina.

A mãe vinha dizendo:

― É o que eu digo... Não que vocês não querem crer! Ora vejam se isto se atura... se isto não é para metter uma pessoa no inferno!... Não tem que vêr!... Não ha ninguem que mais dinheiro gaste com criados e que seja tão mal servida como eu!... Eu só queria saber o que fazem os criados d’esta casa? Sim, só queria que me dissessem o que elles fazem, esse bando de mandriões!... Elle é o Torquato, elle é o Luiz, elle é o Damião, elle é a Ermelinda, elle é a Rosa, elle é a Violante... e não havia um só que me viesse dizer que tinha chegado o primo! É forte coisa!... Compromettem uma pessoa! Então como está? ― accrescentou ella, mudando de tom para cumprimentar Henrique, a quem estendeu a mão.

Magdalena, ao ouvil-a, tinha já trocado com este um olhar malicioso.

Henrique correspondeu delicadamente á saudação das senhoras e procurou justificar os criados.

― Não m'os desculpe, ― atalhou D. Victoria, elevando outra vez o tom de voz ― aquillo é de proposito para fazerem ficar mal uma pessoa; ninguem me tira isto da cabeça... Aquillo é de proposito!

― Mas a mamã não vê que as criadas estavam comnosco á novena? ― lembrou timidamente Christina.

― Pois que não estivessem. Quem tem serviço a fazer não pode ouvir novenas.

― Mas se a mamã é que as mandou!

― Pois sim... pois sim... mas... mas ellas é que me deviam dizer que tinham que fazer. Então eu é que lhes hei de estar a lembrar as suas obrigações? Não me faltava mais nada! Ora tens coisas, menina! Mas então vamos a saber, primo Henrique, fez bem a sua jornada?

Henrique principiou a falar para desvanecer a irritação de D. Victoria.

Como nós já sabemos dos pormenores da tal jornada, aproveitaremos a occasião para dizer duas palavras a respeito das novas personagens, que estão em scena.

D. Victoria, havendo attingido já a idade respeitavel dos quarenta e tantos annos, dispensa-nos grandes longuras e esmeros de descripção. Basta que o leitor saiba que era uma senhora nutrida, bondosa no fundo, e que sabia muito bem trazer os vestidos escuros da sua viuvez. Impertinente com os criados, doida pelos filhos e sobrinhos, muito sujeita a esquecimentos, e confundindo-se facilmente sempre que tentava forçar o espirito a abraçar alguma ideia mais complexa; mãos rotas com a pobreza; intolerante, em theoria, com os ladrões e malfeitores, porém felizes d’elles se d’aquellas mãos lhes dependesse a condemnação; eis o que era D. Victoria. Christina, porém, tinha dezenove annos; e esta idade gosa de privilegios, que eu não posso infringir. O leitor não me perdoaria se me visse passar estouvadamente por deante da prima de Magdalena, sem um olhar de homenagem á sua juventude e ao seu typo feminino. Reparemos pois.

Christina era mais bonita do que bella. Não havia n’aquelle rosto uma só feição, que não fôsse correcta e delicada. Tez alva e finissima; olhos meigos e quebrando-se com suavidade infantil; bôca, d’onde parecia sempre prestes a sair um afago ou uma consolação; voz, que da muita piedade d’aquelle bom coração, tirava ás vezes modulações commoventes; n’uma palavra, uma figura de cherubim, como as sonharam os mais inspirados artistas, cuja mão representou na téla os augustos mysterios do christianismo, tal era a primogenita de D. Victoria. Mas não procurassem n’ella alguns d’aquelles attractivos, que fixam de repente e como por magnifico influxo, a attenção dos olhos, uma d’essas particularidades physionomicas, pelas quaes a natureza, destruindo com arrojo feliz a geral harmonia de um semblante, consegue tornal-o mais fascinador; temperavam-se alli tão completamente todas as feições, que a attenção não se sentia obrigada a passar do conjuncto d’ellas, o que lhes diminuia muito a intensidade. É o grande senão dos rostos harmonicamente perfeitos.

Concordava-se em que Christina era galante, ninguem lhe negaria sympathias; mas o pensamento na ausencia d’ella, não se sentia dominado por a sua imagem: perdia-a até n’um vago, quando pretendia fixal-a: eram suaves de mais as inflexões d’aquelles contornos, brandas as tintas que lhes davam relevo, para que a memoria conseguisse reproduzir facilmente o typo angelico, de que lhe ficára uma agradavel, mas vaga impressão.

Por um homem, em quem predominasse a razão, Christina poderia vir a ser adorada; mas nas imaginações ardentes, nos corações inflammaveis, difficil lhe seria produzir alguma impressão duradoura.

Para bem se comprehender a belleza de Christina, era preciso sondar-lhe primeiro o coração, apreciar todo o thesouro de sentimentos que alli se continha; então descobrir-se-lhe-hia nas feições certa belleza ideal, reflexo de bondade e candura, uma d’essas claridades que as almas puras e generosas vertem nas physionomias. Se não fôsse receiar-me de linguagem que saiba a philosophia, diria que a belleza, que possuem umas mulheres assim, é uma belleza subjectiva.

De tudo isto é natural concluir que Henrique de Souzellas podia sympathisar com a candida figura de Christina, a qual baixava timidamente os olhos deante d’elle, córando cheia de enleio e confusão, mas que qualquer sentimento que ella lhe inspirasse, não conseguiria por muito tempo desviar-lhe o sentido dos encantos mais attrahentes da morgadinha ― que a muitos respeitos, menos na bondade de coração, formava contraste completo com sua prima.

Travára-se animada conversação entre as pessoas presentes, e principalmente entre Henrique, D. Victoria e Magdalena.

D. Victoria quiz ser informada da doença de Henrique. Este passou a fazer-lhe uma exposição igual, com pequenas variantes, á que fizera á tia.

Mencionou, como a ella, aquelles vagos symptomas, aquellas tristezas, impaciencias e desalentos, que tão ingenuamente a boa senhora classificára como mania.

Emquanto Henrique falava, Magdalena poz-se a rir.

Henrique tornou para ella os olhos.

― Ó menina, de que ris tu? ― perguntou D. Victoria, com certo tom de severidade.

― Rio-me d’aquella doença, tia. Pois já viu alguem padecer d’aquillo? Ora diga?

― Eu?... mas...

― Pode dizer que não. E comtudo o primo Henrique não mente. Ha d’aquellas doenças na cidade, ha; mas na aldeia são tão raras, que eu mesma as estranho já, eu que as vi em outro tempo...

― Então não crê na realidade d’ellas.

― Não lhes estou a dizer que sim? Ouço até que já teem levado ao suicidio. Acredito-o. Os habitos da civilisação affeiçoam a seu modo a natureza humana e criam molestias novas, que nem por isso são menos naturaes. Mas que quer, primo? A minha estranheza, ao vêr um d’esses doentes em plena aldeia, não é modificada por todas essas considerações. É como um homem de casaca e gravata branca; não ha nada mais sério e mais grave n’uma sala de baile, mas colloque-m'o n’um monte, e diga se o pode olhar a sério.

― Quer dizer que não devo queixar-me aqui, sob pena de zombarem de mim.

― Tanto não digo; mas não o entenderão; isso não.

― Porém a minha doença não é só d’essas, que se não dão na aldeia, prima Magdalena; eu creio que verdadeiras desordens organicas...

― Ah! tambem? ― Com esse aspecto de robustez?!...

― Se eu sei o que tu estás ahi a dizer Lena! ― disse D. Victoria, que não tinha percebido bem o dialogo.

― É que eu, minha tia, teimei em fazer perder ao primo Henrique todos os maus habitos da cidade, com que veio para aqui. Sem isso não pode curar-se.

― Sujeitar-me-hei da melhor vontade a tão agradavel dominio.

― Principia mal, se principia com uma fineza. Já o avisei ha pouco...

― Será necessario tornar-me grosseiro, para me salvar? N’esse caso renuncio á cura.

― Grosseiro, não; basta que seja razoavel e sobretudo...

― Acabe.

― Acabo? eu sei? Eu ás vezes sou sincera de mais.

― Eu adoro as sinceridades.

― Já que o quer... É preciso que seja razoavel e sobretudo... desaffectado.

Henrique de Souzellas mordeu ligeiramente os labios, córando.

― Então acha?...

― Acho que está sempre a imaginar-se n’um salão; faz uns gastos de galanteria, desnecessarios e perdidos.

― Ó meninos, eu não vos entendo ― repetia D. Victoria.

Magdalena sorriu.

― Digo eu que...

Um criado entrando com as cartas do correio não a deixou continuar.

― Sempre chegou o correio! ― exclamou Magdalena com vivacidade, recebendo as cartas. ― Por que veio tão tarde?

― A mulher contou-me lá umas historias de uma quéda, e...

― Coitada! Aconteceu-lhe algum mal?

― Esteja descançada, minha senhora. Ella partiu já e era um gôsto vêl-a a correr.

Magdalena abriu com pressa a carta recebida.

― É de meu pae ― disse ella, olhando-lhe para a lettra e, depois de pedir licença, começou a ler para si.

― Pois agora ― dizia, n’este meio tempo, D. Victoria a Henrique ― o que deve é aproveitar estes bonitos dias para dar alguns passeios. As pequenas acompanham-n’o. Aonde me dizias tu no outro dia que querias ir, Christina?

― Eu! disse Christina, córando.

― Tu, sim, menina. Inda hontem me falaste n’isso. Ora onde era?...

― Á Senhora da Saude, mamã.

― Ai, é verdade, á Senhora da Saude. Ahi está já um passeio bonito. Vê? Saem d’aqui uma manhã cêdo, levam alguma coisa para lá comer, porque o ar do monte abre o appetite, e a cavallo estão lá n’um instante...

― A cavallo, mamã! d’aqui á Senhora da Saude? Ora! Vae-se muito bem a pé ― notou Christina do lado.

― Isso é por os açudes.

― Pois por onde haviamos de ir?

― Por a Granja, que é melhor.

― Por a Granja! É uma legua!

― Que tem? mas escusam de trepar como cabras por o lado dos açudes, que é até perigoso; e depois para que hão de ir a pé, se para ahi estão os cavallos sem fazerem nada? É vontade de se cançarem.

― Mas appetece ainda mais n’este tempo. Só se... só se alli o sr. Henrique... ― disse Christina, embaraçada ao continuar.

― Eu o quê, minha senhora?

― Perdão ― interrompeu D. Victoria. ― Por que não has de tu chamar primo ao primo Henrique? pois não chamamos tia á tia Dorothéa?

― Por isso mesmo, mamã, ― respondeu Christina ― os sobrinhos da tia Dorothéa não são...

― Não averiguemos d’esses parentescos, priminha, ― acudiu Henrique ― eu acceito a proposta da mamã, peço para ser considerado do numero de seus primos.

Christina baixou os olhos, sorrindo.

Henrique proseguiu:

― Mas parece que receiava por mim, quando falou em ir a pé á Senhora da Saude. Não sei onde é o logar, mas desde já me comprometto a não cançar.

― Não tem que saber ― disse D. Victoria, caminhando para uma janella. ― Ella lá está. Olhe que inda é necessario saber trepar.

― Tendo duas tão galantes companheiras de viagem ― tornou Henrique, depois de reparar no monte escarpado que ficava a alguma distancia d’alli, o mesmo que o almocreve lhe mostrou ― parece-me que daria a pé uma volta ao globo e que subiria a correr o Pico de Tenerife.

― O que eu lhe digo, primo ― accrescentou D. Victoria ― é que se acautele, porque se lhes vae a fazer todas as vontades, tem que vêr.

― Inda que morresse em tão agradavel serviço, teria de agradecer a Deus a morte.

― Cá me chegou aos ouvidos o cumprimento ― disse Magdalena, que continuava a ler. ― Logo ajustaremos contas.

― É implacavel esta nossa prima, não acha? ― perguntou Henrique, sorrindo, a Christina, que por unica resposta só soube sorrir tambem.

― Pois então, é arranjarem, é arranjarem isso e quanto antes, que não ha que fiar no tempo. Eu se pudesse tambem ia, mas já não são passeios para mim, e depois estes criados...

Henrique de Souzellas receiou nova divagação sobre o assumpto predilecto de D. Victoria; mas felizmente acudiu-lhe a morgadinha, que disse, terminando a leitura da carta:

― Escreve-me o pae que tenciona vir passar comnosco as ferias do Natal e trazer Angelo comsigo. Promette demorar-se até o dia dos Reis.

As creanças saudaram a nova com gritos de alegría, e saltos de causarem inveja a um clown de circo.

D. Victoria zangou-se.

—­Então que pouca vergonha é essa? Parecem-me um bando de patetas! Ora vamos! Já quietos. A culpa tem a Ermelinda, que já vos devia ter levado para a quinta. Ó Senhor, está praga de criados, que nunca ha de fazer a sua obrigação!

As creanças reprimiram um pouco maïs as expansões de seus júbilos, mas ainda ficaram cantando a meia voz, em musica de composição d’ellas, o seguinte:

—­Vem o primo Angelo! Vem o primo Angelo! Ora viva, viva! Ora viva, olé!

—­Pschiu! Calae-vos!—­bradou ainda D. Victoria; e voltando-se para Magdalena:—­Mas então como se entende isso, Lena? Então o pae diz que vem...

—­Nas vesperas do Natal.

—­Sim, nas vesperas do Natal, e vae...

—­Depois dos Reis.

—­Sim; está bem; e... sim... e então o Angelo?...

—­O Angelo vem com elle. Quer vêr a carta?

—­Não, menina. Mas é preciso não fazer confusão... Então...

—­Não ha nada menos confuso... É só isto.

—­Sim; pois agora, sim; agora está bem claro. Calae-vos, diabretes! Ó meu Deus, que consumição! Mas então por que não entregou o criado ha maïs tempo essa carta? Eh! não que vocês dizem que elles...

—­Ó tia, pois não ouviu que foi a mulher das cartas que se demorou, porque...

—­Historias! Não me venham para cá com esses contos. Vocês estão sempre promptos para desculpal-os. São elles...

—­Ó Lena, Lena—­diziam as creanças—­o primo Angelo não torna para Lisboa?

—­Ha de tornar.

—­Ora!

—­Olha lá, ó Lena—­disse D. Victoria—­sabes tu o que me lembra?... Mas eu nem sei... com estes criados que tenho... Mas a mim lembra-me... uma vez que teu pae vem com o pequeño... e... está agora cá o primo Henrique... lembra-me a mim... mas, já digo, era se eu pudesse contar com os criados que temos... lembra-me, juntarmo-nos todos para consoar... A prima Dorothéa tambem, e aquí o primo; mas era se...

Uma perfeita ovação acolheu o projecto; as creanças levaram as suas demonstrações de enthusiasmo até o delirio, penduraram-se ao pescoço, á cinta, ao avental da mãe, gritando todas a um tempo:

—­Ai, sim, mamã, sim; mande convidar a tia Dorothéa, mande! E ha de ficar em casa, sim? Olhe e... e arma-se o presepe... e... e... e havemos de cantar as janeiras... Mande, mande, mamã, por as alminhas; ora mande.

D. Victoria fingia arrenegar-se com aquella pequenada, e erguia o braço, como para a fustigar asperamente, mas, contra a sua vontade, rompia-lhe o riso dos labios.

—­Saiam d’aqui!—­exclamava ella, quando conseguiu estar séria.—­Saiam!... Não ouvem?... Espera que eu vos falò... Ai, não fazem caso? Ora esperem... Marianna, já devias ter maïs juizo... Então, Eduardo! Tu tambem? Não tem vergonha! Um homem quasi! Saiam d’aqui, estafermos!

A ideia das consoadas em familia fôra uma ideia que a ninguem deixára impassivel. Christina, a timida Christina, não disfarçou um movimento de jubilo; as mãos ajuntaram-se-lhe instinctivamente, e raiou-lhe no olhar suave um fulgor pouco costumado.

A propria Magdalena não se mostrou superior áquella tocante puerilidade.

Approximou-se com viveza da tia, e beijando-a nas faces, disse-lhe affectuosamente:

—­Ora ahi está o que é muito bem pensado.

—­Pois sim, sim, mas o peor é... os criados—­disse D. Victoria.

—­Quem fala n’isso? Na noite de Natal quem maïs trabalha somos nós. Demais, teremos, para dirigir as tarefas, a Maria de Jesus, a criada da tia Dorothéa.

—­Isso é que é a perola das criadas! Oh! aquella prima Dorothéa, aquella sua tia, primo Henrique, é que teve felicidade! Mas dizes tu... Bem se importam os de cá com a Maria.

—­Não tem dúvida. N’aquella noite quanto maïs barulho e desordem, melhor—­aventurou-se a dizer Christina, com impeto revolucionario.

—­Ahi temos outra! Não, filha; isso é que não. Para barulhos é que eu já não estou. Então, não.

—­Está resolvido—­disse a morgadinha, para cortar pelas divagações da tia.—­Aquí o sr. de Souzellas—­accrescentou, com maliciosa inflexão—­fica desde já encarregado de transmittir á tia Dorothéa o nosso plano e, ao mesmo tempo, officialmente convidado.

—­Acceito da melhor vontade.

—­Não sei se o deverá dizer. É preciso que o avise de que n’aquella noite todos teem de trabalhar na cozinha; a ninguem se dispensa, um minuto, pelo menos, de collaboração nos guisados. Por isso veja lá....

—­Ó menina, tens coisas!—­disse D. Victoria.—­Deixe-a falar, primo.

—­Não é deixe-a falar. Eu não dispenso ninguem.

—­E eu prometto não me recusar. Promptifico-me a tornar detestaveis os pratos em que puzer a mão. Que maïs querem?

Foi alegremente acolhida a promessa.

As creanças, familiarisadas já com Henrique, em quem tinham adivinhado um humor jovial, o que é sempre para ellas um motivo de attracção, trepavam-lhe já aos joelhos e dirigiam-lhe perguntas sobre perguntas, difficultando-lhe as respostas.

—­Havemos de jogar o rapa, não havemos?

—­Havemos de jogar, havemos—­respondeu Henrique.

—­E o par où pernão?

—­Tambem; tambem havemos de jogar o par où pernão.

—­E?...

—­Tudo, tudo; havemos de jogar tudo.

—­Olhe: e sabe contar historias?

—­Sei tambem contar historias.

—­Então ha de contar-nos, que nós tambem lhe contamos a da Gata borralheira, a da Maria de pau e a da Menina com as très estrellinhas na testa.

—­Ora, o sr. Henrique já as sabe—­disse, fazendo-se sisuda, Marianna.

—­Pois não sei, não, senhora; quem lhe disse que eu as sabia? hei de querer ouvir isso tudo.

—­Ó meninos!—­exclamou D. Victoria, que até alli estivera distrahida a discutir com Magdalena.—­Então isso que é? Já para baixo. Ai, se lhes dá confiança, está arranjado, primo.

—­Deixe-os estar, minha senhora, este contacto de alegrías é salutar; pegam-se.

—­E não o diga a brincar—­disse Magdalena—­que tambem confio n’essas creanças para o curarem dos seus males.

—­Então devéras emprehendeu curar-me?

—­Com toda a certeza.

—­N’esse caso havemos de discutir devagar esse ponto de pathologia.

—­Não havemos, não, senhor. É mau medico o que soffre que o doente o interrogue sobre a molestia e o tratamento. O medico deve ser obedecido com fé, e cega.

Christina que, havia muito, defronte de Magdalena, fazia esforços por lhe chamar a attenção, resolveu-se a falar-lhe.

—­Lena—­disse ella—­que te parece a lembrança que teve ha pouco a mamã?

—­A das consoadas? Excellente.

—­Não, menina, a do passeio á ermida.

—­Ah! Excellente tambem. Marquemos já o dia.

—­Quando queres?

—­Depois de ámanhã, que é quinta feira.

—­Seja.

—­Que diz, primo Henrique?

—­Quando quizerem, primas; agora mesmo...

—­Mas, veja lá, atreve-se a fazer uma madrugada?

—­Pois não viu hoje?

—­Ai, pois não! Na aldeia não se chama isso uma madrugada. É preciso que se levante ás horas, a que se deitava na cidade.

—­Que estás a dizer, Lena?—­acudiu Christina.—­Deixa-a falar. Basta que saiamos d’aqui ás cinco horas.

—­Esta innocente Christina! Pois não é o mesmo que eu digo? Pergunta ao primo Henrique se tinha costume de se deitar maïs cêdo em Lisboa.

—­Engana-se, prima Magdalena; lembre-se de que, ha perto de um anno, sou valetudinario.

—­Ai, é verdade, que me tinha esquecido. O que vejo é que ha por aquí muita indolencia.

—­Quem a ouvir falar, ha de julgar que será ella a maïs madrugadora; ora havemos de vêr—­disse Christina.

Magdalena poz-se a rir.

E o passeio ficou ajustado. A morgadinha lembrou que se convidasse Augusto, por ser conhecedor do sitio e poder mostrar os maïs bellos pontos de vista.

Henrique saiu finalmente da quinta do Mosteiro, já retardado uma boa hora ao que prometterà á tia Dorothéa.

Um criado serviu-lhe de guía até Alvapenha.

Henrique de Souzellas, ao findar aquella manhã, era inteiramente outro, do que viera para a aldeia. Todas aquellas horas se haviam passado, sem que o affligissem os males habituaes, sem que nem sequer pensasse n’elles. O viver intimo a que assistira, a troca reciproca de affectos entre os membros de tão numerosa familia, a franqueza cordial com que fôra recebido, produziram n’elle uma impressão profunda.

Costumado ao viver desconsolador e de gêlo de rapaz solteiro e só; não passando, nas casas que visitava, além da sala de visitas, esse palco artificioso e reservado, onde as familias ante as familias representavam a comedia social, Henrique estranhára, mas agradavelmente, o espectáculo, quasi novo, d’aquelle interior, d’aquelles modestos costumes, d’aquellas alegrías, que não se envergonham de apparecer sem reservas nem disfarces. Foi uma revelação que recebeu. Sorriu-lhe a ideia de ter um dia uma familia assim; de viver entre creanças que lhe trepassem aos joelhos, na companhia de affectos, que alli via manifestarem-se, e até com alguem que ralhasse com os criados, á maneira de D. Victoria.

Escusado é dizer que a imagem da morgadinha apparecia sempre n’estes quadros que lhe traçava a phantasia: assim como, nos quadros dos grandes mestres, apparecem quasi sempre reproduzidas as feições queridas da mulher que elles traziam no pensamento e a quem deram assim a immortalidade.

De manhã parecera-lhe a aldeia um paraíso terreal; completára-o a figura de uma mulher; sem o sorriso d’ella nem o primeiro homem seria feliz no eden, onde a mão de Deus o collocára.

—­Anda, vagaroso, anda—­disse D. Dorothéa a Henrique, assim que o viu chegar.—­Se o jantar tiver esturro, a culpa é tua.

—­Perdôe-me, tia. Demorei-me no Mosteiro...

—­Ah! foste lá? E então gostaste d’aquella gente?

—­É uma familia para o coração. Passa-se o tempo alli tão depressa! A morgadinha, sobretudo, é adoravel!

—­Ai, aï; como elle nos vem! Olha lá no que te mettes, menino! A mina boa é, mas... filho, anda alli encanto, que ainda ninguem descobriu.

Henrique fitou os olhos na tia Dorothéa, que dissera isto com certa malicia.

—­Que quer dizer, tia?

—­Tu bem me percebes. Anda lá, anda. Se fizesses tu o milagre, se quebrasses o encanto, grande coisa seria; mas sempre te digo que não tomes a coisa a peito, que podes aggravar o teu mal.

Henrique levou o caso a rir, mas é certo que esteve um pouco maïs preoccupado e distrahido no resto da tarde.