A Morgadinha dos Canaviais/XVIII

Wikisource, a biblioteca livre

XVIII


Do dia de Natal ao dia de Reis passou o tempo para o conselheiro em visitas ás freguezias e aos influentes d’aquelle circulo eleitoral, visitas a que o acompanhava Henrique de Souzellas, que tomava parte, com gôsto, n’estas excursões politicas.

Em casa do sr. Joãozinho das Perdizes, na freguezia de Pinchões, passaram elles um dia. Nos solares do morgado tudo era desordem e desmazelo; a cada passo se tropeçava n’um podengo où se trilhava a cauda a um perdigueiro. Henrique sustentou uma verdadeira lucta com o proprietario, para esquivar-se a engulir todas as énormes dóses de carne de porco e de vinho, com que elle, á viva fôrça, o queria regalar.

No quarto em que os hospedes pernoitaram estavam amontoados no meio do chão uns poucos de alqueires de milho e de castanhas, e aos pés dos leitos dormiram enroscados dois galgos, que elles não conseguiram desalojar, e que toda a noite os incommodaram com latidos ao menor rumor que escutavam fóra.

Henrique lamentou a influencia eleitoral do morgado das Perdizes, que o obrigava a está noitada.

Outro dia jantaram em casa do brazileiro, que lhes mostrou toda a sua propriedade, tendo Henrique de obrigar a sua eloquencia a esgotar-se em affectadas exclamações, deante dos prodigios de mau gôsto reunidos alli.

As estatuas de louça, os alegretes de azulejo, os arcos feitos de cana, por onde se entrelaçavam magras trepadeiras; um pequeño modelo de fragata brazileira com tripulação de altura dos cestos de gavia, fluctuando n’um tanque circular; uma gruta estucada de azul e com assentos de palhinha, para onde vinha ler as folhas o sr. Seabra, eram as principaes maravilhas do jardim. Nas salas mobilia rica, mas vulgar; lithographias coloridas em custosas molduras douradas; bordados, diplomas de socio de não sei quantas sociedades brazileiras; tudo encaixilhado, e no logar de honra a estampa das capellas do Bom Jesus de Braga. Á impertinencia de admirar estás preciosidades accrescia a de ouvir e de ter de achar graça a um papagaio que cantava o hymno brazileiro.

Henrique saíu de lá exhausto de paciencia.

Com estás visitas politicas, passou, como dissemos , todo o periodo das festas do Natal, sem que entre as personagens da nossa historia occorresse coisa que mereça nota.

Entre Magdalena e Henrique mantinha-se a mesma lucta moral; nem um nem outro recordavam declaradamente a scena nocturna, em que tão acerbas palavras se haviam trocado. Augusto não voltára ao Mosteiro desde então. Era tempo de férias para as creanças, o que fazia natural está ausencia, contra a qual Angelo em vão protestava. Magdalena nunca porém alludia a ella. Christina passava o tempo, querendo-se mal por a sua timidez, e de quando em quando amuando de ciumes com Magdalena, que ria d’elles e os dissipava com uma palavra.

Chegou emfim o dia de Reis, aquelle em que devia realisar-se no pateo do Mosteiro o auto que, havia muito, mestre Pertunhas andava ensaiando.

Henrique e D. Dorothéa vieram jantar ao Mosteiro, e ficaram para assistir á solemnidade popular.

Já por vezes temos ouvido falar n’este auto, que promettia ser coisa memoranda nos annaes dos festejos publicos da terra. Havia mezes que o sr. Pertunhas esgotava os thesouros da sua sciencia dramatica a ensaial-o, e vimos com antecipação andar Ermelinda decorando a parte da Fama, que lhe competia desempenhar.

Estes autos e entremezes, que nas aldeias se representam, são como os restos grosseiros que da nossa arte primitiva a varredura estrangeira deixou ficar pelo chão.

Não obstante as extravagancias e as modelações toscas e risiveis de muitos, é certo que nos mostram que a Euterpe rustica tem conservado maïs fiel a indole peninsular, do que sua irmã, a civilisada musa das cidades, a cujo paladar já sabem mal as popularissimas redondilhas, tão apreciadas ainda na Hespanha.

Em occasiões de festa levanta-se em qualquer terreiro où pateo de quinta um tablado; veem adornal-o as mais vistosas colchas de chita, das quaes tambem se formam os bastidores; alugam-se nos depósitos maïs modestos da cidade où villa proxima vestidos de reis, de principes e de guerreiros, em que se combinam os elementos de épocas e de nacionalidades disparatadas, e perante uma plateia rustica, ao ar livre, como no theatro antigo, desfiam-se em cantada choradeira as sentimentaes peripecias da vida de qualquer santo, où, entre gargalhadas, os episodios comicos do algum enredo popular.

A circumstancia de ser o auto d’esta vez desempenhado no pateo do Mosteiro, e que fôra em parte por deferencia ao deputado do circulo, em parte por conveniencia dos emprezarios, pela apropriação do terreno a todos os effeitos, e pela ajuda de custo, que sempre em taes casos recebiam de s. ex.^a, essa circumstancia, dizemos, augmentava o numéro de espectadores.

Das janellas do Mosteiro gosava-se, como de um camarote de frente, do espectáculo popular.

O terreiro era destinado para o povo, em grande parte attrahido tambem pela pipa de vinho, que o conselheiro n’estes dias mandava pôr á disposição dos seus representados.

Desde a vespera havia grande agitação e azafama no pateo do Mosteiro. Os artifices levantavam o tablado scenico; pregavam e despregavam taboas; serravam barrotes; os directores, e á frente d’elles o infatigavel e imaginoso Pertunhas, davam ordens contradictorias; e os curiosos estacionavam em magotes, difficultando tudo, censurando o que viam fazer, e aventando alvitres absurdos.

Herodes, o pae de Ermelinda, andava em brazas. Approximava-se a hora dos seus triumphos. O genio dramático palpitava n’elle, cheio de, vida e de enthusiasmo.

Ia maïs uma vez pousar nos hombros o manto da realeza judaica; brandir a espada infanticida, carregar aquelles sobrecenhos com que fazia chorar as creanças e estremecer as mães; ia resuscitar Herodes, o déspota legendario.

Trabalhando e suando, resmoneava os versos do seu papel de tyranno e insensivelmente fazia gestos e esgares promettedores de effeitos scenicos futuros.

Os seus collegas eram menos ardentes pela arte. O Herodes olhava-os com a sobranceria de um Talma, e muitas vezes lamentava sinceramente a ausencia de vocações dramaticas que auxiliassem a d’elle.

E não sorriam os leitores a está velleidade artistica do recoveiro; alli havia fundamentos para ella. O Cancella era o minerio de um tragico, deixem-me assim dizer. No meio de uma escoria de rusticidade continha abafado mineral de lei.

Tivessem sido outras as contingencias da sua vida, vêl-o-hiam porventura arrebatar plateias inteiras com as revelações do genio, que ás vezes n’um grito, n’um sorriso, n’um gesto se manifesta; mas ainda assim inculto, não mentia n’elle o verdadeiro enthusiasmo, o sentimento da arte que lhe afogueava as faces e os olhos, e lhe animava o gesto no calor do desempenho; não mentia aquella embriaguez que lhe causavam os applausos da multidão. Não ha verdadeiro genio artistico, que se não namore do publico, embora o saiba caprichoso, inconstante e ingrato. O homem, indifférente aos applausos das turbas, nunca será poeta nem artista de verdadeira inspiração. O amor vivo da gloria adeantou a meio caminho os emprehendedores d’esta nova conquista de vellocino.

Ermelinda, essa tremia com a commoção de artista novel, á lembrança do espectáculo, em que pela primeira vez ia entrar.

As senhoras do Mosteiro, où antes Magdalena e Christina, tinham querido encarregar-se da toilette da Fama.

Logo de manhã fôra pois a pequena Linda para o Mosteiro, e passava das mãos de Magdalena para as de Christina e das d’esta para as d’aquella, e sempre com recato preciso para que ninguem maïs lhe puzesse os olhos, pois que pretendiam reservar para a occasião a surpreza toda. Contra a curiosidade de Angelo é que maïs tiveram que luctar.

Logo depois da uma hora da tarde começou a povoar-se o pateo de espectadores e, os actores a reunirem-se na parte do tablado, occulto por as colchas de chita aos olhares da multidão.

Principiava a ensaiar os instrumentos o pessoal da philarmonica, dirigida por mestre Pertunhas, cuja trompa célèbre servia tambem de batuta.

Chiava já o clarinete, assobiava o flautim, roncava o figle, uivava a flauta, e todos promettiam aos ouvidos a maïs inharmonica das torturas.

Mestre Pertunhas, distribuidas as partituras, e vendo todos a postos, deu o signal de principiar.

Um, dois, très; um, dois—­dizia où fazia elle com os olhos e com os movimentos da cabeça e pés, porque a bôca, essa já estava applicada á embocadura da trompa. O segundo «très» era o tempo fatal. Os musicos, porém, où por distrahidos, où por a commoção propria dos actos solemnes, não corresponderam ao signal, e a nota furiosa, extrahida da trompa do mestre Pertunhas, achou-se só no espaço, e fugiu envergonhada a esconder-se na concavidade dos montés vizinhos, deixando na passagem os ouvidos quasi em sangue.

Este successo foi saudado com uma gargalhada geral, que redobrou quando as notas dos outros instrumentos, vendo partir desacompanhada a nota chefe e reconhecendo a falta, saíram alvoroçadas atraz d’ella, cada uma por sua vez. Foi uma debandada musical de indescriptivel effeito.

O auditorio, o sempre implacavel auditorio popular, apupava. Henrique e o conselheiro riam, os actores do auto espreitavam detraz da cortina a vêr o que era aquillo. Mestre Pertunhas barafustava por entre os da banda, berrando, ralhando, cheio de cólera e de razão.

Uma symphonia com quatro mezes de ensaios! A falar a verdade!

Ordenadas as coisas, rompeu emfim a symphonia.

Os typos dos artistas, marcialmente uniformisados com fardas que fôram de um corpo de infantería, eram para tentar o lapis de um Cham où Gavarni. Alli um gordo e rubicundo merceeiro, que ameaçava estalar todas as costuras da farda, primitivamente feita para um individuo de metade das dimensões d’elle, com as faces insufladas, a testa contrahida e os olhos injectados para extrahir de um obsoleto serpentão, que embocava com arreganho assustador, as maïs destemperadas notas; acolá um flautim, de braços compridos e tibias esquinadas, com meio braço fóra das mangas, com meia perna de fóra das calças, figura em que havia não sei o que de onomatopaico, tão bem se casava com os silvos, horripilantemente agudos, que arrancava do exiguo instrumento. O artista pratilheiro era um velho recurvado, de nariz adunco, faces escavadas, olhos de coruja, suissas em tufos no meio das faces, e oculos na ponta do nariz. Um zarolha evacuava os pulmões dentro de um figle; um corcovado e semi-anão repicava os ferrinhos com uma prodigalidade assustadora; as baquetas da caixa estavam confiadas ás mãos callosas de um moço de lavoura, de rêpas hirsutas a cobrir-lhe a testa, olhos esbogalhados e labio pendente. E, no meio d’estas e analogas figuras, a alma de tudo, o sr. Pertunhas, torcendo-se, batendo com o pé, suando, arregalando os olhos, piscando-os, marcando o compasso com a cabeça armada de énorme trompa, que lhe dava então não sei que apparencias de proboscidiano.

Tal era a philarmonica da terra, que Henrique, o conselheiro e toda a familia do Mosteiro escutavam das janellas, e á qual tiveram de dispensar elogios, que o régente acceitou com a modestia de artista que se conhece. Henrique foi quem mais sublimes esforços fez para soffrer com paciencia aquellas torturas acusticas. Elle que nem á orchestra de S. Carlos perdoava uma desafinacão, obrigado a escutar com um sorriso aquella banda pandemonica!

— Coragem! coragem! — murmurava-lhe o conselheiro, impassivel como perfeito politico. — Nas occasiões é que os homens se conhecem! Coragem.

— É em extremo forte a provação! — respondia-lhe, gemendo, Henrique.

— Firmeza; que a pallidez do susto nos não atraiçoe — continuava aquelle.

Isto obrigava Henrique a nova lucta; d’esta vez para manter a seriedade.

A final calou-se a banda, sem que se pudesse dizer o que tinha querido tocar. Succedeu-lhe um intervallo de silencio. Passou pela assembleia o estremecimento que precede as occasiões solemnes. Os olhares de tantos espectadores fixavam-se na coberta de chita que já se via ondular. Ouviu-se um surdo rumor, significativo de anciedade, como se fôra a resultante do palpitar de tantos corações.

Appareceu emfim a primeira personagem do auto. Era o Herodes.

A alta e membruda figura do pae de Ermelinda, com os seus hombros largos, as faces injectadas, o olhar faiscante, os cabellos e barbas negros e espessos, o andar grave e pesado, sob o qual gemiam as juncturas do tablado, o timbre volumoso de voz e certo arreganho selvatico, com que falava e gesticulava, imprimia na multidão um quasi pavor, que nem o conhecimento intimo que tinha do homem conseguia dissipar.

Herodes trazia manto real e turbante musulmano, borzeguins vermelhos, corpete de velludilho azul, calções golpeados. Pendia-lhe á cinta um alfange e uma pistola; ao peito algumas condecorações.

Apparencia geral, a dos prophetas nas procissões.

O auto rompe com um monologo de Herodes.

O tyranno da Judéa, sobresaltado e meditabundo, faz considerações substanciosas sobre a condição dos reis em geral e a sua em particular. Principia elle assim:

Não ha vida mais inquieta,
Nem mais cheia de cuidados,
Do que a de um rei que pretende
Conservar os seus estados.

O Cancella dizia isto em tom pausado, com os braços cruzados, medindo o palco a passos largos.

Continuavam varias proposições de physiologia do throno, e, do caso generico baixando ao particular, da these á hypothese, principia a falar de si. Cancella, conhecedor dos segredos da arte, começava aqui a dar mais vida á recitação, como para mostrar o maior empenho que tomava a alma n’este capitulo da especialidade. Referia-se aos annuncios da vinda do Messias, e inquietava-se; a maré das paixões subia; a voz traduzia-lhe o crescimento. Depois seguia-se um como reflexo de desalento, para com mais violencia se exaltarem os affectos. Nos paroxismos da furia, o Cancella, dando toda a fôrça á sua voz potente, soltava berros, que participavam da natureza dos do tigre.

Começarei desde logo
A publicar leis tyrannas,
Que aterrem os meus montes,
Os palacios e as choupanas.

Será tal o meu furor,
Tal a minha indignação,
Que ninguem se atreverá
A conquistar meu brazão.

O interesse do espectaculo augmentava. Os olhos do publico principiavam a fixar-se. A excitação de animos a que os transportes de Herodes, inquieto pelo seu brazão, levára o publico, foi serenada por um chorado côro de anjos que cantavam atraz da cortina:

Não temas, ó rei cruel,
Que te conquiste o docel.

Herodes pára aterrado, ao escutar estas vozes, apesar de lhe afiançarem a segurança do docel, pela qual elle parecia receioso. Vacilla, entra-lhe o mêdo no coração, mêdo que procura afugentar com bravatas, em que ameaçava pôr tudo por terra. O Cancella exprimia tudo isto com abundancia de gestos e de movimentos.

Aqui é que subia a toda a altura o genio dramatico do Herodes. Para este final do monologo reservava todos os segredos da arte; apoderava-se d’elle a musa do palco; desappareciam-lhe deante dos olhos os espectadores, via o mundo; perdia a consciencia da individualidade propria; suppunha-se Herodes; e até... ó fôrça da arte! offuscavam-se-lhe os bons instinctos da indole generosa e quasi chegava a ter verdadeira ancia de sangue e carnificina. O publico era dominado por o artista, e n’um d’estes silencios que todos prevêem se desencadeiará em brados de enthusiasmo e phrenesi, escutava-lhe as duas quadras finaes:

Porém o furor me incita!

Dava, ao dizer isto, tres passos á frente, desembainhava o alfange e abria os braços. Tinha o que quer que era de Adamastor, visto assim.

O brio dá-me ousadia.

Levantava os braços acima da cabeça, espalmando a mão esquerda.

Para defender o sceptro
A favor da tyrannia!

Aqui agitava os braços como azas de moinhos.

Será cada lança um raio!

E, dizendo isto, tinha nos olhos o fulgurar do relampago.

Cada espada um corisco,

E o braço, armado do alfange, baixava com a rapidez do simile.

Cada soldado um trovão,

E trovejava-lhe a voz.

Cada golpe um basilisco!

E na posição e gesto em que ficava, não era menos terrivel e pavoroso do que a fera da comparação.

Uma tempestade de applausos rompeu de todos os lados; só as mulheres e as creanças ficaram silenciosas e immoveis, porque lhes parecia um peccado applaudirem Herodes. E não sei se, o que fizera menos escrupulosa n’este ponto a parte masculina, fôra o exemplo partido das janellas do Mosteiro; porque é certo que em geral os tyrannos no palco são admirados, mas raras vezes applaudidos.

Herodes, depois de agradecer os applausos publicos, senta-se e segue o auto.

Dariamos de bom grado na integra tão importante peça dramatica ou pelo menos circumstanciada noticia d’ella, se não receiassemos o recheio excessivo para esta ordem de alimentos litterarios, que se querem leves. Não podemos comtudo resignar-nos a passal-a por alto inteiramente.

Além do Herodes, são figuras do auto: o caixeiro do dito — assim se lhe chama pelo menos no folheto, o que dá a entender que Herodes era homem de escripturacão regular, — o capitão das tropas reaes, os tres reis magos, o anjo, a Virgem, S. José e o menino Jesus, a criada de Santa Isabel, dois cidadãos de differentes cidades, o criado de um d’elles, a Fama e duas creanças, chamadas Giraldinho e Amorzinho.

As scenas passam-se successivamente nos paços de Herodes, na lapa de Belem, e em diversas paragens da estrada do Egypto.

A imaginação do espectador era a encarregada da mudança do scenario.

O poeta corre toda a clave das paixões humanas, vibra todas as cordas do coração.

Ao terror despertado por Herodes e suas ameaças, succede a sympathia pelos tres reis, personificados d’aquella vez por tres moços de lavoura, de manto, luvas de algodão e turbante, os quaes, em lamuria nasal e com profusão de xes, cantarolavam as quadras do seu papel, em uma das quaes, patrioticamente anachronica, pediam aquelles bons magos ao Deus nascido a protecção para Portugal.

Excitava a piedade a familia sagrada. O velho S. José, como carpinteiro que era, apparelhava um madeiro a enxó e plaina, emquanto a Virgem dormia. A Virgem era um rosado barbatolas, em quem principiava a despontar o buço da puberdade. O anjo apparecia, como nas procissões, carregado de cordões de ouro.

No transe da fugida para o Egypto ha uma scena da mais que homerica simplicidade. Quando os sagrados esposos estão para partir, chega a elles a criada de Santa Isabel, prima da Senhora, outro mocetão em trajes femininos, e da parte da ama offerece aos foragidos algum dinheiro e refrescos; pedindo desculpa por não poder dar quanto queria, o que tudo a Senhora agradece com as phrases da tarifa, recommendando-se muito a sua prima.

O comico caminha ao lado do pathetico, como no drama moderno. Ha personagens, reflexões e scenas sempre apreciadas e já aguardadas pelo publico, que as saúda com sinceras gargalhadas. D’estas a principal é evidentemente a que se passa entre um cidadão, de quem a sacra familia recebe gasalhado, e o criado do mesmo.

É uma scena de disputa domestica, cheia de allusões satyricas á classe dos criados de servir, a qual era sempre applaudida. O cidadão, depois de mostrar ao criado, de relogio em punho — anachronismo shakspeareano — a demora excessiva que elle tivera fóra de casa, diz para o auditorio:

Não se pode ter criados
Hoje em dia, n’esta vida,
Ou quem houver de os ter
Não lhes deve dar guarida.

N’este ponto do auto houve aquella tarde um pequeno, mas gracioso episodio.

D. Victoria, que achava esta a parte melhor pensada e mais conceituosa de toda a peça, de afinada que estava pelo seu modo de sentir, não pôde conter-se, que não exclamasse:

— Aquillo é que é uma verdade!

A espontaneidade da reflexão fez rir a familia do Mosteiro, riso que teve ecco em baixo, entre o povo, que enchia o pateo.

A scena comica prolonga-se, mandando o patrão distribuir pelo caixeiro o rapé ao auditorio; outra liberdade que produzia sempre o maior effeito.

O criado trazia uma enorme tabaqueira, um verdadeiro bahu, e offerecia pitadas ao publico, dizendo:

O meu amo, com ser rico,
Gosta d’estas patuscadas.
Nunca os senhores tiveram
As pitadas tão baratas.

Os risos e as galhofas desordenaram, segundo o costume, por muito tempo a regularidade do espectaculo. Todos tiravam pitadas, todos falavam, riam e guinchavam, todos fingiam espirrar e não se ouvia senão: «Dominus tecum» e «Deus te salve» no meio de toda aquella confusão. Porém a um signal de mestre Pertunhas, que deixou por um pouco folgar o espirito das massas, tudo entrou na ordem.

Preparava-se nova transição dramatica. O criado, que vae a saír, volta, dizendo com gesto espantado e tom exclamatorio:

Jesus, Jesus, que é isto?
Jesus do meu coração!
O signal da cruz me livre
De tão terrivel visão.

Era a Fama que apparecia.

Ermelinda entrava em scena.

No meio d’aquellas figuras rusticas, e mais ou menos grosseiras, que entravam no auto, a figura delicada e angelica de Ermelinda produzia tão completo contraste, que um murmurio significativo de profunda sensação correu o auditorio.

Ermelinda estava surprehendente de formosura. Haviam-se associado ao que era n’ella dotes naturaes os cuidados de Magdalena e de Christina, para lhe darem a apparencia superior.

O proprio Henrique, que até alli estivera commentando maliciosamente o espectaculo, não pôde reter uma exclamação de surpreza, que foi secundada por o conselheiro. É que parecia que um verdadeiro anjo occupava agora a scena.

A simplicidade do vestir concorria para esse effeito.

Ermelinda trazia uma longa tunica alvissima e de amplas mangas, que lhe descia solta dos hombros sem sacrificar a menor belleza dos graciosos contornos e esbeltas proporções d’aquella creança, que promettia ser uma mulher esculptural. Os cabellos, cuja côr loura era de uma pureza rara, caíam-lhe desatados e profusos sobre os hombros, brilhando como fios de ouro, na alvura dos vestidos; a fronte ficava-lhe livre, e o oval das faces sobresaía n’aquella moldura natural. Com os braços descaídos, os dedos encruzados, e a cabeça ligeiramente pendida, em expressão de melancolia, e os olhos elevando-se para procurarem os de Magdalena e de Christina nas janellas do Mosteiro, mas que de longe parecia procurarem o céo, Ermelinda adeantava-se vagarosa, serena, tendo no gesto o encanto da innocencia, tendo nos passos a hesitação da timidez. Havia tanto de sobrenatural no vulto candido, franzino e melancolicamente suave d’aquella creança, que o actor que estava em scena não teve de simular espanto, porque o sentia real, e não podia desviar os olhos d’aquella apparição.

O silencio era profundo; parecia que em todos estava actuando a fôrça de um encantamento.

Como na antiga tragedia, o facto principal da acção, a carnificina dos innocentes, passava-se fóra de scena. Á Fama competia narral-o.

Ermelinda, a meio do palco, parou. Com uma voz argentina e leve tremor de commoção, principiou lentamente e no meio de um religioso silencio a recitar os versos da narração, os quaes, como o leitor já sabe, não eram os do auto, que mestre Pertunhas se estafára a ensaiar.

Os versos que Ermelinda recitou diziam assim:

Desci dos celestes córos,
Por Deus mandada a escutar
Da infancia as queixas e os choros,
Para lh’os ir confiar.

Desci. Na terra, nos mares
Tanta miseria encontrei.
Que os meus magoados olhares
Da terra e mar desviei.

Desci. E tantos gemidos,
Tão dolorosos ouvi!
Que, turbados os sentidos,
Quiz recuar... mas desci.

N’esta colheita de dôres
Pelo mundo todo andei,
No pranto dos peccadores
As minhas vestes molhei.
 
Vagueando dias e dias,
Chegára á Judéa emfim,
Quando um clamor de agonias
Veio de longe até mim.

O sol, o sol inflammado
D’estas terras orientaes,
Tinha no disco afogueado
Não sei que estranhos signaes.

Soavam menos distantes
Sinistros brados de dôr,
Choros de mães e de infantes,
Cantos de morte e terror.

Vi anjos de azas nevadas
Em bandos subir ao céo,
Quaes pombas amedrontadas
Fugindo á voz de escarcéo.

«Onde ídes? Quem vos persegue?
A que tormentas fugis?»
Um, que triste o bando segue,
Estas palavras me diz:

«Somos as almas de infantes
Mortos em guerra feroz;
Inda das mães delirantes
Nos chama a sentida voz.

«Só a materna saudade
Nossa carreira detem,
Embora no céo, quem ha de
Esquecer, o amor de mãe?»

Disse e o semblante formoso
Com as azas encobriu,
E ao bando silencioso
Silencioso se uniu.

Eu segui. Na impia cidade
Aterrada penetrei...
Ai, da fera humanidade
Os meus olhos desviei!

Que scena! Corre nas praças
Sanguinaria multidão,
Como nuvem de desgraças
Semeando a desolação.

Cáem por terra sem vida
Tenras creanças ás mil,
E uma turba enfurecida
Corre á matança febril,

As mães pallidas, chorosas,
Supplicam, pedem em vão!
N’essas feras sanguinosas
Não palpita um coração.

Outras tentam em delirio,
Os seus filhos disputar,
E com elles no martyrio
Gostosas se vão juntar.

Sobre a terra ensanguentada
Eu soluçando, ajoelhei,
E de intensa dôr magoada,
A Deus piedade implorei.

Findava a prece, e uma estrella
No horisonte despontou,
Pura, scintillante, bella
O caminho me traçou.

Á humilde e escondida estancia
Da venturosa Belem
Cheguei; vi um Deus na infancia
Nos ternos braços da mãe.

Minha colheita de dôres
N’aquelle berço depuz,
Da humanidade aos rigores
Pedi remedio a Jesus.

No olhar do divino infante
Raiou a luz e fulgor,
Foi a aurora radiante
Que annuncia um redemptor.

Não se descreve a impressão causada por estes versos, que assim transformavam a Fama do auto no Anjo da guarda da infancia. Muitas causas concorriam para produzir este effeito: a figura, a voz e o gesto de Ermelinda, que lhe davam uma apparencia verdadeiramente angelica, e depois aquellas palavras inesperadas, aquella exposição desconhecida e em versos a que a melancolia da toada, em que eram recitados, parecia augmentar a cadencia metrica. Emquanto debaixo da impressão d’aquella voz sonora e infantil, ninguem procurava explicar o mysterio. Milagre lhes parecia e quasi como milagre o acceitavam, e de ouvidos attentos, collos estendidos e bôcas semi-abertas parecia recolherem, uma a uma, aquellas palavras, como se de um verdadeiro emissario celeste as escutassem. O tablado enchera-se pouco a pouco de gente, e ninguem dera por isso. Os actores que estavam atraz da cortina tinham sido feridos pelos primeiros versos, differentes dos que elles esperavam; isto obrigou-os a espreitar. Depois, como arrastados pela magia d’aquella voz e d’aquelle gesto, vieram adeantando-se, adeantando-se, e cêdo formaram circulo á volta de Ermelinda. O primeiro da frente era o Herodes. O espanto, os affectos, o orgulho de pae, a exaltação de artista combinavam-se para dar-lhe ao rosto uma expressão quasi de extase. Olhava para a filha como se a visse animada de inspiração divina.

Pertunhas, o ensaiador do auto, que franzira o sobr’olho, prevendo trapalhada aos primeiros versos recitados por Ermelinda, agora, de bôca aberta, era de todos o mais espantado. No Mosteiro só Angelo sorria, elle só interpretava o milagre. Todos os mais escutavam silenciosamente aquella voz de creança, que, em campo descoberto e no meio de tantos espectadores, soava distincta e vibrante como se effectivamente tivesse alguma coisa de sobrehumana.

Depois que ella terminou, persistiu por algum tempo o silencio, sem que os espectadores pudessem voltar logo a si, nem os actores se lembrassem de continuar o auto. Henrique foi quem primeiro rompeu este quasi encantamento. Profundamente impressionado tambem por aquella scena, exprimiu n’um «bravo» todo o enthusiasmo que sentia. Foi o signal.

O silencio degenerou na maïs altisona ovação.

O Herodes esqueceu o papel que desempenhava, o caracter que tinha a sustentar, a logica da situação, e tomando nos braços musculosos o corpo debil e franzino da filha, levou-a em triumpho para a beira do palco; os outros actores disputavam-lh’a; do pateo estendiam-se centenas de braços para a receberem; das janellas do Mosteiro acenavam-lhe, victoriando-a, os lenços das senhoras; os homens applaudiam-a com palmas. Herodes parecia devorar a filha com beijos, afagal-a com lágrimas de enthusiasmo e de paixão; e Ermelinda foi de braços em braços, entre beijos e afagos, transportada do tablado para a sala do Mosteiro, onde não foi menos calorosa a recepção.

Do auto ninguem maïs se lembrou, e, apesar dos esforços do mestre Pertunhas, todos o deram por terminado alli e prescindiram de vêr as restantes scenas, com grande desgosto dos actores que entravam n’ellas.

O Herodes, ainda vestido de rei, andava como doido pelas salas do Mosteiro. Seria para rir aquelle enthusiasmo, se não fôsse bastante pathetico para commover.

—­Mas como foi isto, meu Deus? Como foi isto? Que milagre foi este? Ai que versos, Maria Santissima! Que versos! E como ella os dizia!—­exclamava elle, quasi convencido da milagrosa natureza da scena que vira.

Magdalena, chamando Angelo de lado, perguntou-lhe:

—­Foi Augusto que fez aquelles versos?

Angelo sorriu.

—­Por que me perguntas isso a mim?

—­Porque o deves saber.

—­Então não crês no milagre?

—­Responde.

Angelo ia a responder, quando Henrique disse em voz alta para o conselheiro:

—­Se eu digo a v. ex.^a que o Bernardim existe.

—­Mas quem é?—­perguntou o conselheiro.

—­Não sei; porém posso afiançar a v. ex.^a que não são estes os primeiros vestigios que encontro d’elle. As paredes das capellas dos montés são as suas confidentes. Não está certa, prima Magdalena, de umas quadras sentimentaes, que lemos na ermida da Senhora da Saude?

—­Sim; recordo-me.

—­Não acha entre essas e as do auto analogia de estylo, que a levem a attribuil-as á mesma pessoa?

—­Estou pouco habituada a analysar estylos, primo.

—­Mas talvez este lhe seja habitual.

Magdalena fitou Henrique com um olhar de altivez, que o obrigou a accrescentar:

—­Por muito o vêr por ahi desperdiçado por paredes de capellas e ruinas, e nos troncos das arvores.

Ermelinda foi de uma discreção impenetravel. Quando lhe perguntavam quem lhe ensinára os versos, sorria, respondendo que não sabia, où que não podia dizel-o.

—­Apostemos que n’isto entra Angelo?—­disse o conselheiro.

O Herodes cada vez parecia maïs convencido de que fôra pura inspiração.

Henrique, aproveitando uma occasião em que estava proximo da morgadinha, disse-lhe ao ouvido:

—­Parece-me que ia pôr o dedo no rouxinol silvestre, que tão bem canta sem se mostrar.

—­Sim?

—­Não ha muitas noites que eu o vi vaguear n’estas immediações. Estás aves melancolicas amam as inspirações nocturnas.

—­Pois as noites nem sempre são boas conselheiras, primo. É a hora favoravel á espionagem e ás... calumnias... Mas se sabe quem é, diga-o. Aquí em minha casa e no seio de minha familia, é sempre bem recebida a verdade. Não ha quem se tema d’ella.

E a morgadinha, dizendo isto, deixou-o desdenhosamente.

—­D’esta vez foi de uma severidade!!—­pensou Henrique.—­Cada vez me convenço maïs de que o idyllio existe e que vae já muito adeantado. Mas agora me lembro; e o meu duello com o Romeu, que nunca maïs vi? Não foi má tolice aquella minha! Preciso de procurar o homem para lhe dizer que o caso não vale a pena.

O despeito de Magdalena pelas palavras de Henrique fôra d’esta vez maïs intenso; quasi chegou a fazel-a desesperar da tenção que alimentava ainda, pois disse a Christina:

—­Ai, filha, que não sei se deva curar-te antes a ti do que a elle.

—­Que dizes?!

—­Nada. Ha doenças que fazem desesperar os medicos.

Era já noite. Os grupos, que ainda depois do auto se conservaram no pateo do Mosteiro, a brindarem a hospitalidade dos proprietarios, fôram dispersando pouco a pouco.

A banda de mestre Pertunhas saiu tambem com o fim de se preparar para as serenatas a casa do brazileiro e de varias personagens da terra, a quem era devido o cantar os Reis.

Angelo saíra da sala. Fôra para o fim da rúa de sobreiros, anterior ao pateo da quinta, esperar por Ermelinda para lhe dizer adeus.

Á medida que a noite se cerrava, parecia que se estendiam as sombras á fronte e ao coração do pobre rapaz.

Era a noite de Reis, a ultima dos dias de férias; na manhã seguinte devia partir com o pae para Lisboa.

Que amarguras as d’estas ultimas horas! que intensas saudades não se amontoam no coração das creanças ao expirar o termo d’esse feliz espaço de tempo, que viveram para os carinhos da familia e para os folguedos despreoccupados!

Percebe-se em nós mesmos aquella imminencia de lágrimas, que á menor palavra rebentam.

Quem não terá recordações de infancia a falar-lhe d’isto?

O pateo despovoára-se de gente; através das vidraças da casa viam-se já brilhar as luzes interiores. Com o olhar fito no chão, a cabeça inclinada, Angelo permanecia immovel. Cortejavam-o, ao passar, homens e mulheres, sem que elle désse por isso.

De repente voltou-se, porque ouviu atraz de si uns passos conhecidos. Era Ermelinda, que voltava para casa. O pae ficára atraz a pôr em ordem as roupas e maïs objectos que serviram no auto.

—­Esperava por ti, Ermelinda, para te dizer adeus—­disse Angelo.

—­Então vae-se embora?

—­Vou ámanhã—­respondeu Angelo, com a voz presa de commoção.

—­Muito cêdo?

—­De madrugada.

Os dois calaram-se por algum tempo, olhando para o lado.

—­E agora quando volta?

—­Eu sei lá? agora... só para agosto.

Novo silencio.

—­Então... adeus...

—­Adeus, Ermelinda.

E com a voz quasi sumida e os olhos ennevoados de lágrimas, Angelo estreitou contra o peito aquella que de pequena tratára como irmã, e que chorava ainda maïs do que elle.

Que melancólico fim de dia tão alegre!

A este tempo uma sombra escura passou por elles e estacou.

—­Ermelinda—­disse logo a voz esganiçada e colerica, que saiu d’aquelle vulto.

Ermelinda estremeceu ao ouvil-a.

Era a mulher do Zé P’reira que voltava das suas devoções e ficára surprehendida com o espectáculo que vira. A assustadiça castidade d’aquella matrona toda se alvoroçou com a tocante despedida das duas creanças.

Ermelinda approximou-se, a tremer, da madrinha, que rudemente a agarrou pelo braço e a levou comsigo.

Angelo esteve quasi resolvido a ir tirar das mãos d’aquella harpía a innocente victima; mas a chegada de Herodes estorvou-o.

A sr.^a Catharina do Nascimento de S. João Baptista ia dizendo, ao levar comsigo a afilhada:

—­Que terão ainda de vêr meus olhos, meu Divino Pae do Céo? Que mundo este de abominação, meu doce Jesus! Ó Virgem das Dores, isto é para se vêr e não se crer! Uma creanca, uma creanca de dois dias, se pode dizer, e já assim com a alma pérdida! Ó meu Jesus crucificado!...

—­Minha madrinha—­dizia Ermelinda, chorando.

—­Anda, anda, anda, minha amiga, que já os demonios saltam e riem de contentes. Teu pae é que tem a culpa. Isto são lá modos? trazer-te por entremezes, que são artes do demonio, e arredar-te da igreja, que é a casa do Senhor! É a missa dos domingos, e acabou-se. Os resultados são estes!... Ai, filha, que muita penitencia te é já precisa para salvares a alma!

—­Minha madrinha, minha madrinha, por as almas não me diga isso—­exclamava Ermelinda, aterrada.

—­Os très inimigos da alma te farão guerra, creatura, assanhados como cães raivosos... Eu previa isto... É o lucro de andar por essas casas de Satanaz , onde não ha religião nem temor de Deus... Ó meu divino Jesus, e para isto tanto padeceste por nós! E nós tão pouco caso fazemos dos vossos preceitos, meu doce Jesus, filho de Maria Virgem... Depois queixamo-nos da vossa justiça, quando já ardemos nos fogos do inferno...!

A pequena Ermelinda tremia cada vez maïs.

A velha proseguiu, em todo o caminho, n’estas exclamações, bramando contra o peccado, contra a familia do Mosteiro, que acoimava de herejes, contra o pae de Ermelinda e contra está, e, no seu fervor religioso, desenvolvia sobre o thema do peccado dissertações não em demasía apropriadas aos ouvidos de uma creança.

O resultado foi apoderar-se da pequena Linda um excessivo terror. Das palavras da madrinha, que nem bem entendia, ficára-lhe uma horrivel convicção de que tinha a alma pérdida, e com lágrimas ardentes pagava a pobre creança bem caro as alegrías d’aquella tarde, de que já tinha remorsos. Este desalento e pavor quasi a fizeram doente.

Quando o pae voltou, estranhou-a. Elle, que vinha orgulhoso com os triumphos proprios e com os da filha, sobresaltou-se ao abraçal-a, Interrogou-a; pediu, ordenou; nada pôde saber que explicasse os vestigios de lágrimas que descobria n’ella; se instava, provocava-lhe o pranto; desistiu pois.

Pobre pae! não pôde dormir aquella noite! Logo de madrugada teve de levantar-se, porque tinha de partir para o Porto em recovagem.

Deixou Ermelinda a dormir; não a quiz acordar; beijou-a na fronte desmaiada, abençoou-a e saiu.

—­Comadre,—­disse ao passar por casa do Zé P’reira—­ahi lhe deixo a pequena. Olhe-me por ella, que não está lá muito boa.

—­Vá com Deus—­disse uma voz de dentro.

Era a sr.^a Catharina.

O recoveiro partiu, silencioso e triste.