A Morgadinha dos Canaviais/XXIX

Wikisource, a biblioteca livre

XXIX


No dia seguinte, pela manhã, recebeu-se na Alvapenha noticia da chegada do conselheiro e de Angelo. A impressão profunda que a este ultimo causára a morte de Ermelinda, tinha resolvido o pae a trazel-o comsigo para a aldeia a distrahir e robustecer com ares livres do campo. D. Dorothéa apressou-se, segundo o costume, a visitar o conselheiro; Henrique acompanhou-a e de caminho pôl-a ao facto do estado do seu coração, e encarregou-a de communicar isto mesmo a D. Victoria e de fazer-lhe, em seu nome, um formal pedido da mão de Christina.

D. Dorothéa ficou a principio admirada. Ainda se não desacostumára de considerar Christina como uma creanca. Havia tão pouco tempo que usava ainda vestidos curtos!

Reflectindo porém, acabou por achar a coisa natural, vantajosa e agradavel, e felicitou o sobrinho pela boa escolha que fizera.

Henrique, com o prazer pueril de um verdadeiro namorado, não se fartou de fazer falar a tia nas qualidades de Christina, e d’esta vez as habituaes prolixidades da boa senhora não conseguiram enfastial-o. Estava devéras apaixonado!

Chegaram ao Mosteiro.

O conselheiro recebeu-os com ar de satisfação e apparente tranquillidade de espirito; mas um exame attento conseguiria descobrir-lhe no sorriso o que quer que era forçado a revelar certa preoccupação interior.

É que, desde que chegára, tinha sondado melhor o animo do publico da terra, ou dos influentes que o representavam, e reconhecera que estava muito arriscada d’esta vez a sua candidatura.

Não lhe sobrava muito tempo para trabalhos; porque d’ahi a dois dias realisavam-se as eleições. Tudo estava por fazer, emquanto que os seus adversarios havia muito que tinham tudo feito. Algumas das personagens politicas, com que contava, falharam-lhe, e até nem o visitaram. As auctoridades locaes eram-lhe manifestamente hostis, desde o administrador até o cabo de policia.

Henrique percebeu a violencia que sobre si estava fazendo o conselheiro para conversar em assumptos alheios á questão que o interessava, para sorrir e prestar attenção ao que se dizia.

De quando em quando lia ou relia uma carta, tomava um apontamento, escrevia um bilhete, retirava-se por momentos para receber algum agente eleitoral que o procurava, despachava um emissario; finalmente não podia socegar.

Foi na occasião em que elle consultava mais uma vez a lista dos recenseados d’aquelle circulo eleitoral, emquanto Henrique e Magdalena faziam por distrahir Angelo, conversando em varios assumptos, que entrou D. Victoria, a quem acabava de ser formulado por D. Dorothéa, e em nome de Henrique, o pedido da mão de Christina. D. Victoria trazia bem visivel na physionomia todo o jubilo que a nova lhe causára. Era muito amiga de Magdalena, mas desculpem-lhe esta vaidade maternal, o que mais que tudo a lisonjeára, fôra a preferencia dada por Henrique a sua filha sobre a morgadinha.

— Tenho muito que lhe ralhar, sr. Henrique — dizia ella. — Estou mesmo muito arrenegada comsigo.

— Por quê, minha senhora? — perguntou Henrique, sorrindo.

— Pois então isso é coisa que se faça? Já precisa de embaixadores para se dirigir a mim?

— Perdão, minha senhora! Era meu dever deixar completa liberdade a v. ex.a para fazer todas as reflexões que a proposta lhe suggerisse e discutil-a á vontade, e, por delicadeza, podia v. ex.a ás vezes, sendo eu mesmo quem a fizesse, cohibir-se...

— Ai, eu havia de pôr muitas dúvidas! Na verdade um rapaz de tão má nota! Ora sempre tem coisas!

— Visto isso, posso esperar?

— Da minha parte uma guerra de morte — disse D. Victoria, não resistindo a dar um abraço a Henrique, já com familiaridade de mãe; abraço que Henrique retribuiu com affecto.

O conselheiro não dava attenção á scena.

— Então, mano! — bradou-lhe D. Victoria. — Deixe lá essas politicas que temos negocios sérios em casa.

— Sim? — disse o conselheiro, dobrando os papeis que lia, e simulando um ar de interesse, que realmente estava muito longe de sentir. — Então de que se trata?

— De um negocio importante, em que é preciso que seja ouvido.

— Ah! Então é um caso de consciencia?

— E não o diga a rir, que é. Aqui o sr. Henrique de Souzellas acaba de me fazer um pedido... Isto é, a prima Dorothéa foi que m’o fez.

— Mas por ordem d’elle — acudiu esta.

— Pois sim, o que era escusado.

— Mas então que pede de nós este caro sr. Henrique?

— Nem mais nem menos do que uma das nossas pequenas.

O conselheiro relanceou um olhar para Magdalena. Já, por mais de uma vez, a hypothese do casamento da filha com Henrique lhe tinha passado pela ideia, e de modo algum lhe era antipathica. Henrique tinha um bom nome, rendimentos sufficientes, e, se quizesse, um futuro na sociedade, e o conselheiro tudo isto invejava para seus filhos.

Magdalena, que percebeu no gesto do pae a ideia que elle tivera, quiz tiral-o quanto antes da illusão e disse:

— Quem mais razão tinha para protestar era eu. Ha de fazer-me falta a amizade de Christina.

— Ah! — disse o conselheiro, com um sorriso um tanto contrafeito. — Então quer-nos roubar a nossa Christina, sr. Henrique?

— É apenas uma restituição que peço, sr. conselheiro, porque não me posso resignar a viver sem coração.

— Faz madrigal? Está então apaixonado devéras, já vejo — disse o conselheiro. — Pela minha parte folgo de o vêr assim associado á minha familia, por tão bom caminho. Mas onde está a thaumaturga, que fez o milagre de converter este celibatario emerito, que eu conheci em Lisboa a rir-se do casamento?

— Por piedade, não me recorde esses peccados deante da prima Magdalena, que é tão rigorosa nos castigos!

— Diga antes, que sou tão excessiva nas recompensas.

— Mas o mano tem razão — disse D. Victoria. — Onde está a Christe? Admira-me não a vêr aqui!

— Admirar, não me admiro eu — tornou o conselheiro. — É provavel que soubesse do que se tratava, e eclipsou-se discretamente. Porque isto foi decerto discutido por as partes interessadas, antes de subir ao nosso tribunal.

Henrique e Magdalena sorriram.

— Ora se foi! E parece-me que tu, Lena, fizeste d’esta vez de S. Gonçalo. Deus queira que te não queimes ainda no fogo ao ateares d’estes fachos.

— Eu vou buscar a Christe — disse a morgadinha, rindo das palavras do pae; e saiu da sala como para evitar que a conversa seguisse a direcção que elle lhe deu.

O conselheiro voltou n’este intervallo a consultar papeis e cartas, emquanto D. Victoria falava com Henrique, e D. Dorothéa tentava distrahir Angelo, contando-lhe várias historias de creanças, que elle mal escutava, e que ella tinha a candura de julgar alimento accommodado á intelligencia d’elle.

Passados momentos voltava Magdalena, trazendo Christina comsigo, a qual já vinha com o rubor nas faces e com os olhos no chão.

— Aqui está a accusada — disse a morgadinha ao entrar.

O conselheiro tornou a guardar os papeis e disse jovialmente para a sobrinha:

— Ora venha cá, venha cá, que temos muito que falar.

E passando-lhe a mão por baixo do queixo, para a obrigar a fital-o, continuou:

— Então assim se trama uma conspiração ás caladas? Surprehender a gente com uma noticia de tal ordem! Ainda ha pouco demittido um ministerio de bonecas, e já um golpe d’estado d’esta natureza! Sim, senhora, é energia. Nunca o esperei. Ora dê cá um beijo, emquanto não tenho quem me peça explicações por os que lhe roubar.

E o conselheiro, com perfeita galanteria e affecto, beijou-a nas faces tingidas pelo pejo e pela alegria.

Depois, voltando-se para Henrique, accrescentou, sorrindo:

— São os penultimos.

— Os penultimos? — disse D. Victoria, rindo. — Ora essa! Então para quando ficam os ultimos?

— Para quando a vir com a grinalda de noiva.

— O que eu nunca esperei é que fôsse a nossa Christe que désse o exemplo á prima. Não tens vergonha, Lena — disse D. Dorothéa para a morgadinha, em quem esta reflexão fez nascer um gesto de contrariedade, que trouxe aos labios d’Angelo o primeiro sorriso d’aquella manhã.

O conselheiro e Henrique sorriram tambem.

— Eu prometto casar-lhe a prima Magdalena, dentro em pouco, tia — disse Henrique com intenção.

— Não prometta. Esses negocios deixe-os ao meu cuidado. Bem sabe que sou teimosa e tenho a ingenuidade de acreditar que ainda ha coisas no mundo que se devem decidir pelo coração sómente.

— E Deus me livre de o não consultar. Seria abjurar os meus proprios actos.

— O sómente é que veio de mais, filha — disse o conselheiro. — Attende-se ao coração, embora. Mas só ao coração? Isso era bom se vivessemos em um mundo de corações.

A chegada de novas personagens desviou a direcção da conversa e modificou a scena.

Eram influentes politicos, que obrigaram as senhoras a retirarem-se. Henrique ficou, a pedido do conselheiro. O mestre Bento Pertunhas entrava no numero dos recemchegados. O papel que alli desempenhava o latinista era de suspeitosa natureza.

Vinha tambem a alma politica do partido do conselheiro, o Tapadas, que n’estas épocas não comia, não dormia, não respirava, por assim dizer, senão eleições, e desenvolvia uma miraculosa actividade, correndo a todos os pontos perigosos, conquistando votos, um a um, e lidando por desenredar as meadas politicas dos adversarios e enredar as suas.

— Então que novas temos da campanha, meus senhores? — perguntou o conselheiro, puxando cadeiras para os seus constituintes, e affectando um tom de confiança que não sentia.

— Más, sr. conselheiro, — respondeu o Tapadas — muito más. Vejo isto muito feio.

— Ora a coisa ainda não ha de ser tão má como diz.

— Nada, nada; não me agrada. V. ex.a descuidou-se. Tenha paciencia, mas eu bem lh’o disse. Eu sei como estas coisas são. É preciso não as desacompanhar. V. ex.a devia vir ha mais tempo.

O Pertunhas acudiu:

— Deixe lá, sr. Tapadas, o sr. conselheiro tem amigos decididos, e os serviços que fez á terra...

— Ora com o que vmc.ê vem! — replicou o Tapadas, com modo azedo. — Então não sabe como é esta gente? Então não os ouve ahi berrar já contra as estradas, quando até agora berravam por não as terem?

— Meia duzia de garotos — tornou o Pertunhas.

— Não, senhor, não é assim; não estejamos a enganar-nos. Os que não dizem mal das estradas, sabem muito bem dizer que ao ministerio as devem, e estamos na mesma. A coisa vae mal.

— Então decididamente o Seabra?... — perguntou o conselheiro.

— Esse é o chefe de todos elles — disse um merceeiro. — Á porta da minha loja o ouvi eu estar a dizer ao cunhado do administrador que o traçado da estrada era o peor que podia ser, que se gastava alli um dinheiro louco, sem utilidade para o povo.

O conselheiro olhou para Henrique, dizendo:

— Lembra-se do que eu lhe disse na noite do Natal, a respeito d’este traçado e dos pedidos do brazileiro para elle se adoptar? Admire agora o velhaco.

Henrique sorriu, encolhendo os hombros.

— Arremedos do que se faz em terras maiores — disse elle. — Não extranho.

— E tem razão — respondeu o conselheiro.

— Mas, a final — continuou o conselheiro — o homem não tinha na freguezia grande influencia. Como é que...?

— Tem-se popularisado ultimamente um pouco mais. Deu em franquear vinho por ahi a toda a gente, e depois os padres estão bem com elle e de mal com v. ex.a.

— Mas como se lhe desenfreou tão de repente esse odio contra mim? Deixámo-nos em janeiro nas melhores disposições um para com outro...

— Pelos modos que ahi se falou de uma carta do ministro ou ao ministro... — disse o Tapadas, com maneiras de quem não dera grande importancia ao objecto a que se referia.

O conselheiro mudou logo de assumpto.

— E os padres? os padres? Que heresia disse eu, que peccado grande commetti, para me terem esse odio?

— Dizem que v. ex.a é mação — respondeu um lavrador.

— O diacho da questão do cemiterio... — acudiu o Tapadas.

— Isso acalmou já.

— Não acalmou, não senhor. O povo não está contente. É certo que lhe passou a furia do principio, depois d’aquella historia com o Cancella, mas...

— Quando me lembro de que aquella canalha se atreveu a insultar minha filha!

— É melhor não falar n’isso — aconselhou prudentemente o Tapadas. — O que lá vae, lá vae. Os homens estão meio arrependidos, e até o missionario perdeu um pouco entre o povo, porque o Herodes tem por ahi berrado que foi elle quem lhe matou a filha, e o pobre homem mette pena. Até me dizem que por causa d’isso o padre já se retirou da aldeia. O que era bom era vêr até se se falava ao Herodes; porque talvez elle possa agora ainda arranjar alguns votos — accrescentou o Tapadas, disposto a servir-se da dôr de um pae como arma eleitoral.

E continuou-se fervorosamente na edificante obra de combinar tramas politicos. Discutiram-se os diversos processos de angariar as potencias eleitoraes do circulo. Estudaram-se as ambições de cada uma; ponderaram-se as exigencias feitas por uns, os desejos adivinhados em outros, para este o emprego de um afilhado, áquelle o bom exito de uma demanda, a outro o pagamento de uma divida, ou o resgate de uma hypotheca, e a alguns até nua e descaradamente o dinheiro. N’esta empresa de subornar consciencias e sophismar a urna entreteve-se o conciliabulo, sem que nenhum dos membros d’elle sentisse remorsos por o que estava fazendo alli.

Entre os discutidos foi o sr. Joãozinho das Perdizes um dos principaes.

— Então sempre é certo que me roeu a corda esse basbaque? — perguntou, ao falar-se n’elle, o conselheiro.

— É dos mais assanhados — responderam-lhe.

— Mas quem diabo lhe virou a cabeça? Um velhaco a quem tantas vezes tenho tirado de apuros!

— Tanto lhe atordoaram os ouvidos com a historia dos cemiterios... — disse o Pertunhas.

— Deixe lá, alli andou tambem um presente que lhe fez o brazileiro. O morgado está muitas vezes com a corda na garganta — explicou malignamente o Tapadas, cujo scepticismo, robustecido no uso das demandas e da politica, não achava explicações tão plausiveis como a corrupção.

— E depois o homem tomou as dores pelo Vicente herbanario — insistiu o tendeiro.

— Ora adeus! — disse o Tapadas. — Bem me fio eu n’essas compaixões. Quem não os conhecer...

— E que tem o tôlo com os negocios do herbanario? — insistiu o conselheiro, de mau humor.

— Então? Deu-lhe para alli.

— Qual historia! Para mim é que vem com isso?! — teimava o sceptico Tapadas.

— Tambem uma coisa que buliu com elle foi aquillo no outro dia na taberna com este senhor — disse o Pertunhas, designando Henrique.

— Sinto, sr. conselheiro — disse este — se de alguma maneira concorri...

— De modo nenhum. Aquelle selvagem vae para onde o empurram. Á ultima hora é capaz de mudar de tenção. E por causa d’elle é que ficou despachado professor um pateta em vez de Augusto.

Depois de dizer estas palavras, o conselheiro accrescentou, com despeito:

— Mas até certo ponto foi bom para me desenganar a respeito do caracter de certos homens. Ha vinganças tão torpes e mesquinhas, que nenhum aggravo as justifica.

Henrique procurou defender Augusto; achou porém o conselheiro obstinado na sua crença.

Henrique alludiu ao brazileiro Seabra, como o mais plausivel promotor da intriga.

— Embora o fôsse — respondeu o conselheiro — mas que tem isso? O Seabra não veio a minha casa, não suspeitava da existencia de tal carta. Alguem houve que a leu primeiro e que lh’a foi entregar depois, e já é ser muito indulgente suppôr que fôram só cegueiras de vingança e não a sordidez da cubiça quem o moveu a essa infamia.

Henrique viu que perdia o seu tempo em defender Augusto; comtudo jurou pela innocencia d’elle.

O conselheiro ia a responder-lhe, quando o distrahiu uma altercação travada entre Pertunhas e o Tapadas.

Aquelle estava sendo fertilissimo em alvitres para vencer resistencias eleitoraes. O Tapadas, que desconfiou d’elle, disse-lhe subitamente:

—­Olá, ó sr. Pertunhas, é melhor parolar menos e fazer coisa que se veja; où deixa só as obras para o seu amigo Seabra?

D’aqui protestos energicos do Pertunhas, e a altercação virulenta, que o conselheiro teve de apaziguar.

A conferencia durou até ás horas do jantar.