A Morgadinha dos Canaviais/XXVII

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XXVII


Foi opinião do facultativo, que tratou de Henrique, que a vida d’este correrà sérios riscos durante a primeira semana, por não sei que complicação que se lhe manifestou no decurso da molestia. Se se enganou o prático, não nos compete a nós decidir; acceitemos-lhe a opinião, como de legitima fonte, e não profundemos materia alheia ao nosso intento.

Ao fim dos oito dias, porém, começaram a manifestar-se melhoras evidentes, e o proprio facultativo foi o primeiro a assegurar ás senhoras, que sempre o vinham consultar á saida com anciosa curiosidade, que «o homem estava salvo».

De facto, nos primeiros períodos da doença, Henrique caira, como já dissémos, n’um d’aquelles estados de indifferença para tudo e para todos, de que se não pode agourar nunca bem. Agora, porém, começava já a manifestar attenção para os cuidados de que era objecto, e a agradecer, com palavras de sincera gratidão, o tratamento affectuoso que recebia n’aquella casa e especialmente os desvelos de Christina.

Esta fôra effectivamente sempre incançavel, solícita e carinhosa enfermeira.

Os cuidados de que o rodeava, como a um irmão, absorviam-lhe todos os instantes; prevêr-lhe os desejos, adivinhar-lhe as penas, procurar-lhe allivio ás dores physicas ou moraes, era agora para ella a tarefa de cada momento, a preoccupacão permanente de todos os seus pensamentos.

Henrique costumára-se a vêr mover-se no seu quarto aquella meiga e delicada figura de mulher, creança de hontem, a ouvir-lhe o timbre suave e ainda um pouco infantil da voz, a cruzar o olhar com aquelle olhar brando que o fitava com sympathia e meiguice; já se não sentia bem, longe d’ella, e a cada momento, se estava ausente, dirigia as vistas para a porta á espera de a vêr apparecer.

Magdalena espiava estes symptomas, notava a influencia crescente de Christina sobre o animo do rebelde, que até alli fôra insensivel, e exultava. Muito de proposito a morgadinha afastava-se o mais possivel da cabeceira do enfermo, por uma razão analoga á que obriga os pintores a deixar em meias tintas os accessorios de um quadro, para que a attenção se fixe no objecto principal.

Magdalena estava tambem dispondo uma obra de arte, na qual Christina devia ser a figura principal.

N’este intento a morgadinha conservava ás visitas que vinha fazer a Henrique um ar cerimoniatico, que contrastava com a insinuante familiaridade da prima. Para isso teve Magdalena de suffocar os impulsos da sua indole de mulher, e de mulher que tão bem comprehendia os deveres da sua missão, ao mesmo tempo carinhosa e heroica. Apresentava-se o mais extranha que lhe era possivel a estes pequenos cuidados, que tão irresistivel influencia exercem no coração do homem que experimenta a ventura de ser objecto d’elles.

De dia para dia crescia o ascendente de Christina sobre Henrique, e crescia á custa de Magdalena.

Esta percebia-o e não cabia em si de contente com a descoberta. É necessario ser dotado de um grande fundo de generosidade, para que um coração de mulher faça d’estas descobertas, com o intimo contentamento que Magdalena sentia. É tão natural defeito a vaidade! Não se exprime o prazer que Henrique experimentava a cada pequeno incidente da vida domestica, que punha em relêvo o predominio de Christina.

Havia uma hora no dia em que Henrique gosava um d’estes prazeres placidos, de que tão pouco abundante era todo o seu passado.

Ao fim da tarde, D. Victoria, Magdalena e toda a familia do Mosteiro, e a propria tia Dorothéa, reuniam-se no quarto do doente para tomarem o chá. Não era, porém, a presença de nenhuma d’ellas, nem a de Magdalena, que o consolava e obrigava a suspirar por aquella hora, mas uma pequena circumstancia, que fará sorrir um homem de sensibilidade embotada, emquanto o facto se não der com elle. Era que Christina, que em outra qualquer occasião cedia sempre a Magdalena a direcção dos trabalhos domesticos, alli dentro não resignava em ninguem essas funcções. Tomava naturalmente as maneiras de dona de casa, e recebia a mãe, a prima e todas as outras como visitas de intimidade, sim, mas em todo caso, visitas.

Não se imaginam os encantos que Henrique achava áquillo. A elle proprio parecia já que de facto o prendiam a Christina laços mais intimos, laços mais de familia, do que ás outras senhoras. Era assim que qualquer pedido, que tinha a fazer, o dirigia sem hesitar a ella, como o faria a uma irmã; emtanto que naturalmente custava-lhe a incommodar outra qualquer pessoa, e não o fazia sem as desculpas e cumprimentos do estylo, que para ella não usava já.

Outra particularidade o enleiava tanto como esta. Era a maneira despotica por que o governava Christina, fazendo-o cumprir á risca as dietas e as prescripções do facultativo, recusando-se obstinadamente a deixal-o lêr, e até ralhando-lhe ás vezes com severidade quasi maternal: apparencias de dureza, que occultavam thesouros de sensibilidade e de affecto.

O pobre rapaz, que não conhecera familia, que nunca vira do seu leito de doença, nas vezes que caira n’elle, o vulto suave e consolador de uma mãe, de uma irmã ou de uma esposa sorrir-lhe ao despertar, interrogal-o com essas entonações carinhosas, que nos provocam o cobrir de beijos a mão que nos estende a taça do mais amargo remedio; elle, que não sabia ainda o que era sentir-se amparar a fronte, que escalda de febre, pelo apoio de uma debil mão de mulher, a que o amor dá fôrças extraordinarias, commovia-se até ás lagrimas agora, e quasi não pensava sem tristeza na convalescença, que havia de o privar d’aquelles cuidados affectuosos.

O olhar com que fitava Christina, todas as vezes que ella se lhe approximava do leito, era mais eloquente de reconhecimento, do que todas as palavras que lhe dizia, do que todas quantas lhe poderia dizer.

Agora o enleiado e timido era elle, Christina a corajosa.

Um dia em que Henrique parecia soffrer mais do que de costume, e em que se agitava no leito com a inquietação da febre, Christina, depois de lhe dar a beber o calmante que lhe prescrevera o medico, perguntou-lhe, com a mais adoravel candura:

— Não sabe rezar?

Henrique sorriu, respondendo:

— Julgo que desapprendi já as orações que minha mãe me ensinou.

Christina calou-se e ficou tristemente pensativa.

Aquella alma innocente perguntava a si mesma que consolação encontraria nas provações da vida um espirito que não soubesse recolher-se na oração.

Henrique, que a viu sorrir, disse-lhe:

— Quer-me ensinar a rezar, Christina?

Christina fitou n’elle um olhar perscrutador, como para sondar a intenção d’aquellas palavras.

— Juro-lhe que recitarei com o fervor, de que ainda fôr capaz a minha alma, as orações que me ensinar.

Christina respondeu-lhe gravemente:

— Reze, reze e verá como n’isso acha consolação. Vou emprestar-lhe o meu livro de orações, quer?

— Por que me não ha de antes ensinar, como minha mãe o fazia?

Christina ouviu com seriedade a proposta.

E o certo é que um dia, em que Henrique passára peor, Magdalena ouviu, na sala proxima, Christina, recitando uma singela prece á Virgem, e o doente repetindo-a com docilidade de creança.

Como se ririam d’elle os seus amigos da capital, se n’aquelle momento o vissem! Mas rir-se-iam de um phenomeno naturalissimo, de uma d’estas modificações a que todos os caracteres estão sujeitos, quando se dão a actual-os dois elementos tão poderosos, como se davam em Henrique: a doença, que quebra a inteireza das indoles mais rijas, e abre o coração ás doces influencias; e a catechese feminina, a mais poderosa, efficaz e irresistivel de todas.

Não direi que fôsse com inteira fé que o doente orava; talvez que houvesse mescla de sentimento profano no prazer suave que experimentava ao orar assim. É certo, porém, que, desde então, frequentes vezes se lhe desviavam os olhos para o pequeno crucifixo, que Christina trouxera do seu quarto para a cabeceira do leito de Henrique.

Outra vez, quando Christina acabava de fazer-lhe tomar um remedio, Henrique, obedecendo aos impulsos da sua gratidão, beijou-lhe, commovido, a mão, que ella ia a retirar.

— Que faz? — disse Christina, córando e afastando-a.

— Deixe-me beijar a mão piedosa que me prendeu á vida, á vida que só agora comecei a amar.

— Ora vamos — acudiu ella, com um meigo tom de reprehensão.

— Como não quer que a adore, Christina, depois de se fazer anjo para me salvar? Não costuma rezar ao seu anjo da guarda?

— Repare que eu não tenho azas de anjo.

— Mas vôa mais alto ao céo, quando desce assim a velar por um pobre doente como eu, que nenhuns titulos possue para lhe merecer essa dedicação, pobre menina! Que vida tem sido a sua ha tantos dias?

— Nenhuns titulos! que diz? — tornou Christina, com um sorriso adoravel.

— Pois quaes?

— Então não somos primos? disse ella, jovialmente.

E saiu do quarto, com aquelle andar ligeiro e facil, que tanto enlevava Henrique.

Estava já Henrique em convalescença, e o facultativo permittira-lhe alguns passeios pela quinta, mas ainda não a sua transferencia para Alvapenha. O logar favorito de Henrique n’estes passeios era á sombra de umas laranjeiras, que havia a pouca distancia de casa. Das janellas do quarto de D. Victoria descobria-se o logar. Quando as manhãs estavam serenas, Henrique ia para alli, com um livro que não fazia tenção de ler, e apoiando-se ao braço de Christina, que levava a costura para junto d’elle, para lhe fazer companhia.

D. Victoria seguia-os da janella com as suas recommendações.

— Por ahi não, Christe!... Olha que é muito humido... Dá antes a volta pela nora... Assim... Cautela com essas hervas, que hão de estar molhadas... Vê lá que não esteja frio... Olha se esses troncos estão molhados...

Henrique tornava-se melancólico e sombrío n’estes momentos, a ponto de uma manhã Christina o interrogar, n’aquelle tom de familiaridade affectuosa, que principiára a poder ter para com elle, desde que o vira fraco e doente e a carecer do seu auxilio e protecção.

—­Que é isso! Por que está sempre triste, agora que vae melhor?

—­Estou triste, porque estou melhor—­respondeu Henrique.

—­Que está a dizer?!

—­A verdade. A poucos doentes terá succedido o que succède commigo. Este renascer para a vida, este sangue novo que sentimos circular nas veías, este vigor que de instante para instante conhecemos accumular-se em nós, que tantos gósos dá aos convalescentes, a mim fazem-me entristecer; como que estou presentindo já as saudades d’este tempo, que passei prostrado no leito da doença, Christina.

—­Não diga isso.

—­E admira-se? Se elle foi o tempo maïs feliz da minha vida! Não sabe que me eram desconhecidos inteiramente os ineffaveis carinhos de familia que me fez experimentar? Com a saude vão voltar para mim os dias da solidão, do desconforto, d’aquella vida gelada e inútil que abomino, desde que principiei a conceber outra... desde que m’a fez conceber, Christina! Quando penso em voltar para Lisboa...

—­E tenciona voltar?

A está pergunta, feita com a maior naturalidade, Henrique sentiu uma intima commoção. Ha d’estes effeitos. Ás vezes o olhar menos significativo, a palavra menos pensada, é pelo coração interpretada de maneira tal que elle proprio se sente estremecer.

—­E queria que eu ficasse, Christina?—­perguntou Henrique, sob o dominio d’essa impressão.

Christina não respondeu logo.

—­Deixe-me acreditar que sim; é bastante generosa para isso, para não vêr partir sem saudade o homem a quem salvou com os seus extremos de irmã. Esta ideia será a minha consolação; deixe-me partir com ella.

—­Partir?... mas... para que ha de partir?

—­Então quer que me fique perpetuamente com aquella boa tia Dorothéa, cuja vida placida vim alterar com os meus hábitos cidadãos?

—­Pois não lhe custaria a ella mesma vêl-o partir! E depois... que vae fazer para Lisboa? Adoecer outra vez, où scismar que está doente, que é quasi a mesma coisa.

—­E dar-me-ha sempre a sua amizade se eu ficar?

—­Por que havia de lh’a negar?

—­Tempo virá em que outros me disputarão a menor porção de affecto que me conceder, Christina... e então... então é que eu ficarei maïs só do que nunca... où maïs do que nunca sentirei que o estou.

—­Anda só, por que quer... Não ha tanta gente por esse mundo?

—­Então a menina não sabe que se está só mesmo em companhia? Quem está só é a alma. Ai, a alma está só quasi sempre!

—­Por que quer.

—­Por que desconfiou das companhias que se lhe offereciam, e por que não obteve a que desejava. Além de que, ha almas tão tristes, que intimidam outras. E a minha é d’essas. Ora diga, se eu lhe pedisse para fazer companhia á minha alma, a está alma melancolica e sombria com que nasci, não hesitaria? Confesse.

Depois de um momento de silencio e hesitação, Christina respondeu:

—­Se a companhia da minha fôsse bastante para desfazer essa tristeza...

—­Concedia-m’a?

—­E por que havia de negar-lh’a?

Henrique tornou-lhe a mão, apaixonado.

—­Christina, sabe que essas palavras podem fazer-me conceber loucuras? Se o meu coração é tão ousado...

Christina, córando, retirou a mão de que Henrique se apoderou, e levantando-se, sobresaltada, disse:

—­Julgo que são horas do seu remedio. Vou preparar-lh’o.

E fugiu, correndo em direcção de casa.

Scenas maïs où menos analogas a está reproduziam-se todos os dias durante a convalescença de Henrique. Reinava o idyllio e uma como perfumada atmosphera, que exercia profundas revoluções no caracter de Henrique e de Christina. Elle ia perdendo de dia para dia aquellas exterioridades artificiosas, que Magdalena por tanto tempo combatera em vão; ella, Christina, ganhando vida, actividade, soffrendo uma d’essas metamorphoses analogas ás da vida de borboletas, da infancia, estado de chrysalida para a imaginação, passava á verdadeira juventude, ao periodo em que a imaginação ganha azas, em que o coração se completa.

Desde que Henrique se achava em estado de passeiar, não havia razão possivel para permanecer no Mosteiro; portanto tornou-se inevitavel a mudança para Alvapenha.

Já se não fez sem lágrimas a despedida.

Choraram as creanças, chorou D. Victoria e a propria Magdalena se sentiu commovida; só Christina não se achava na sala em que se passou a scena.

Encontrou-a Henrique no patamar da escada por onde tinha de sair.

Seria casual está circumstancia?

Henrique não perguntára por Christina; dizia-lhe o coração que a encontraria alli.

—­Volto á minha solidão, Christina—­disse-lhe, commovido.—­Não lh’o tinha eu dicto?

A pobre menina quiz sorrir, mas do esforço que para isso fez só lhe resultaram lágrimas.

—­Não diga maïs nada—­disse Henrique, levando aos labios a mão que ella não retirou.—­Essas lágrimas bastam-me.

Escusado é dizer que estás palavras maïs lágrimas produziram.

E Henrique desceu do patamar com a vista ennevoada por ellas.

Christina ficou a chorar na varanda.

A morgadinha veio, sem ser sentida, abraçal-a, dizendo:

—­Pago-te hoje o abraço que me déste no outro dia; mas eu escuso de te perguntar... «Pois tu amaval-o?»

—­Ai, Lena!...—­exclamou Christina, cada vez chorando maïs.

—­Faltava aos vossos amores este arremêdo de infelicidade, e imaginaram uma separação de duzentos passos para poderem representar a scena das despedidas, e chorarem como Paulo e Virginia. Impostores!—­dizia Magdalena, para consolal-a.

Em Alvapenha Henrique passou horas de intensa melancolía. Impacientavam-n’o as conversas de sua tia e de Maria de Jesus, a qual taes mudanças notava n’elle, que chegou a aventar á ama a ideia de que a doença tinha transtornado o juizo ao rapaz, opinião que D. Dorothéa levou muito a mal.

Outro symptoma que se manifestou em Henrique foi a indignação que lhe causou a carta de um amigo que, com o maior scepticismo, lhe perguntava novas dos seus hábitos pastoris e das Tirces e Galatéas que o traziam enlevado. Henrique revoltou-se d’esta vez, com todo o fogo do coração, contra aquelle tom frio e sarcastico da epistola, e nem lhe respondeu.

Depois teve Henrique uma visão.

Não se assustem os leitores que antipathisam com o maravilhoso. Nada ha aquí que se pareça com as visões épicas; foi uma visão como muitas, que nós todos, uma où outra vez na vida, experimentamos; um d’esses espectáculos, que nos prepara de quando em quando a imaginação, está fértil e poderosissima creadora, que nos acompanha incessantemente. A quem não terá de facto succedido vêr transformar-se pouco a pouco uma perspectiva, desvanecerem-se os effeitos da visão exterior, enfraquecerem as impressões dos sentidos, e avultarem, tomarem fórma, realidade, vida, as imagens de uma maïs intima, espontanea e mysteriosa visão?

Estava Henrique á janella do quarto que habitava em Alvapenha. Sabemos já que se gosava d’alli um panorama extenso e amenissimo. A tarde parecia de primavera. Henrique corria com prazer a vista pelos differentes logares da quinta de Alvapenha, com as suas noras e mêdas, colmeias, eirás, cabanas e sebes. Era uma verdadeira quinta rural, resentindo-se, porém, um pouco de ser a proprietaria d’ella uma senhora velha, e com pouca actividade para tratar da lavoura.

Pouco a pouco deixára Henrique de vêr a quinta como ella era.

Principiava a visão interior.

As arvores copavam-se de folhagem; messes aloiradas ondulavam nos campos; numerosos rebanhos cobriam os lameiros extensos; atulhavam-se de cereaes os celleiros; alastrava-se de grão o chão das eirás; gemiam as noras e os lagares; soltavam-se ás prêsas os diques, e uma verdadeira rede liquida envolvia em suas malhas a vegetação dos campos; alvejavam as camisas dos ceifadores e echoavam nos montés e arvoredos as cantilenas aldeãs; e os maïs caracteristicos e poeticos episodios da vida agricola desenrolavam-se aos sentidos, deleitosamente allucinados, do sobrinho de D. Dorothéa. Era uma perfeita georgica! E elle a dirigir todos os trabalhos, a regular o serviço, verdadeiro patriarcha ao modo antigo; e ao seu lado, e em toda a parte, á sombra de uma arvore, á borda do tanque, debruçada no muro, por entre os silvados das sébes vivas, uma figura suave, casta, adoravel... a figura de Christina!

Quem mezes antes adivinharia que Henrique de Souzellas, o homem élégante, o homem da moda, em quem estavam encarnadas todas as qualidades boas e más da sociedade que frequentava, havia de ter uma visão como está!

No quasi extase, em que a imaginação o lançára permanecia ainda, quando soube que o procuravam de mando das senhoras do Mosteiro.

Apressou-se logo a receber a visita.

Era o velho Torquato que vinha saber d’elle, de mando de D. Victoria e das meninas.

O pobre homem era um dos que ficára com affeição a Henrique depois que estivera no Mosteiro.

Henrique ouvia-o com uma paciencia, que elle já em poucos encontrava, contar as longas historias dos seus tempos passados, e isso era o bastante para o velho lhe querer bem.

—­Diga ás senhoras que eu mesmo irei ralhar com ellas, pelo incómmodo que estão tendo commigo. E vossê tambem, Torquato, na sua idade, estes passeios.

—­Ai, não tem dúvida! Isto faz bem... É exercicio a final... Pois é verdade. Eu d’antes corria a aldeia toda n’um minuto... agora... Olhe que eu já tenho os meus annos! Veja lá, se no tempo dos francezes eu era já homem feito... Inda me lembra...

Seguiu-se um episodio da época, e depois, sem transição sensivel:

—­Mas lá emquanto ás senhoras... Isso sempre devo dizer que teem tomado um cuidado!... Todas!... Até a Christininha!

—­Sim? Tambem essa?

—­Ora se tambem!... Pois a sr.^a D. Victoria?

—­Mas... mas... Christina... a sr.^a D. Christina, então...

—­Isso é um coração de pomba. Inda ha pouco, ao sair, já vinha no pateo, e ella veio ter commigo a correr, e disse-me: «Olhe, ó Torquato, ha de reparar-lhe para a cara e vêr se tem ar maïs triste.»

—­Ella disse-lhe isso?

—­É verdade. E eu lá lhe vou dizer que o encontrei alegre como...

—­Não, não; não lhe diga isso, homem—­atalhou Henrique.

—­Então por quê?!

—­Porque... porque... porque não é verdade... Então eu estou assim tão alegre como isso?

—­Não digo que esteja, mas para a socegar...

—­Diga que me achou com saude, mas triste. E não lhe disse ella maïs nada?

—­A sr.^a D. Victoria...

—­Falò de Christina.

—­Nada... Ai... Agora me lembro... mas isso é segredo.

—­Diga, diga.

—­Não é nada; é uma promessa que...

—­Uma promessa? Que promessa?

—­Sim, olhe, eu digo-lhe, mas guarde segredo! Quando o senhor esteve muito mal, que nem o cirurgião dava nada por si, a Christinita prometteu rezar na capella dos Cannaviaes as estações da meia noite...

—­As estações da meia noite?

—­Sim; as estações rezadas á meia noite á Senhora que está na capella da casa dos Canaviaes; É tão milagrosa que, dizem, nunca recusou favor que se lhe pedisse assim. Contava meu pae...

E vinha um caso comprovativo da tradição popular.

—­Sim, lembra-me que já me falaram n’isso—­disse Henrique, pensativo.

—­É verdade. O peor é que é este seu criado quem tem de a acompanhar até á quinta, depois d’ámanhã á meia noite...

—­Então depois de ámanhã á meia noite?

—­Sim, mas não diga nada, que isto é segredo da pequena.

—­Esteja descançado.

E depois de maïs algumas historias contadas por Torquato, e a queHenrique não ligou attenção, aquelle retirou-se.

Ao ficar só, Henrique caiu em nova e profunda abstracção. Elaborava-se-lhe na ideia um projecto. O de ir aos Cannaviaes para presenciar aquelle acto de fervorosa devoção de Christina, que supplicára por elle, enfermo, com o ardor da maïs pura crença, com a effusão do maïs generoso affecto.

N’este intento tratou de se informar a respeito dos caminhos que conduziam á quinta, que elle ainda não visitára, e sobre como penetrar até á capella da casa, onde devia ser cumprida a promessa.

D. Dorothéa, D. Victoria e Magdalena deram-lhe os esclarecimentos precisos sem que suspeitassem das intenções com que elle lh’os pedia.