A Mortalha de Alzira/I/XIII
Bouflers entrou aos pulinhos. Estacou no meio do salão e fez a mais extraordinária mesura que é possível imaginar, mesmo conhecendo os complicados e genuflexórios salamaleques desse tempo galante. Os altos e empoados canudos da sua cabeleira roçaram-lhe três vezes pelos joelhos, e o rabicho, guarnecido por um laço de fita preta, três vezes se agitou no ar, como a irrequieta cauda de um cãozinho fraldiqueiro.
Vinha vestido a rigor e com extrema elegância.
Trazia uma casaca de seda cor de pérola. forrada de branco e guarnecida de botões de prata. Bofes de rendas de Veneza, nobremente salpicados de pó de tabaco espanhol, saltavam-lhe do peito por entre um colete de veludo cor de âmbar; tinha calções da mesma seda da casaca e meias bordadas a ouro, sapatos de salto vermelho, e espada, não de barba de baleia, como então alguns usavam, mas de bom e bem temperado aço de Toledo, com bainha de couro, forrada de veludo branco, e guarda coberta de vistosa pedraria multicor.
Deu alguns passos para Alzira, e, assim que se viu defronte dela, perfilou-se de novo e pôs a mão esquerda sobre o punho da espada, de modo a arrebitar com a ponta desta a grande aba da sua casaca à la Ramponeau.
E, empertigado, conservou-se um instante com o chapéu de três bicos debaixo do braço, e disse depois fazendo um passo de minuete:
"Ora graças a Cupido,
Neste empíreo da beleza
Enfim me foi permitido
Entrar, sem maior
despesa!..."
— Trazia a musa em sua companhia Bouflers?. . . Nesse caso devia ter pedido licença para dois. . . — Descanse, formosa estrela; minha musa é rapariga discreta. . . não contará ao marquês o que entre nós dois se passar aqui... — Discreta?... — Não diz mal de ninguém. . . — Informe a pobre senhora de Dufort. . . — Uma sátira inocente. . . — Oh! muito inocente! . . . — Tão inocente como o padre Ângelo. — Ah! Já o conhece?. . . &m dash; Pudera!
E, armando de novo a sua coreográfica mesura, improvisou:
"Dizem que Paris
inteira,
Após o célebre sermão
Da sagrada quinta-
feira,
Anda toda em
devoção...
Traz no peito as mãos cruzadas, Os olhos fitos no céu, Calça meias encarnadas, Põe estola e solidéu!
Até consta que a
marquesa
De Pompadour vai além;
Quer obrigar sua alteza
A tomar ordens
também..."
E, chegando-se mais para Alzira, segredou intencionalmente:
"Que certa moça galante, Ouvindo a missa, fitou Por tal modo o celebrante, Que o celebrante... corou!
E ficaria engasgado
Com o próprio corpo de
Deus,
Se não bebesse, coitado!
Duas gotas de Bordéus..."
— Isto é uma sensaboria de mau gosto!. . . declarou a condessa.
— Por que? Dar-se-á o caso de que a insensível e tirana condessa Alzira também esteja com o peito ferido pelo casto pregador de quinta-feira?...
— Como "também"?... Há então muitas que o estejam?
— Oh! oh!
"Foi o caso que o sujeito,
Tendo as damas convertido,
Tanto as fez bater no peito,
Que o peito lhes pôs ferido!.. ."
— Fale antes em prosa Bouflers! O verso fatiga muito.
— Pois seja! exclamou ele, encaminhando-se para a condessa com um belo sorriso de namorado, e disse tomando-lhe uma das mãos que levou aos lábios: Eu te amo, Alzira, flor insensível! flor dos meus sonhos! flor das minhas desventuras! e quero saber quando será o dia venturoso em que receba eu de tua formosa boquinha . . .
— Um sorriso?...
— Não! Uma palavra de animação. . .
— Bravo!
— Bravo?!
— Não conheço melhor palavra de animação. . .
— Não zombe de mim, condessa!...
— Zombar de Bouflers!. . . Oh!. . . Se o conseguisse, vingaria meia humanidade, tão ferozmente satirizada pelos seus versos maus e pelos seus maus versos!
— Conclua-se destes trocadilhos, que sairei daqui sem ouvir uma palavra de esperança. . .
— Está falando sério, meu pobre amigo?. . .
— Juro-lhe que sim, condessa. Juro-lhe pelas musas, que a minha maior felicidade seria merecer-lhe uma palavra de amor. . .
— E por que razão havia eu de amá-lo?. . .
— Ora essa! Por que razão é que os outros se amam? . . .
— Mulheres da minha espécie, caro poeta, só amam, quando as fascina qualquer cousa extraordinária, muito extraordinária! Seja o que for, mas que seja— extraordinária!
— Paciência!. . . Todavia, quero crer que o marquês de Florans nada tem em si de extraordinário, e no entanto. . .
— É meu amante... Ah! O caso é outro! O marquês é muito rico... pode dar-se a esse amado vailuxo!... Ama-me, daí porém a ser amado— vai um abismo!
— Se o marquês a ouvisse?. . .
Alzira sacudiu os ombros.
— Ele sabe disso tão bem como eu; a ninguém engano! . . .
— Nem ama, tampouco!
— Quem sabe lá?.. . Talvez...
— A condessa? Qual! Duvido! A senhora não é mulher! Não tem coração!. . .
— Então que sou eu?. . .
— E um lindo cofre de marfim rosado, com o competente orifício para receber o ouro dos papalvos.
— E era para dizer-me semelhante galanteria, que o poeta há tanto tempo fazia empenho de vir à minha casa?
— Não! Era na esperança de ser correspondido no meu amor. . .
— O cavalheiro às vezes não me parece um homem de espírito...
— Em questões de amor todos os homens são igualmente estúpidos!...
— Mas, valha-me Deus, Bouflers! por que razão havia eu de amá-lo?.. . O senhor é um bonito rapaz, não há dúvida; está na flor da idade, não lhe falta talento, mas. . . é só isso!. . .
— E acha pouco?. . . moço graças mocidadebNão dois oonito e com talento. Tenho os encantos das três graças— mocidade, amor e beleza, e ainda me sobra um!
— Não— dois— o talento e a vaidade.
— Ou isso!
— Mas falta-lhe o principal. . .
— O que não falta ao marquês. . . dinheiro?. . .
— Qual! O dinheiro não se conta. . .
— Não se conta?. . .
— Gasta-se!
— Então que me falta? Juízo, talvez. ..
— Ainda menos! O juízo é a negação do espírito! . . .
— Então não sei que me falta!...
— Sei-o eu! exclamou uma voz grossa.
E o marquês surgiu defronte de Bonflers, fulo e trêmulo de raiva.
— Oh! Oh! interjeicionou este, zombeteiramente e sem se alterar. Estava escondido, senhor marquês?. . . Divertia-se a escutar-nos. . . Magnífico!
E voltando para Alzira:— Obrigado, condessa! Depois resmungou de si para si:
— Pagá-lo-ão bem caro!
O marques, sem poder domar a cólera que o sufocava, prosseguiu no tom em que começou:
— A qualidade que lhe falta, senhor poeta, não é dinheiro, nem juízo; é prudência! É grande temeridade dizer mal de quem quer que seja à própria amante dessa pessoa!
— Não é só temeridade... respondeu Bouflers, pondo a mão na cintura e empinando a cabeça: é insolência. Estou às suas ordens! Avie-se!
A condessa correra para junto de Florans.
— Lembre-se do que me prometeu!... disse-lhe ela rapidamente e em voz baixa.
— Só não me baterei. . . segredou o marquês ao ouvido da amante, se a senhora não me fechar a sua porta. . .
— Não fecharei, marquês!
— Pois não me baterei, Alzira!
Bouflers, que durante este curto diálogo, media os dois com ar de desprezo, entortando a cabeça e sacudindo a perna gritou para o marquês, como se falasse ao seu cocheiro:
— Olá, senhor pregador de prudência, é esta que o aconselha a consultar a sua amante, antes de pôr a limpo as injúrias que lhe fazem. . . Creio ter dito bem alto que estou às suas ordens!
— Não me bato com o senhor... balbuciou o outro.
— Ah! Ah! escarneceu o poeta. Já o desconfiava! . . .
E calçando de novo a luva, que ele havia principiado a despir: — Pois chega-me a vez de dar-lhe também um conselho: quando não se reconhecer com animo de assumir dignamente a responsabilidade dos seus atos, meça melhor as palavras e não se apresente como se apresentou defronte de mim!
— Insolente! bradou o marquês, avançando de punho fechado sobre Bouflers.
— Então!... interveio Alzira, metendo-se entre os dois.
— Mas este atrevido afronta-me! exclamou Florans.
— Pois é desafrontar-se! retorquiu o poeta. Para isso tem uma espada à cinta!
Alzira chegou os lábios ao ouvido do marquês.
— Se aceitar o duelo, disse-lhe; não ponha mais os pés aqui!
O fidalgo fez-se cor de cera e murmurou imperceptivelmente:
— Esta mulher despoja-me de tudo!. . .
Bouflers sorriu e acrescentou:
— Registre, condessa, mais esta qualidade a meu favor:— a coragem!
— Vale menos que as outras neste instante... desdenhou Alzira.
E tomando as mãos do marquês: — Em certos casos, o forte é aquele que resiste à provocação. Obrigado, meu amigo! Poupou-me remorsos!... Ah! já os tenho em demasia!. . . Creia que lhe estou grata!. . . Quanto ao senhor, cavalheiro. . .
E voltou-se para Bouflers, fazendo-lhe um gesto de despedida.
— Obrigado! respondeu este. Antes, porém, de sair, permita que a felicite pela bela escolha que fez para seu amante!... liste adorável palerma merece bem uma cínica da sua ordem!
E pondo o chapéu na cabeça, encaminhou-se para a saída.
— Miserável! exclamou o marquês, correndo sobre ele.
— Infame! disse Alzira acompanhando-o.
Mas foram detidos pelo conde de Saint-Malô, Artur Bouvier, Cobalt e as damas que acudiram lá de dentro em sobressalto.
— Que foi?!
— Que significa isto?!
— Bouflers!
— Um escândalo?!
— Que sucedeu?!
— Covarde! covarde! covarde! exclamou Alzira, procurando chegar até onde estava Bouflers.
— Todos os teus insultos, respondeu este. armando a carreira para fugir, não valem uma palavra, uma só, que qualquer homem tem o direito de atirar-te à cara!
E rápido, chegando a boca ao rosto dela, segredou um termo que a fulminou.
E fugiu.
— Ah! gritou a cortesã, levando as mãos ao peito e cambaleando.
E correu ao marques para bradar-lhe, segurando-lhe o braço:
— Vá! Siga-o! Alcance-o ainda que no inferno! Não me volte aqui sem o haver matado!
— Oh! Obrigado, condessa! exclamou Florans.
E, desembainhando a espada, desapareceu da sala e bateu pelas escadas, ligeiro como um raio.