A Mortalha de Alzira/I/XII
Na subseqüente quinta-feira achava-se no salão de Alzira a roda do costume, e conversava-se ainda a respeito de Ângelo e da sua perturbação ao terminar a missa em Notre-Dame, quando Amilcar apareceu para anunciar que a ceia estava servida.
— Meus amigos, disse a condessa, não faço
Afastaram-se os comensais para a sala de jantar, e o Dr. Cobalt correu a encontrar-se com a dona da casa.
— Sente alguma cousa, minha amiga?... perguntou-lhe solìcitadamente, apoderando-se de uma das mãos dela.
— Não, doutor. E diga-me: sabe se ele partiu ontem, como estava previsto?
— Ainda não. Foi detido por uma febre.
— Moléstia grave?...
— Qual! Sobreexcitação nervosa, produzida naturalmente pelo fanatismo.
— E quando parte?
— Não sei, condessa, Logo que possa fazer a viagem. O marques já comprou a casa?
— Já.
— Onde?
— Em Raismes.
— Bom.
E vendo que o marques se aproximava:
— Aí vem o seu verdugo. Vou tomar chá. . .
Afastou-se.
— Pensei que não nos deixassem um momento em liberdade!. . . disse o amante de Alzira, encaminhando-se para ela.
— Ah! Estava aí, marques? Não vai à mesa?. . . perguntou a formosa mulher, afetando um gesto de interesse.
Florans franziu a testa.
— Minha presença a incomoda, condessa, segredou ele, chegando-se mais. Impacientava-me por me ver a seu lado. . . sozinhos. . .
— Está no seu direito...
— Não me fale em direito, minha flor. Não é por um direito que eu desejo privá-la dos seus momentos de solidão . . .
— Então por que mais é?...
— Desejava que fosse por seu gosto, pelo prazer que a condessa, encontrasse em conversar a sós comigo. . .
— Isso não é cousa que dependa só da vontade. . .
E como o marques fizesse um triste ar de ressentimento:— Não se pode queixar, meu amigo, creio que, depois que estamos juntos, ainda não deixei uma só vez transparecer má vontade em suportar a sua companhia . . .
— Suportar!. . . repetiu o pobre marques com um suspiro. Suportar!... eis um termo que, só por si, patenteia toda a indiferença que a senhora tem por minha pessoa. . .
— Suportá-lo é a minha obrigação, e faço por cumpri-la o melhor que me é possível. . . Repito que o marques não tem o direito de queixar-se...
— Ah! suspirou ele de novo. Não! não tenho! Sou tão infeliz que nem esse direito possuo. . . Juro-lhe, entretanto, que preferia menos zelo razão retorquiuno que fala, e um pouco mais de escrúpulo no que me diz às vezes. A franqueza, minha cara amiga, em certos casos e usada de certo modo, é ofensa. . . e a senhora, creio eu. . . não tem motivo algum para me ofender. . .
— Ah! que o senhor hoje está num dos seus maus dias! . . . respondeu ela, meneando a cabeça com impaciência.
E, notando que ele se afastava, acrescentou a meia voz, como se receasse detê-lo com as palavras:— Desculpe se o ofendi. . .
Mas o marques voltou, e ela então acudiu desabridamente: — Se a sua intenção é dizer-me qualquer cousa, ou exigir de mim seja o que for, fale logo com franqueza e por uma vez. Bem sabe que estou às suas ordens! . . .
— Às minhas ordens!... resmungou o infeliz. Às minhas ordens!. . . Tem graça! Preferia estar eu às suas, como estou, mas que lhe não ouvisse a cada instante palavras duras apoquentadoras. . .
Alzira perdeu a paciência.
— Oh!basta!exclamou. Que impertinência! Está sempre a queixar-se. . .
— Queixo-me com razão— retorquiu ele, por sua vez irritado, e fazendo-se vermelho. A condessa bem sabe que a minha ligação com a senhora não foi um simples impulso dos sentidos!...
— E que tenho eu com isso?... interrogou ela, apertando os olhos. Que tenho eu com os motivos que o levaram a ligar-se comigo?. . .
O marquês, coitado! já se não podia conter, e prosseguiu com a voz trêmula:
— A senhora bem sabe que, para ficar a seu lado, tive de sacrificar tudo que de melhor e mais sagrado possuía no mundo! Sabe que esse amor invencível que a senhora me inspirou, foi a causa da morte de minha esposa e será a desgraça de meus filhos.
— Mas o marquês também sabe e há de convir, replicou Alzira, que eu não tenho culpa alguma em tudo isso! Há de convir que não dei o menor passo, nem empreguei o menor esforço, para provocar esta união!. . . O marques viu-me um dia, apaixonou-se; fez-me uma proposta, que eu aceitei porque me convinha. . . Nesse contrato não me comprometi a amá-lo, comprometi-me apenas a não pertencer a outro, enquanto estivesse na sua dependência. . . Ora, creio que até hoje ainda não faltei com a minha palavra!. . .
— Tem razão, condessa... disse o marquês, já vencido. Tem toda a razão. Mas tudo isso é porque a amo, muito, loucamente!
Quis tomar-lhe as mãos; ela não deixou, e respondeu virando-lhe as costas:
— Ama-me muito! Isso não diminui a impertinência de suas palavras! Não é a primeira vez que o senhor me lança em rosto a morte de sua mulher e o futuro de seus filhos!. . .
— Perdoe, Alzira...
— Se lhe não convenho, se lhe sou perniciosa, afaste-se de mim! Ninguém o obriga a ficar a meu lado!
E arredou-se dele, para ir assentar-se em um divã. O marquês acompanhou-a.
— Se o traísse, vá! continuou ela; se lhe desse ocasião de ter ciúmes, ainda vá; mas, que diabo, eu cumpro lealmente com o que prometi e, quando não estivesse disposta a fazê-lo, di-lo-ia com franqueza, porque afinal sou livre! Como, pois, admitir que me exprobre fatos, pelos quais não sou responsável O senhor, se fez sacrifícios para obter-me, não foi sem dúvida com o intuito de praticar uma boa ação, mas simplesmente para proporcionar a si mesmo um prazer que lhe apetecia. Se fez sacrifícios, não foi por mim, foi pela sua própria pessoa; e, se não tinha elementos para a empresa, por que a empreendeu?. . .
— Porque a amava!
— E amava-me, porque sou bela, sou moça e estou na moda! Ora, meu caro marquês, há de convir que com isso não teve originalidade alguma!... (E soltou uma risada de escárnio). Original seria se tivesse a desvairada pretensão de ser, durante algum tempo, o amante exclusivo da condessa Alzira, sem despender alguns milhões de francos!. . .
— A senhora bem sabe que não é o dinheiro despendido o que eu deploro. . .
— Pois eu com o resto nada tenho que ver!... São-me indiferentes a morte de sua mulher e o futuro de seus filhos!. . . Quando o senhor se descuidou deles, quanto mais eu! . . . O senhor que fosse melhor marido e melhor pai! Se há um criminoso entre nós, não sou eu decerto: na minha qualidade de cortesã, sou lógica, não me afasto uma linha do meu programa; o senhor é que se afastou dos seus deveres, na qualidade de chefe de família. Queixe-se por conseguinte de si mesmo e não me aborreça!
— E é a senhora quem me diz isto?!. . . exclamou o marques, abrolhando os olhos.
— Certamente, respondeu Alzira, com toda a calma.
— No entanto, volveu ele, a condessa, sabe perfeitamente que eu a tudo me resignaria, se a senhora fosse para mim um pouco mais amorosa... eu tudo perdoaria, se. . .
— Perdoaria?. . . mas eu é que não quero o seu perdão para cousa alguma. . . Não me sinto absolutamente culpada.
— Pois devia sentir-se! disparatou o fidalgo, fazendo-se outra vez vermelho. Tenho o direito de ser tratado melhor nesta casa!
Alzira olhou para ele sem voltar o rosto.
— Minhas palavras são amargas?... disse. É o senhor quem as provoca. . . Quantos aos meus atos— são irrepreensíveis!...
Esta última frase teve o encanto de transformar 0 marquês.
— Tudo isso, resmungou o queixoso, prova que a senhora nunca sentiu por mim o menor vislumbre de amor . . .
Alzira soltou uma gargalhada sincera.
— Ora, marquês, não me faça rir! disse depois, cobrindo o rosto com o lenço.
— Não é debalde que todos a citam como a mulher mais insensível do mundo!
— Mas por que razão queria o marquês que o amasse? . . .
— Quando por mais não fosse, por gratidão. . .
A condessa, já séria, mediu-o de alto a baixo.
— Nunca lhe pedi obséquios! disse
— Mas aceitou-os. ..
— Engana-se!
— Com a senhora despendi o necessário para enriquecer cinco famílias!. . .
— Basta! (E ela desta vez bateu com o pé). Já me tardava que o senhor me lançasse também em rosto esse dinheiro que supõe ter gasto comigo!
E encaminhou-se lentamente até ao tímpano e vibrou-o com força.
— A senhora vai pôr-me fora?... gaguejou o marques, fazendo-se pálido.
— Não, explicou ela, muito tranqüila. Vou ordenar ao criado que não o receba quando o senhor voltar. Não tenho o direito de o mandar sair, mas tenho o de nunca mais o receber!
Um raio não fulminaria tanto o marques como estas palavras. De pálido passou novamente à cor de cereja. Hesitou um instante, limpou o suor da testa e, afinal, foi ter com Alzira, e disse empregando todo o esforço para sorrir:
— A senhora dessa forma obriga-me a não voltar. .. (Ela sacudiu os ombros.) E, para evitar que isso aconteça. . . só vejo um meio. . . é não sair mais daqui . . .
Foram interrompidos pelo criado, que exclamou da porta, fazendo uma continência:
— O cavalheiro Bouflers!
— Bouflers?. . . repetiu Alzira.
— Bouflers aqui!... resmungou entredentes o marquês.
E acrescentou, dirigindo-se à condessa:
— Eis aí um. . . com quem a senhora não usaria da franqueza que usa comigo. . .
— Por que não?
— Porque é moço, é belo e tem talento. . .
Alzira gritou para o pajem:
— Dizer-lhe que ainda desta vez o não recebo. . .
— Não lhe convém recebê-lo em minha presença condessa?. . .
— Ah! Sim?. . . disse ela.
E voltou-se de novo para o criado:
— Faze-o entrar.
O criado saiu.
— Mas eu, exigiu o marquês, quero ficar ali, por detrás daquela cortina. . .
— Com uma condição, propôs a condessa, haja
o que houver, o senhor não se baterá com ele. . .
— Prometo, mas a senhora não lhe dirá que o ama. . .
— Ah! Não! Isso não direi com certeza. . .
— Pois então juro que me não baterei.
— Pode esconder-se.
O criado reapareceu, erguendo o reposteiro, para dar entrada ao satírico e famoso poeta Bouflers.