A Mortalha de Alzira/I/XI
Era a antecâmara da formosa Alzira rigorosamente posta ao caprichoso gosto da época.
Guarneciam-na móveis de madeira, esculpida e pintada de branco, com arabescos de ouro, que variava entre o fusco e o luzente, formando torturados desenhos de ornato. Pombas aos pares e anjinhos rechonchudos serviam de adorno às guarnições das portas. Sobre peanhas e cantoneiras havia jarras de Sèvres, com pinturas assinadas, em que se viam pastores enfeitados de fitas azuis e cor-de-rosa, na cinta, nos joelhos, no pescoço e nos tornozelos, tocando avena e flauta, ao lado de roliças raparigas de saia curta listrada com sobre-saia de tufos de seda clara, chapéu de palha, coberto de flores, uma corbelha enfiada no braço, sapatinhos quase invisíveis, e um dos peitos à mostra, branco e levemente rosado, como trêmula gota de leite sobre uma pétala de rosa.
As cortinas de estofo alvadio, adamascado de prata, eram arrepanhadas ao meio por grandes florões de penas multicores.
Os espelhos tinham cercaduras de florinhas de porcelana, primorosamente acabadas e coloridas com muita arte. Era uma recordação do luxo de Luís XIV.
Em cima do fogão, dourado quase todo, havia um grande relógio de Boule, tirado por leões de ouro, entre várias lâmpadas e espevitadores também de ouro.
Nas paredes, forradas de uma tapeçaria azul celeste, destacavam-se suavemente, por cima das portas e contornando os móveis, desenhos do mesmo azul um pouco mais escuro, representando alegorias pastoris.
Prendiam a tapeçaria cordões de arame de prata entrançando, com grandes nós de espaço a espaço, terminando em amplas borlas do mesmo metal, que afinavam admiravelmente com os bordados das cortinas.
O tapete era felpudo e azul sombrio, à moda dos volutuosos tapetes da Turquia. Os batentes das portas eram forrados de veludo cor de pérola e fechavam como tampas de estojo.
Alzira, ainda em penteador, estendida negligentemente num divã fofo e rasteiro, fumava uma dourada cigarrilha oriental, e acompanhava distraída as espirais do fumo com as pálpebras semicerradas.
O relógio marcava meio-dia. Ela acabava de levantar-se do leito, onde fizera a sua refeição da manhã; uma pequena xícara de chocolate e dois biscoitos de Reims.
Um rico dominó de seda negra, arremessado sabre uma cadeira, e uma meia máscara caída sobre o tapete, diziam que nessa madrugada se recolhera ela depois de um baile; e um pobre lenço de rendas preciosas, que jazia a um canto estraçalhado em tiras, denunciava todo o frenesi de tédio com que a linda condessa, à volta do baile, entrara nos seus aposentos.
Mas agora, sozinha no perfumado e tépido remanso da sua antecâmara, parecia já esquecida dos aborrecimentos da véspera, alheia a tudo que a cercava, e só entregue e abandonada, volutuosamente, à memória do venturoso sonho dessa manhã.
Pensava em Ângelo. Via o em meio dos esplendores da igreja, cercado de ávidos olhares, surgindo, todo paramentado de ouro, dentre uma nuvem de incenso. Via-o, formoso e cândido, de braços abertos, defronte do altar, com os olhos virginais voltados para o céu. Via o trêmulo sorrir da sua boca de anjo, via o melancólico balancear dos seus negros cabelos de meridional. Tinha-o todo inteiro e todo vivo defronte da sua alma, pela primeira vez enamorada; tinha-o ali, defronte dela, com a sua misteriosa palidez de flor de estufa; tinha-o com aqueles lábios tão divinos e tão puros, com aqueles gestos donairosos e tranqüilos, com aquela voz embriagadora, que parecia sair de uma garganta de cristal e sândalo.
Tinha-o todo inteiro, e sentia-lhe até os perfumes do damasco da sua vestimenta, o aroma do seu hábito e o bálsamo dos seus cabelos.
E Alzira espreguiçou-se com um profundo suspiro, de olhos fechados e lábios entreabertos, dilatando o pescoço, como se procurasse alcançar com a boca a sombra de uma outra boca fugitiva.
E deixou-se cair sobre a almofada do divã, suspirando de novo, inconsolável na sua deliciosa mágoa de amor.
O que em Ângelo a fascinava daquele modo, o que a arrastava para ele tão irresistivelmente não era, todavia, a singular formosura do pálido presbítero, mas a sua fenomenal pureza de corpo e de alma; era aquela sedutora virgindade, ligada a tão altiva e clara inteligência.
Ela, que vira rendida a seus pés a fina flor de espírito parisiense e a flor brilhante de toda a fidalguia do seu tempo, e que nunca se deixara escravizar pelo ouro dos nababos, nem pela vermelha glória dos heróis vitoriosos, ou pela glória azul dos poetas endeusados; ela, que até aí jamais entregara os pulsos, sequer por um instante, a uma dessas paixões, que fazem da pessoa amada o dono e senhor exclusivo da nossa vida e dos nossos pensamentos; ela, a insensível Alzira, a cortesã de mármore, sentia-se agora cativa de Ângelo, o casto; e seria capaz de trocar, por um beijo daqueles lábios imaculados, todos os seus tesouros, todas as suas jóias, todas as suas baixelas e todo o valimento do seu corpo escultural.
Era a primeira vez que amava, era a primeira vez que todo o seu ser desejava alguém; a primeira vez que ela se sentia pequena, humilde, miserável, defronte de um homem; a primeira vez que se supunha capaz de ajoelhar-se aos pés do seu amante e beijá-lo doida de amor, pedindo ternura como um cão pede carícias aos pés do dono, suplicando-lhe que a fizesse morrer sufocada nos seus braços, para que fosse dele a última vibração daquela frágil carne de mulher, e dele fosse o extremo beijo daquela pobre alma apaixonada.
E começou a soluçar.
Era mulher pela primeira vez: pela primeira vez chorava.
Daí a instantes, agitou-se o reposteiro de uma das portas, e um negro, de libré vermelha, entrou na antecâmara, com os braços cruzados e os olhos baixos.
— Que é, Amilcar?. . . perguntou Alzira sem tirar o lenço dos olhos.
— O Dr. Cobalt. .. respondeu o africano com a sua acentuação etíope.
— Cobalt, sim, pode entrar. . . E mais ninguém, ouviste? nem o marques!
O negro retirou-se. E o médico entrou pouco depois, risonho e prazenteiro como sempre.
Foi logo beijar a mão da condessa e ficou a tomar-lhe o pulso.
— Então?... indagou, olhando-a no fundo dos olhos. O mal tem progredido?
Ela respondeu com um suspiro, e ofereceu-lhe um lugar a seu lado no divã.
Cobalt assentou-se e deu um estalo com a língua.
— Não estou nada contente com isto, sabe?... declarou ele, em ar de paternal censura. No seu melindroso estado de sobreexcitação nervosa, produzida pelo excesso dos prazeres, pode ser-lhe fatal este singular capricho da fantasia, porque nunca poderá ser satisfeito. Ângelo, como homem, é um caso perdido. . . não podemos contar com ele para nada E receio que esta circunstância traga perigosas conseqüências. . . Ora, a condessa nunca amou, nunca sofreu esse adorável gênero de loucura; o seu organismo não tem por conseguinte a menor prática da moléstia de que agora se sente atacado, e aquilo que para outra mulher nada valeria, pode nestas condições transformar-se em cousa muito séria! . . .
— Mas que hei eu de fazer, meu amigo?
— Oh! Se fosse possível, receitava-lhe: "Ângelo em estado simples, duas doses por dia, uma antes e outra depois do sono. E' bom sacudir o remédio antes de o tomar." E pronto! Afianço que ficaria boa!
Alzira teve um gesto de impaciência, e o médico, percebendo-o, tomou-lhe as mãos e disse, como se falasse com uma criança caprichosa e doente:
— O que há de fazer?. .. Ora essa! nada mais simples: evitar semelhante preocupação!. . .
— É impossível!
— Viaje! Vá até à Itália! Corra o mundo inteiro, se for preciso; e leve o marquês. . .
— Não me fale no marquês!
— Aqui é que não convém ficar, deixando-se consumir por um desejo, que naturalmente nunca será satisfeito. .. Pelos seus olhos, percebe-se que já hoje chorou! É muito bonito, não há dúvida!
— Não ralhe comigo, doutor!
— Ralho com razão! Sempre lhe perdoei as fantasias, mas. ..
— Sabe se é verdade o que disseram?
— A respeito de que?
— A respeito dele. Parte?
— Sim. É exato; parte para Monteli.
— Quando?
— Não sei. Por estes dias.
— Monteli! Irei também!
— Está sonhando, condessa?... Monteli é hoje o lugar de mais peste! Não irá, que não consinto!
— Há de consentir e até há de acompanhar-me. . .
— Eu?! qual! — Nesse caso irei só. Vai ver! E foi ao tímpano e vibrou-o. Reapareceu Amílcar.
— O marquês já está visível?... perguntou-lhe ela. Vai a ver, e, se estiver, dize-lhe que faça o favor de vir cá.
Quando daí a pouco o marques, com a sua desafinada figura de homem muito alto e muito gordo, entrou na perfumada antecâmara de Alzira, esta, antes que ele tivesse tempo de apresentar-lhe uma galanteadora frase de saudação, e antes que ele correspondesse ao cumprimento do Dr. Cobalt, disse-lhe sem mais preâmbulos e no tom de quem dá uma ordem irrevocável.
— Meu amigo, de hoje até depois de amanhã o mais tardar, preciso de uma casa de campo nas imediações de Monteli! Vá! não se descuide! É caso urgente!
O marques contentou-se, na sua surpresa, de fazer uma cara de assombrado.
E sorriu constrangidamente.
O médico também sorriu, mas sem nenhum constrangimento.