A Mortalha de Alzira/I/X
Ângelo não conseguira concentrar-se.
— Mas que estranha perturbação será esta?... exclamou ele desistindo da súplica e erguendo-se dos joelhos. Que teria eu feito para estar assim?. . . Que teria eu cometido, sem consciência minha, para que a oração já não exerça no meu espírito a eficácia consoladora que tinha dantes?. . .
E nada respondia às suas palavras ansiosas. E em torno da sua aflição era tudo cada vez mais surdo, mais fechado e mais morto. Voz amiga não lhe acudia nenhuma em seu socorro, quer viesse ela de dentro dele mesmo, quer baixasse do céu para ampará-lo.
O mísero lançou em torno do seu abandono os olhos suplicantes, e deu com a Bíblia.
Correu a buscá-la, tomou-a nas mãos sofregamente, levou-a aos lábios e beijou-a.
— Minha boa amiga! disse apertando-a contra o peito; minha fiel companheira de tantos e tantos anos! foste tu a minha doce consolação, o meu refúgio carinhoso, o meu confidente, o escrínio das minhas primeiras lágrimas e dos meus últimos sorrisos; foste tu a discreta testemunha dos meus êxtases e o grande manancial das minhas alegrias religiosas, vale-me também agora! vale-me tu, que me abrigaste durante o longo tempo, em que vivemos os dois encerrados com as minhas mágoas nesta prisão sombria! Ah! como eu era então feliz! . . . como tinha a alma tranqüila e descuidosa!. . . Vale-me amada minha, que talvez consigas o que a oração não pode!
E, sentando-se no banco, abriu a Bíblia sobre os joelhos e leu, ao acaso, alguns versículos do primeiro capítulo que seus olhos encontraram.
Era o livro de Jó.
"A minha alma tem tédio à minha vida; soltarei a minha língua contra mim; falarei na amargura de minha dor desconhecida.
"Direi a Deus: As tuas mãos me fizeram, e me formaram todo em roda, e assim de repente me despenhas?
"Lembra-te, eu te peço, que com barro me formaste e que me hás de reduzir a pó.
"Vida e misericórdia me concedeste, e a tua assistência conservou o meu espírito.
"Se eu pequei, tu me perdoaste na mesma hora; porque não permitiste tu que eu esteja limpo da minha iniqüidade?
"Tu multiplicas contra mim a tua ira, e as penas combatem contra mim.
"Por que me tiraste tu do ventre de minha mãe? Oxalá que eu tivesse perecido, para que nenhuns olhos me vissem. Que tivera sido como se não fora, desde o ventre transladado para a sepultura.
"Deixa-me, pois, que eu chore um pouco a minha dor!
"Antes que vá para não tornar para aquela terra tenebrosa, e coberta da escuridade da noite. Terra da miséria e do terror."
Mas o seu espírito rebelado fugia da página da Bíblia, e punha-se a cantar-lhe ao ouvido as palavras do velho Ozéas: "E, se apesar de tudo, encontrares alguma mulher, que te leve a sonhar estranhas venturas . . . "
Ângelo estremecia, tornava à página e punha-se a ler. Mas aqueles lamentosos versículos, que dantes o arrebatavam para Deus, agora nada mais conseguiam do que deixá-lo num vago entorpecimento de desanimo.
E vinha-lhe uma frouxa vontade de morrer, ou pelo menos de envelhecer logo, de repente, ali mesmo; um desejar que seu corpo se fizesse de súbito alquebrado e frio, que seu cabelo, de preto e lustroso se tornasse branco e desbotado, que os seus dentes amarelecessem, e que a sua fronte se despojasse naquele mesmo instante, e abrisse toda em rugas.
Desejava refugiar-se covardemente na velhice, como dentro de um abrigo seguro contra a feroz matilha que lhe rosnava no sangue. Mas a misteriosa frase de seu pai, vinha-lhe de novo à superfície dos pensamentos furando e abrindo caminho por entre todas as outras idéias.
"E, se apesar de tudo, encontrares alguma mulher, que te leve a sonhar estranhas venturas, bate com os punhos cerrados contra o peito, dilacera as tuas carnes com as unhas, até sangrares de todo o veneno da tua mocidade!"
— Mas que estranhas venturas serão essas que as mulheres nos levam a sonhar?. . . interrogou-se ele, erguendo o rosto e cruzando as mãos sobre a página da Bíblia. Então a mulher não é também uma criatura de Deus?. . . um ente, tão abençoado e protegido por ele, que até foi por ele escolhido para servir de mãe a seu filho Jesus?. . . Pois tão grande honra se concederia a um ente desprezível, posto neste mundo só para tentar os justos e desviá-los do caminho da virtude?... Se a mulher é má, por que existe?. . . Se existe, por que Deus a fez má e perigosa?.. . Por que me é vedado amá-la tanto quanto me cumpre amar aos homens?. . . A ela ainda devia amar muito mais, porque é mais fraca, mais mesquinha, mais amorosa e mais desamparada. Por que não devo amar as mulheres?... Não serão minhas irmãs?... Não seremos todos filhos do mesmo pai?. . .
Fechou os olhos, como se quisesse fugir a estes pensamentos; mas a idéia da frase de Ozéas alastrava-se-lhe pelo cérebro, estrangulando todas as outras, que nem a planta egoísta e daninha que não permite viver e crescer ao seu lado nenhuma outra planta.
— Se a mulher é produto dos infernos. . . continuou ele a pensar; todos temos em nós um pouco de Deus e um pouco do demônio, porque todo o homem nasce, tanto do homem como da mulher. Não compreendo bem este fenômeno do nascimento. .. nunca mo explicaram. . . Mas sei que o homem nasce da mulher, como Jesus nasceu do ventre de Maria... Não mo explicaram, e todavia ensinaram-me a odiar a mulher. . . Por que?
Nisto, entrou na sombria cela um alegre casal de borboletas brancas, e começou a cruzar-se no ar, doudejando em volta da cabeça de Ângelo. Depois uma delas, enquanto a outra a perseguia, foi pousar tranqüilamente na amarelenta página da Bíblia, que ele conservava aberta e esquecida sobre os joelhos.
O presbítero pôs-se a fitá-la. A borboleta fugiu para o teto, à procura da companheira, e ele a seguiu com a vista.
— Um casal de borboletas!... disse consigo. Duas!. . . Um par!. . . E por que duas?. . . Por que andam juntas? Por que não veio uma só?. . .
Elas interromperam de novo o seu aéreo e irrequieto idílio, e foram pousar, uma ao lado da outra, na pequena cruz latina que encimava o oratório da Virgem.
Ângelo continuava a pensar:
— Se o sexo é uma imundície condenada por Deus, por que Deus então fez as suas criaturas aos pares, e por que fez o sexo?. . . Por que os homens não continuam a nascer como Adão e Eva?... "Por castigo" diz a Escritura Sagrada... Logo, a procriação não é um bem, é um mal; logo, o mundo inteiro é um purgatório, e a vida um tormento!. . .
As borboletas começaram de novo a doudejar no espaço.
— E estas desgraçadinhas, interrogou Ângelo a si mesmo; estas também pecaram no Paraíso, para que Deus as obrigasse a viver e procriar?. . .
As borboletas, redobrando de impaciência' iam e vinham por toda a cela, à procura de uma saída.
O padre compadeceu-se delas e quis dar-lhes o ar livre. Foi abrir a janela, mas encontrou resistência; os gonzos oxidados não queriam acordar do seu ferruginoso sono de vinte anos. Ângelo empregou toda a força e conseguiu afinal abri-la.
Um jacto de luz alegre e cantante inundou a fria prisão. Um mundo de vida patenteou-se no ar, à doiradora claridade que vinha lá de fora.
O presbítero correu às grades da janela.
— Que belo! Que belo! exclamou ele, defrontando com extensa paisagem que se descortinava aos seus olhos deslumbrados.
Estava a uns cem metros de altura. O ponto de vista era esplêndido. Primeiro, o grande parque do convento, todo cercado de altos muros; depois, as ruas da cidade, as praças e os jardins, e logo em seguida o Sena, coberto de barcos, e afinal as longínquas árvores do campo, que se perdiam suavemente nas tintas duvidosas do horizonte.
— Que belo! Que belo!
E vendo o casal de borboletas, que fugia espaço afora:
— Oh! Como vão ligeiras. . . Como brincam no espaço... Agora dizem um segredo... Voam de novo... Desaparecem...
Abaixando o olhar, descobriu sobre um telhado um casal de pombos que arrulhava.
— Como são lindos! pensou. Como são brancos e amorosos! Agora se beijam! Que belo! Que belo!
Na rua descobriu um homem de braço dado a uma mulher, levando ele um pequenito pela mão.
— São casados!... A criança parece com ambos!... Oh! agora conversam... ele tomou as mãos dela entre as suas; ela sorri, abaixa os olhos... São felizes!
Afastou-se bruscamente da janela. O espetáculo daquela tranqüila ventura fazia-lhe mal, e quase o irritava.
Não sabia dizer por que, mas num íntimo e profundo malquerer, contra tudo e contra todos, principiava a torturá-lo com uma dura e secreta agonia de inveja.
— São felizes! são felizes! soluçou de punhos cerrados e com o coração oprimido. E por que hão de eles rir e eu chorar! Qual é o meu crime?! Por que todos nesta vida tem uma companheira e eu não a posso ter?! Por que hei de ser só, eternamente só, quando a natureza deu um par a cada uma das suas criaturas?!. . .
Mas caiu logo em si, e derramando pela cela um olhar de quem desperta de traiçoeiro sonho, deu com a imagem da Virgem, que, de dentro do seu nicho de pedra, parecia lançar-lhe um triste sorriso de ressentimento.
— Não! bradou ele, atirando-se de joelhos e arrastando-se até os pés da Santa. Não estou só! nunca estarei só! Sou um padre e a minha esposa sois vós, Senhora amorosíssima, lírio celeste, perfeição dos céus! Perdoai-me se por um instante de delírio me esqueci do nosso amor!
E correndo à janela, bramiu, ameaçando lá fora, com a mão fechada:
— Oh! Bem te compreendo, natureza pérfida e sedutora! bem compreendo os teus embustes! És pior ainda que a tua rival, a sociedade! Mas em vão te enfeitas com as tuas galas e com os teus sorrisos de amor! Não me seduzirás, pântano de lama coberto de flores! Não me corromperás, porque tenho na alma bastante energia para governar os meus sentidos, e tenho o meu coração cercado por uma muralha de fé! Atira-me aos pés o ouro do teu sol, atira-me o perfume das tuas flores, o mel dos teus frutos, o mistério dos teus crepúsculos, a música das tuas florestas, os deslumbramentos das tuas auroras! tudo será baldado! Hei de resistir a todas as tuas provocações! hei de lutar contra todos os inimigos da minha pureza, e, ou cairei morto, ou hei de suportá-los a todos, um por um!
E sentindo-se arrebatado no delírio da sua fé, bradou como um louco:
— Venham! Venham filhos do inferno! Podem vir todos, que me encontrarão armado e de pé firme!
Em seguida atirou-se de novo aos pés da Virgem e começou a rezar fervorosamente.
Quatro horas depois foi surpreendido pelo velho Ozéas, que lhe bateu no ombro.
Ângelo voltou para ele os olhos desvairados.
— Amanhã, disse aquele, partiremos de madrugada para Monteli.
— Estou às suas ordens, meu pai.