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A Mortalha de Alzira/I/IX

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Ângelo, de volta da igreja, assim que se achou no carro a sós com Ozéas, abriu a soluçar, numa convulsa explosão de todo o seu ser.

Não podia, entretanto, determinar o que se passava em sua alma. Era uma agonia estranha e dolorosa, que a revolucionava sem dizer porque; um íntimo martírio, feito de vagas apreensões, que a atordoavam de terror por iminentes e desconhecidos perigos.

Sem ter a menor idéia da vida comum, sem desconfiar sequer do maravilhoso efeito que o seu sermão de quinta-feira santa produzira sobre o público, que poderia o mísero compreender de todo aquele ruidoso entusiasmo que o cercara, e de todos aqueles ávidos olhares feminis que o devoravam de curiosidade?

Seu próprio nome, ouvira-o ele repetido por tantas bocas ao mesmo tempo, que agora lhe chegava à memória como o estribilho de uma singular canção, falada em língua alheia.

Ozéas, ao seu lado, meditava sem erguer a cabeça, recolhido em profunda preocupação.

Não deram ambos uma só palavra durante a viagem, até chegar ao mosteiro.

Entraram na cela como duas sombras.

O presbítero foi direito ao altar da Virgem, caiu de joelhos defronte dela e quedou-se a fitá-la, enquanto as lágrimas lhe escorriam pelo rosto, agora silenciosamente.

Depois ergueu-se e começou a considerar, abstrato, tudo que o cercava ali, como se visse aqueles objetos pela primeira vez.

E tudo aquilo nunca lhe pareceu tão miserável, tão ermo e turvo, como naquele instante. Aquela dura prisão, onde surdamente se escoara a triste mocidade, nunca lhe pareceu tão árida e tão mesquinha. Aquelas nuas paredes, empalidecidas pelo tempo, nunca lhe pareceram tão apertadas, e aquele sombrio teto, tão baixo e tão sufocante.

Olhou longamente para as suas velhas estantes carregadas de pesados livros religiosos, olhou para a sua tosca e tranqüila mesa de estudo, para a sua pobre enxerga de condenado, e ficou a considerar o cilício pendido da parede junto ao altar da Virgem.

Ozéas observava-o, imóvel até ali, de braços cruzados, com uma inconsolável e funda expressão de mágoa no olhar.

Afinal, foi ter com ele, e tocou-lhe no ombro.

Ângelo despertou sobressaltado.

— Então, meu filho, disse o velho com voz segura; continua a tua perturbação?. . .

Ângelo não deu resposta.

— Vamos! Fala!

— Sim, meu pai, tartamudeou o pobre moço, volvendo para ele os olhos inocentes. E peço-lhe que me deixe a sós; preciso concentrar-me, até voltar à minha primitiva tranqüilidade. . .

O velho insistiu, segurando-lhe as mãos e fitando-o, como se procurasse arrancar-lhe pelos olhos a confissão da revolta que lhe ia na alma.

— Mas como explicar semelhante perturbação?. . . exclamou ele. Pois então justamente hoje, hoje que tua alma devia, melhor que nunca, resplandecer de santo júbilo; hoje, que deste o teu último passo para chegar ao coração da igreja; hoje, que deste o teu supremo voto; hoje é que te sentes conturbado e aflito?!... Como explicar semelhante anomalia?!. ..

— Não sei. . . não sei. . . balbuciou Ângelo. Deixe-me ficar só, meu pai! Deixe-me conversar com a minha pobre alma!. . .

— Mas tu nunca faltaste a nenhum dos teus deveres. . . tornou o frade. Tu nunca pecaste, por palavras, nem por obras, nem por pensamentos. . . tu, que foste por bem dizer educado pela mão de Deus, porque até hoje te não afastaste uma linha do seu divino ritual. . . tu, que não tens sequer a idéia da culpa. . . tu, és tão inocente e tão puro como no dia em que te trouxe em meu colo para este convento. . . tu, que vieste das mãos de Deus para as minhas, e das minhas tornaste hoje diretamente para as mãos de Deus... porque tremes agora e por que me olhas desse modo, Ângelo?!

— Não sei, não sei, meu pai!

E Ângelo, como se receasse a traição dos próprios olhos, sentou-se no banco e escondeu o rosto nas mãos.

Ozéas chegou-se mais para ele e disse, depois de contemplá-lo em silêncio por algum tempo:

— Acaso estará o demônio a cercar-te, cobiçoso de tua alma tão branca e tenra?. . . ou a tua perturbação será causada pelo eco profano dessa capital que te admira e te aclama, e cuja multidão só hoje atravessaste pela primeira vez?. . .

Ângelo ergueu-se e descobriu o rosto.

A sua fisionomia tinha-se transformado.

— Não sei! exclamou. Não posso explicar o que sinto, o efeito que me produz o confuso rumor que ouço em torno de mim!. . . Não posso determinar qual é o fato que me perturba, qual é o ponto de onde me vem esta agonia, mas sinto-me espavorido e frio, como se estivesse abandonado sobre o píncaro de um rochedo nu, em torno do qual se agitam todos os mares do globo. Sinto em derredor do meu cérebro o terrível vozear desse interminável oceano... E no arruído das suas vozes ameaçadoras, há como que a repercussão de um inferno sufocado pelas águas! Afigura-se-me a cada instante que o oceano se vai abrir defronte dos meus olhos, e que então o inferno aparecerá com as suas goelas de fogo, pronto a devorar-me. Não compreendo, nem distingo uma só dessas vozes, não consigo destacar uma palavra ou uma nota musical de todo esse murmurar de espetros, não sei o que é que me preocupa e consterna, mas sinto a alma pequena e transida de medo, como se em volta dela girasse rosnando um bando de leões esfaimados!

E lançando os braços em torno do pescoço de Ozéas, terminou com uma explosão de soluços, deixando cair a cabeça sobre o peito dele.

— Não sei o que me cerca! não sei o que me ameaça! Mas tenho medo, meu pai! Tenho medo! Salve-me, por piedade!

— Tens medo! bradou Ozéas. Entretanto, hoje não devias ouvir, nem ver, nem sentir outras vozes que não fossem as vozes do céu! Tua alma devia estar toda voltada para ele e só a ele refletindo, como um grande lago quieto, cristalino e límpido, cuja superfície não toldasse sequer a asa de uma abelha. . .

— Bem sei, bem sei, meu pai! soluçou Ângelo; mas, a despeito dos meus esforços, outras vozes vinham ainda há pouco misturar-se às vozes celestiais, outros perfumes perturbavam os aromas da igreja, outras idéias distraíam minha alma, outro sangue me pulsava em todo o corpo! Afigurava-se-me até ter dentro do peito outro coração que não o meu, dentro do cérebro pensamentos que me não pertenciam!

Ozéas, ouvindo estas palavras, teve um forte sobressalto de terror, e apossou-se de Ângelo como se o quisesse resguardar do mundo inteiro.

— Oh! bramiu ele, aterrorizado. É preciso que fujas, quanto antes, deste covil de tentações diabólicas! É preciso deixar Paris, imediatamente, já! É preciso que te refugies na paróquia mais humilde, mais pobre, mais miserável, e onde só possas encontrar sacrifícios e dores a sofrer! E se aí mesmo, arredado de tudo que for brilhante e fascinador, isolado das perdições mundanas, aproximar-se outra vez de ti o demônio e fizer com que o sangue te volva ao cérebro, ameaçando estrangular os teus votos sagrados, então agarra aquele cilício e fustiga e martiriza com ele a tua carne, até que a faças calar para sempre!

E, chegando-lhe a boca ao ouvido, segredou-lhe misterioso, a tremer, a tremer, convulsionadamente, como se naquele instante todo o seu passado se erguesse de novo, para vir, ainda, como dantes, pedir mais punição para os desvarios da sua juventude:

— E se, apesar de tudo, encontrares alguma mulher, que te leve a sonhar estranhas venturas. . . bate com os punhos cerrados contra o peito, dilacera as tuas carnes com as unhas até sangrares de todo o veneno da tua mocidade! Esmaga, à força de penitência, toda a animalidade que em ti exista! aperta os teus sentidos dentro do voto de ferro da tua castidade, até lhes espremeres toda a seiva vital! Fecha-te, enfim, dentro do teu voto de castidade, como se te fechasse dentro de um túmulo!

Ângelo soltou um grito e caiu de joelhos, balbuciando uma prece por entre os seus soluços.

Ozéas acalmou-se e estendeu o braços abençoando-lhe a cabeça com a mão aberta.

— Sim, reza! disse; reza, meu filho, ao pai misericordioso o maior tempo que puderes!

E depois acrescentou, inspirado por uma súbita idéia:

— O velho cura de Monteli acaba de sucumbir à peste que se manifestou nessa pobre aldeia. Vou ter com o arcebispo e peço-lhe que te nomeie para lá. Em Monteli não terás tentações!

E saiu vivamente, enquanto Ângelo, ajoelhado ao meio da cela, de braços e olhos erguidos para o céu, em vão procurava alar-se como dantes no vôo dos seus êxtases.

Era inútil. Seu pensamento caía por terra e ia arrastando-se até à esplêndida catedral, à procura de um bem, em busca de uma ventura, que ele não sabia qual era, mas tão doce e tão irresistível que lhe deixava alma e coração vagamente enleados de desejo.