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A Mortalha de Alzira/I/XVI

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Ângelo aproximou-se vagarosamente da misteriosa mulher que o esperava na capela, e perguntou-lhe a que vinha.

Ela, cuja comoção se percebia, apesar do espesso véu que a ocultava da cabeça aos pés, respondeu indicando-lhe o confessionário. Ele encaminhou-se então para lá, sentou-se, e, com um gesto, convidou-a a que se ajoelhasse a seus pés.

O vulto tremia todo, quando vergou os joelhos e abaixou o rosto, para rezar entredentes o confiteor.

— Não se amedronte, minha pobre irmã. . . disse o presbítero com a voz amiga; não trema desse modo, que por mais fundas que sejam as chagas do seu coração? e por maior que seja o remorso da sua alma, a misericórdia divina há de chegar até lá, se o arrependimento já lhe abriu o caminho e franqueou as portas. Não se assuste, porque não é a mim que vai falar, é a Deus, cujo seio de amor e de bondade jamais se fechou uma só vez aos que sofrem e pedem a remissão das suas culpas. Vamos! Abra-me a sua alma de par em par. Confie-me as suas dores, que eu as farei minhas, e ajudá-la-ei a carregá-las até aos pés do nosso pai supremo!

A embuçada, em vez de responder às palavras do confessor, deixou cair a cabeça sobre os joelhos dele, e abriu a soluçar desesperadamente.

Era um pranto convulso e sem tréguas, que lhe agitava o corpo inteiro, e que menos parecia a dor silenciosa e triste dos arrependidos, do que a explosiva revolta de quem chora pela ausência de uma ventura sensual e terrestre.

Ângelo, por sua vez, estremeceu perturbado e tolhido de alheios sobressaltas. Daquela misteriosa carne de mulher que palpitava a seus pés, erguia-se um quente eflúvio, traiçoeiro e lascivo, que lhe entontecia a alma, um odorante e luxurioso vapor de estranhos vinhos que o enleavam. Dir-se-ia que aquelas lágrimas recendiam a volúpia e que aqueles soluços eram soluços de amor, chorados no sigilo de uma alcova.

Ele ergueu-se, a embuçada segurou-lhe as mãos, cobrindo-as de beijos apaixonados.

Ângelo quis fugir. Ela, com um gesto rápido,

rejeitou o véu que lhe rebuçava as formas, e ali, no sagrado retiro daquela pobre capela de aldeia, surgiu a perigosa Alzira, a terrível condessa de gelo, mais pálida e mais sedutora do que nunca, assim humilde e triste sob a dura violência daquelas queixas de amor.

— Ó meu Deus!. . . balbuciou Ângelo de si para si, abaixando os olhos, como se estivesse defronte do demônio. Ó meu Deus, dá-me coragem! dá-me coragem!

E recuou alguns passos, estendendo o braço, como para isolar-se daquele abismo.

Nesse instante, Ozéas acabava de surgir ao fundo da capela, observando os dois, escondido por detrás de um altar. Seu peito arfava tão convulso como o peito de seu filho, mas nele o sobressalto era de outra espécie.

Ângelo, todavia, parecia calmo e senhor absoluto de si mesmo. Apenas o traíam a súbita palidez das faces e um ligeiro tremor de lábios.

— Creio, minha irmã, que nada mais tem que fazer aqui. . . disse ele pausadamente, apontando-lhe a saída. Queira retirar-se... não é este o lugar que convém às suas lágrimas... Vamos... saia, e, em benefício de sua própria alma, não torne a cometer semelhante desatino, que a faz muito mais culpada do que todas as outras maldades cometidas. Vamos! Retire-se! Este sagrado e tranqüilo recanto pertence somente aos arrependidos que sofrem!. . .

— Mas eu sofro! exclamou ela. Eu sofro muito! sofro infernalmente!

— Sofre?! inquiriu o padre, transformando-se. É talvez o arrependimento! Fale, minha irmã!

— Não! não sofro pelos delitos cometidos, não sofro pelas mortes que provoquei: sofro porque te amo, Ângelo! porque te amo loucamente!

E quis chegar-se para ele. Ângelo tornou a apontar-lhe a saída.

— Retire-se! Eu pedirei a Deus que se compadeça dos seus desvarios...

— Oh! eu te amo! eu te amo! eu te amo! soluçou ela, caindo novamente de joelhos, e procurando beijar-lhe a fímbria da samarra. Amo-te: eis o meu crime! Eis a minha grande culpa! Perdoe-me, já que tens um coração de santo! Sei que devia esconder o meu segredo e morrer com ele fechado dentro dos lábios!. . . Sei que nenhuma esperança tenho de ser algum dia correspondida no meu desgraçado amor, porque nada mereço de um ente tão puro como és!... Mas perdoe-me! sou uma fraca mulher que nunca a mais ninguém amou, e tu o homem que pela primeira vez me acordaste o coração, e me encheste a alma de sonhos de ternura! Perdoe-me, se te amo tanto, Ângelo.

Ele escutava-a, imóvel e pálido como um cadáver. Não se lhe percebia nas feições a luta homicida que se lhe travava na alma.

— Se me amas... disse, quase em segredo cumpre com o que te vou pedir. Volta para Deus, minha desgraçada irmã, todo o teu amor de mulher! . . . Ama-o! ama-o extremosamente, e no seu peito de pai encontrarás perene manancial de consolações! Sê honesta, e serás feliz! . . . Se tens medo de ti mesma e dos que te cercam, recolhe-te a um asilo religioso e faze-te monja! E principalmente nunca mais tornes aqui, nunca mais me procures ver, se queres possuir o meu amor de irmão e o meu reconhecimento de sacerdote. Vai, e não tornes nunca mais. Adeus.

Dito isto, voltou-lhe as costas e afastou-se vagarosamente, como tinha vindo.

— Ângelo! exclamou ela com a voz suplicante.

Ele virou-se, pôs o dedo nos lábios, impondo silencio, e saiu.

Alzira, ainda de joelhos, conteve-se um instante; depois ergueu-se e precipitou-se de carreira para alcançá-lo.

Mas a veneranda figura de Ozéas cortou-lhe a passagem, surgindo-lhe de improviso pela frente.

A formosa cortesã estacou defronte daquelas barbas brancas, abaixando a cabeça e cravando os olhos no chão.

Ozéas, sem dizer palavra, alongou o braço, apontando-lhe a saída, e quedou-se imóvel nessa postura, até que ela desapareceu, lenta e silenciosamente.

Por esse tempo Ângelo ganhava o seu quarto e, caindo de joelhos aos pés da Virgem, agradecia-lhe a vitória que ele alcançara sobre os seus próprios sentidos, postos naquele dia em tamanha provação.

— Ó mãe de bondade! dizia ele com as mãos cruzadas no peito; fazei com que ela nunca mais volte a ter comigo, que nunca mais soluce sobre os meus joelhos!... Se soubesses, mãe querida, como lutei para não tomá-la nos braços e estancar-lhe com a minha boca os seus dolorosos soluços de amor!... Se soubesses como o meu coração chorava enquanto meus lábios a repeliam!... Oh, por piedade! que ela nunca mais, nunca mais me volte a ver!

E, deixando cair o rosto sabre os pés da Virgem, pôs-se a rezar com todo o fervor e reconhecimento da sua alma dolorida.

Alzira, entretanto, ao sair da capela, metera-se no carro que a esperava lá fora, e atirara-se para o fundo das almofadas, a soluçar aflita. O carro tinha de seguir para Raismes; ela mandou tocar para Paris.

Ia com o coração despedaçado. Já lhe não restava a menor esperança!. . . Ângelo a repudiava. . . Ângelo, o primeiro homem que ela amava, repelia-a, como quem repele um réptil venenoso!

Todos os sonhos daquele seu primeiro amor ruíram por terra, antes mesmo de bem vingados.

Oh! como nesse momento Alzira desejava ser pura! Como desejava ser casta!. . .

Doía-lhe fundo aquele tranqüilo desprezo com que o padre rejeitara os seus sinceros protestos de amor, acendendo-lhe, sem saber, o desejo da luta para conquistá-lo.

Se Ângelo a tivesse recebido com palavras duras, se a enxotasse da sua presença como o arcanjo do Paraíso enxotou a Eva pecadora, é possível que ela não levasse tão longe o empenho de ser amada por ele; mas só a idéia daquela frieza, daquela inalterável superioridade de ente puro e forte, que não teme solução de espécie alguma, só isso era o bastante para levá-la a não desistir da campanha e lutar até vencer ou cair morta.

— Sim! disse ela, cerrando os punhos, desesperada. Agora, dê por onde der, sofra quem sofrer, hei de vencê-lo, hei de possuí-lo, ou buscarei na. morte o completo esquecimento desta fatal paixão!