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A Mortalha de Alzira/II/XIV

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Ozéas muniu-se de uma lanterna furta-luz e fez-se acompanhar por Ângelo, que levava o alvião e a enxada.

Saíram.

A noite era bonita e frouxamente iluminada por um luar de abril. A aldeia dormia já, e apenas algumas árvores rumorejavam, sonhando talvez, ainda tontas da quente carícia do último sol que as sufocara com os seus beijos de fogo.

Cães ladravam, de pescoço estendido, provocando o céu. As estrelas bruxuleavam tristemente no azul da abóbada misteriosa. Não se ouvia o pio de uma ave noturna.

E os dois religiosos lá se iam pela estrada, silenciosamente, projetando longas sombras na areia dos caminhos.

Pareciam dois espectros filhos da mesma noite.

Andaram durante algumas horas. Atravessaram a aldeia, sem dizer palavra. E afinal chegaram a um cemitério, que já não pertencia a Monteli e sim a Blancs-Manteaux.

— É aqui, meu filho. .. disse o velho, parando, extenuado de fadiga.

Ângelo nada respondeu. Encostou-se ao sinistro moro da casa dos mortos e respirou descansando.

— O que viemos aqui fazer. . . perguntou depois.

— Entremos... deliberou o outro, procurando o lado mais baixo do muro para galgá-lo.

E penetraram no cemitério.

Era um bem triste lugar aquele, com a sua dura simetria de túmulos enfileirados, branquejando ao luar. Canteiros de flores, mais fúnebres que as sepulturas, pareciam dizer na muda linguagem das perpétuas e das margaridas, todo o segredo das dores e das saudades, que ali gemeram junto aos que fugiram para debaixo da terra.

Mas agora, nem o eco de um soluço, nem a cintilação de uma lágrima!. . .

Mudo esquecimento e paz absoluta! A lágrima nasceu líquida para secar depressa, e o soluço não tem asas para acompanhar a memória dos que morrem!

Ozéas e Ângelo puseram-se a andar vagarosamente por entre os mausoléus, até chegarem ao campo raso dos mortos anônimos, para os quais só há uma cruz de ferro, com um simples número, fria como o coração do coveiro que os sepultou.

O cemitério era grande, mas de aspecto miserável. Um vasto campo, que se estendia, subindo em rampa, até parar de súbito num formidável despenhadeiro, onde nunca descia a luz do sol nem das estrelas.

O frade, ao chegar a certo sepulcro, coberto por uma lousa de mármore, deu luz à sua lanterna, e alumiou a lápide.

— Lê!.. . disse ao companheiro.

— Ah! exclamou Ângelo, retraindo-se.

Na laje funerária estava escrito "Alzira".

— Aqui jaz o que dela resta. . . segredou o velho.

E depois de um silencio, acrescentou:— Levanta a lousa. . .

— Profanar uma sepultura!. . . Eu?. . . protestou Ângelo, recuando. Não! Nunca!

— Assim é preciso! Obedece!

— Meu pai! . . .

— Obedece!

O presbítero hesitou ainda.

— Obedece, ou eu te amaldiçoarei para sempre! insistiu Ozéas.

Ângelo abaixou a cabeça e começou a levantar com o alvião a pedra sepulcral.

Conseguiu-o no fim de algum esforço.

— Agora, tornou o velho, quando viu a tumba descoberta, tira com a enxada o que está lá dentro.

O pároco voltou o rosto, exclamando:

— Oh, não! não! por amor de Deus!

Ozéas tomou a enxada, e retirou com ela uma caveira de dentro da sepultura.

Limpou-a ao hábito e levou-a até aos olhos do discípulo, dizendo:

— Vê! Vê bem!.. .

— Uma caveira!

— Sim! Uma caveira! É tudo que resta da beleza da tua Alzira!. . . a terra comeu-lhe os olhos, o nariz, a boca, as faces cor-de-rosa. . . Só ficaram os dentes, para se rirem de ti, louco!

Ângelo tomou a caveira entre as mãos, e ficou a contemplá-la, abstrato e mudo.

Ozéas chegou-se mais para ele e disse-lhe, avizinhando a boca do seu ouvido e abafando a voz como quem conspira:

— Vê bem!. . . É uma caveira vulgar. . . confunde-se com todas as outras!. . . Foram-se-lhe os encantos... foram-se os cabelos com os seus perfumes sensuais, os lábios com os seus sorrisos sedutores, os olhos com as suas chamas de amor!. . .

— Meu Deus! soluçou Ângelo.

— Restam apenas ossos... insistiu Ozéas. É tudo que dela resta neste mundo!... O mais que suponhas que exista, o mais que vejas nos teus sonhos libertinos, é loucura! Compreende bem, Ângelo! — Loucura!

— Meu Deus! exclamou o moço, deixando cair a caveira dentro do túmulo, e sentindo fugir-lhe a luz dos Olhos. Meu Deus, valei-me.

E baqueou no chão, abraçando-se à lápide.

Ozéas precipitou-se sobre ele, para socorrê-lo.

— Ângelo! chamou. Animo! animo, meu filho!

O pároco não deu acordo de si.

E o pobre velho apalpou-lhe o rosto e o coração.

— Perdeu os sentidos! disse aflito. Valha-me Deus! Valha-me Deus! Como lhe hei de valer? Se eu tivesse ao menos um pouco de água. A sua fronte escalda de febre!

E correu os olhos em torno, desesperado por ver somente a morte em volta do seu desespero.

— Ah! exclamou com uma idéia. Na capela! Talvez encontre o guarda! . . .

E procurando estugar os seus cansados passos de ancião, afastou-se deixando Ângelo abraçado à lousa de Alzira.

Ângelo ergueu a cabeça ao fim de algum tempo e contraiu-se todo, ajoelhando-se na terra.

Todo ele tremia.

Aos seus olhos desvairados, um terrível espetáculo se patenteada naquele instante.

Alzira surgia da cova, lentamente. Vinha toda de branco, no seu longo roupão funerário, em que ele a vira estendida no seu leito de morta, quando, louco de amor, a estreitara nos braços. Tinha os cabelos soltos sobre as espáduas, os olhos repreensivos e tristes, a boca entreaberta por um sorriso amargo, mostrando a embaciada pérola dos dentes.

— Ah! gritou o pároco, fitando-a.

E um singular diálogo travou-se entre os dois:

— Para que vieste profanar esta sepultura?... perguntou o branco espectro de Alzira.

Ângelo respondeu, sempre de joelhos e sem despregar o solhos dela:

— Para me convencer de que não és mais do que vil despojo! Para me convencer de que és pó e lodo! . . .

— E que lucraste com isso?. . .

— A razão, porque tu me enlouqueces. . . Tu és a minha loucura, sedutor demônio!

— Loucura! E conheces, por acaso, alguma cousa no mundo que não seja delírio e loucura?. . . O que é a tua virtude senão loucura?... o que é a tua ciência?... o que é a tua religião?... Tudo isso é insânia!... Tudo isso é a febre dos doidos!... é o desvairar dos loucos!.. .

Ângelo arrastou-se para ela, exclamando suplicante:

— Então não me deixes viver outra vida senão esta em que eu te tenho ao meu lado, ao alcance dos meus lábios!. . . Leva-me, como nas outras noites, para os teus palácios encantados, para as tuas grutas misteriosas, leva-me para onde quiseres. Eu serei o teu pajem! o teu amante! o teu donzel!

— É tarde! replicou Alzira, desviando-se dele, sem fugir de onde estava!

— Não! insistiu o pároco! não é tarde! Venha a minha espada de cavalheiro! Venha o meu fogoso ginete de longas crinas flutuantes! Arranca-me desta abominável mortalha preta, em que me envolveram desde o berço! Arrancam-me desta vida estúpida, e dá-me a outra ideal e sonhadora! Vamos! quero ser de novo um aventureiro, quero as minhas paixões, quero o meu punhal, quero a formosa mulher que palpitava de amor nos meus braços! Vamos! Vamos, minha Alzira, meu doce enlevo, poesia e sonho de minha vida, encanto da minha alma! Vamos! atende-me!

— É tarde!

— Ah! gemeu o mísero, deixando cair a cabeça entre as mãos, a soluçar.

— Ouve, desgraçado! tornou a sombra de Alzira, com uma voz triste e plangente. O amor que te votei era tão grande, que ninguém jamais amou tanto sobre a terra! . . . tão grande, que eu consegui, das invioláveis profundezas deste mundo dos mortos, criar um novo modo de viver contigo! Dei-te a vida ideal do sonho, onde não terias nunca as tristes misérias dessa outra vida em que vegetas!. . . Mas tu, insensato! acabas de destruir o que eu com tamanho amor criei para a tua felicidade!. . . Que lucraste em desfazer a nossa vida fantástica?. . . Que vantagens descobriste nessa miserável existência que te resta agora, tão carregada de tédios e mesquinhas necessidades?... Onde melhor poderíamos gozar a suprema ventura de nos amarmos, de que em um mundo ideal inventado pelo nosso próprio amor? . . .

— Sim! sim! exclamou Ângelo. Eu quero viver eternamente contigo!. . . Eu quero continuar a ser uma sombra! Eu quero sonhar!

— É tarde! repetiu o espectro. Mira-te na tua sombra! . . .

E o seu rosto começou a fazer-se pálido, e mais pálido, até tornar-se cor de osso, e os seus olhos foram-se esfumando, a cobrirem-se de sombra, até que nada mais eram do que dois negros buracos apagados, e seu nariz desapareceu, e os seus cabelos abandonaram o crânio amarelento e nu, e os seus lábios sumiram-se, deixando a descoberto os dentes já sem brilho.

E a caveira ressurgiu afinal, sorrindo para Ângelo, pavorosamente.

E por debaixo do alvo roupão mortuário, foi, pouco a pouco, fugindo a carne que o enchia. Desfizeram-se as voluptuosas curvas dos quadris e do colo. A túnica engelhou bamba como um sudário sobre um esqueleto.

E Ângelo ouviu um sinistro cascalhar de ossos, e, soltando um grito, viu cair e sumir-se o desfeito espectro na aberta e tenebrosa boca do sepulcro.

Debruçou-se sobre a cova, olhando lá para dentro.

Nada mais viu do que um punhado de lodo.

Ozéas acudira de carreira, e lançou-se para ele com os braços abertos.

— Que tens, meu filho? Que tens. . . Fala! exclamou, erguendo-o.

Ângelo pôs-se de pé, passou a mão pela fronte, e disse, amargamente:

— Acabou-se tudo. . . Nunca mais, nunca mais a verei!...

— Por Deus que nunca mais! confirmou o velho. Os céus ouviram minhas súplicas e acabam de restituir-te à razão!. . .

O pároco olhou em torno de si, como um alucinado que em verdade recuperasse naquele instante o entendimento.

— Ah!... disse depois. Eu estava louco!... Sim... agora compreendo... Era tudo desvario... Era tudo ilusão!. . .

E calou-se durante algum tempo.

— Sonhos!... sonhos!... prosseguiu quase em segredo, meneando a cabeça desconsoladamente. Sim eu existo…eu sou o seminarista Ângelo…o pupilo de frei Ozéas. . . a criança encontrada à porta do convento de São Francisco de Paulo... aquele. amor, toda aquela felicidade, eram sonho, eram loucura! . . .

E apontando para dentro da sepultura:

— Isto aqui... é a realidade... isto aqui é a verdadeira vida!. . .

— Sim! confirmou o frade.

Ângelo tomou-lhe as mãos, perguntando-lhe ansiosamente:

— Então, nunca mais a verei?.. . nunca mais a estreitarei nos meus braços, peito a peito, lábio a lábio?

— Não!

— Então, nesta vida real, nunca mais terei um raio de amor, que aqueça minha alma?. . .

— Tens o amor de Deus!

— Deus?... E onde está ele, que nunca o vi, apesar de lhe ter dedicado a vida inteira?. . .

Ozéas ergueu o braço, apontando para o céu.

— Lá? perguntou Ângelo, como uma criança, apontando também. Mas lá é tão longe, tão longe. . . que minha voz, nem o meu entendimento alcançam!

— Mas alcança tua alma!...

— Não! minha alma é irmã gêmea do meu corpo, e ambos são filhos da terra! Sou um homem!

Ozéas estremeceu ouvindo estas palavras, e bradou com energia:

— Não és um homem, és um padre!

Ângelo fitou-o, aproximando o seu rosto do dele.

— E quem me tirou o direito de ser homem?. . . interrogou. Quem me obrigou a ser padre?. . . Qual bárbara violência foi essa de me trocarem um direito por uma responsabilidade?. . . Quem foi que cometeu este crime?!

E, segurando violentamente o braço de Ozéas, bramiu com os lábios trêmulos e os olhos ferrados sobre ele.

— Ah! ah! foste tu, bem sei!. . . Encontraste-me pequenino, desamparado, sem ter nada no mundo, nem mãe ao menos!. . . e carregaste-me para a tua sombria furna, tal a fera carrega com a mesquinha presa... Encerraste-me naquele tenebroso convento, e aí me deformaste a alma, como um saltimbanco ao corpo do enjeitado que lhe cai nas garras!

E, cruzando os braços, interrogou com voz terrível, perfilado defronte de Ozéas:

— E quem te deu o direito de deformar minha alma?! Quem te deu o direito de fazer de mim um padre?! Quem?! Responde!

— As minhas sagradas convicções, as minhas crenças! . . . respondeu o egresso.

Ângelo sorriu ironicamente.

— Crenças! . . . convicções! . . . disse. E tudo isso de que me serve agora?!. . . Eu quero viver! eu quero o quinhão de vida a que tenho direito! Restituime a minha mocidade, o calor do meu sangue, o meu talento! Entrega-me o que me roubaste, ladrão!

Ozéas deixou-se cair de joelhos e abriu os braços, volvendo para o céu os olhos lacrimosos.

— Ó meu Deus! suplicou. Ó meu Deus! piedade para ele! Socorrei-o! Iluminai-o com a vossa divina graça! . . .

— É tarde!.. . rouquejou Ângelo. A sombra de Alzira bem o disse!. . . É tarde, roubador de crianças, salteador de almas! Já nada tenho a perder, porque me roubaste afinal a última ilusão! Nada mais me resta a fazer neste mundo de nojentas misérias! Sê maldito! Adeus!

E lançou-se de carreira para o abismo onde terminava o cemitério.

— Meu filho! meu filho! atende-me, por amor de Deus!

— Não sou teu filho, não sou nada, sou um padre! respondia Ângelo, debatendo-se para arrancar-se dos braços dele. Deixei de ser um vivo entre os mortos, sou um morto entre os vivos!

— Que vais fazer, Ângelo!

— Completar naquele abismo a tua obra, bandido!

—: Não! gritou Ozéas, fazendo um supremo esforço para desviar o filho do precipício. Não te matarás!

E engalfinhados numa tremenda luta, rolaram até à sepultura de Alzira.

— Não hás de morrer!

— Pois morrerás tu! exclamou o pároco, ofegante, pondo-lhe o joelho sobre o peito.

E arrancou uma cruz da terra.

— Vês?. . . disse, bramindo-a com o braço erguido. É com a própria arma da tua religião que te vou ferir!

E cravou-lha na garganta.

— Ah! gemeu Ozéas. Perdoai-lhe, Senhor!

E vendo que Ângelo galgava a rampa do precipício,

tentou ainda arrastar-se para lá, inutilmente. Gorgolhava-lhe forte o sangue da ferida.

— Ângelo! meu filho! Atende! vagiu agonizando. Não procures a morte!

— Não é a morte, é o sono eterno! respondeu o pároco. Eu quero sonhar!. . .

E de um salto precipitou-se no abismo.