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A Mortalha de Alzira/II/XIII

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Passado o abalo da primeira impressão, um constrangido silêncio fez-se entre Ângelo e Ozéas.

O presbítero tinha os olhos baixos, como um criminoso, e o outro acompanhava-lhe os menores movimentos, tremulando a cabeça.

— Sim, meu filho. . . disse o velho afinal, venho em teu socorro!... Dize-me como estás e dize-me o que sentes. . .

Ângelo não ergueu os olhos.

— Eu?... Nada!... tartamudeou. Creio que estou bom. . .

— E eu tenho a certeza do contrário, meu pobre Ângelo . . .

E Ozéas acrescentou a um gesto negativo do discípulo:

— Ah! Não tentes enganar-me!... Tens, seja qual for, uma preocupação bem grave, que inutilmente procuras esconder aos meus olhos! . . . Há alguns instantes que te observo, que acompanho todos os teus movimentos, cheguei mesmo a ouvir muitas palavras do teu monólogo de louco! Ah, sim! tens uma dor secreta, e eu hei de arrancar-te e destruí-la, custe o que custar!... Vamos! É melhor que fales com franqueza!

— Nada! Não tenho nada!. . . insistiu o pároco, visivelmente perturbado.

— Negas?!... Desconheço-te, Ângelo!... Já não és o mesmo casto discípulo, que eu cerquei durante vinte anos com a dedicação dos meus desvelos e da minha fé!. . .

— Creia que se ilude, meu pai!. . .

— Tu é que me queres iludir, Ângelo. . . Ah! mas não o conseguirás! Não suponhas que vim aqui às apalpadelas. . . Tenho-te acompanhado de longe, desde que a enfermidade me obrigou a separar-me de ti. . .

E recuperando de súbito o seu antigo ar enérgico, exclamou:

— Exijo que me confesses abertamente a causa deste teu estado atual!

— Mas...

— Exijo!

— Mas que lhe hei de dizer?. . .

— Fala-me, por exemplo, das conseqüências daquele estranho sobressalto, que te aconteceu quando celebravas a tua primeira missa. . . Ainda até hoje não me deste conta disso!. . .

Ângelo estremeceu, balbuciando alguns sons ininteligíveis .

E Ozéas acrescentou:

— Sim, nunca me confessaste que ele foi provocado por uma mulher que se achava na igreja. . .

O pároco estremeceu ainda.

— E por que tremes agora?.. . bradou o velho. Por que abaixas os olhos?... Por que desse modo empalideces?. . . Por que as lágrimas estão a correr-te pelas faces?. . . Ah! eram bem fundados os meus receios de então!... são bem certas as minhas desconfianças de agora!.. .

— Desconfianças?... De que?...

— De que Alzira te preocupa ainda!.

— Alzira já não existe. ..

— Sim, já não existe para o mundo... Quem sabe, porém, se ela não continuará a existir para a tua imaginação enferma e desvairada?...

O pobre maço tomou-lhe as mãos.

— Por que diz isso, meu pai?. .

— Porque vejo e compreendo que uma idéia fixa te rói o cérebro e devora-te a razão! Quero saber o que é! Fala!

Houve uma pausa.

Ozéas prosseguiu, mudando de tom:

— É a primeira vez que bato ao teu coração, e ele se não abre logo de par em par!. . . Compreendo: já te não possuo. . . já não és o mesmo que foste para mim... já não és o meu filho submisso e casto!... Perdi tudo! Paciência! Nada mais me resta a fazer aqui... Adeus.

Ângelo prendeu-o nos braços.

— Perdoe! perdoe, meu pai!

— Então fala!

— Ah! se soubesses quanto eu sofro!.

— E não obstante ainda há pouco sustentavas o contrário. . . Bem vês que tenho razão!. . .

— Sim, mas, por amor de Deus, não exija que eu fale!...

— Ao contrário, quero que me abras o teu coração com toda a confiança, quero que mo despejes em confissão, como o fazias dantes!

— Mas é tão estranho o que se passa comigo!. . .

— Conta-me tudo!

— Sou um imperdoável pecador!

— Maior serias se não me falasses com sinceridade! . . .

— Sou um desgraçado!. . .

— Não tanto, como se eu não estivesse agora a teu lado, disposto a salvar-te!. . .

— Mas o meu crime é traiçoeiro. . . só se apodera de mim durante a inconsciência do sonho. ..

Ozéas, fixou-o, e, concentrando a atenção, disse depois surdamente:

— Continua...

— Vou dizer-lhe tudo com franqueza!...

E Ângelo olhou para os lados, e acrescentou, abafando a voz:

— Vou contar-lhe tudo. . .

— Fala, meu filho. ..

— A perturbação que eu senti no dia em que me ordenei, era com efeito causada por uma mulher. . .

— Alzira...

— Sim. . . confirmou o pároco, meneando lentamente a cabeça. Sim. . . Alzira. . . Soube logo que esse era o seu nome, em volta de mim na igreja todos o repetiam quando ela me fitava da tribuna. . .

— Eu notei. E depois!...

— Só a tornei a ver naquela noite em que deixei Paris. . . E no dia em que ela veio procurar-me aqui.

— Sei. Adiante.

— Sua imagem, porém, nunca mais me saiu da memória, até que, uma noite, sonhei que vinham buscar-me para socorrer um moribundo. ..

— Não foi sonho, foi a realidade. . .

— A realidade?!... exclamou Ângelo, com os olhos pasmados. Então é real que a estreitei nos meus braços?. . . Então é real que a ressuscitei com os meus beijos?! . . .

— Isso é que já foi sonho, ou melhor, delírio!

— Meu Deus! onde começa o sonho?... onde termina a realidade?. . . Alzira teria com efeito vindo buscar-me no dia seguinte ao seu enterro?.. . (Ozéas redobrou de atenção). Eu ter-me-ia transformado em um cavalheiro e ela em formosa dama? Teríamos saído por aí afora, montados em fogosos cavalos, que nos levaram a mundos desconhecidos para mim?. . . Teria eu percorrido com ela todas essas paragens maravilhosas?. . . Teria eu provado de todos os venenos do prazer e bebido de todos os vinhos do amor?. . .

Ozéas apoderou-se do braço de Ângelo.

— E ela continua a voltar?. . . exclamou, sobressaltado.

— Sim, sim, volta sempre! Ainda não faltou uma só noite até hoje! Mal adormeço, ela vem logo e carrega comigo! É ela a pessoa com quem eu mais convivo neste mundo.

— Neste, não! no mundo da tua loucura!

— E por que acreditar que este é o verdadeiro e o outro não?!... Ambos me ocupam longas horas o espírito, ambos palpitam de sentimento e de verdade, ambos tem as suas consolações e os seus desgostos!

— Mas, meu filho, não te lembras que cresceste a meu lado, que viveste sempre comigo?. . .

— Também no outro mundo tenho reminiscências de uma vida inteira. Lembro-me do colégio, das férias passadas com parentes, dos afagos de meus pais... sim! porque lá não sou um miserável enjeitado.. . tenho família e tenho amigos... E' uma vida completa e perfeita! Esta outra existência obscura, de pároco de aldeia, apresenta-se-me então ao espírito como um sonho extravagante e ridículo!. . .

— É preciso que Alzira nunca mais te apareça! bradou o velho.

— Ah! disse Ângelo. Creio que só com a morte deixarei de vê-la!. . . E, ainda assim, quem sabe?... Quem sabe se Alzira não virá ter comigo, quando esse outro sono me adormecer para sempre?... E quem poderá afirmar que eu vivo?. . . quem me dirá que não sou, como ela, um pobre espírito errante, um espectro, uma sombra, condenado a nunca repousar?. . .

— Cala-te, louco! Não a verás hoje!

— Ela virá logo que eu adormeça!. . .

— Hoje não dormirás!

— Ela me espera!. ..

— Desgraçado! Já não és senhor de tua vontade?.. . Acaso negociaste tua alma?...

— Não, meu pai, minha vontade é a sua... minha alma pertence a quem ma confiou, pertence a Deus!

— Pois então, obedece-me! Põe o teu capote e o teu chapéu, toma um alvião e uma enxada, e acompanha-me!

— Aonde vamos?

— Depois o saberás. Ajoelha-te e pede ao Criador que te proteja!

O discípulo obedeceu.

E o velho acrescentou, erguendo os braços e os olhos para o céu:

— Ó meu Deus! Ó senhor misericordioso! não nos desampareis nesta terrível excursão que vamos empreender! . . .