A Normalista/I

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João Maciel da Mata Gadelha, conhecido em Fortaleza por João da Mata, habitava, há anos, no Trilho, uma casinhola de porta e janela, cor de açafrão, com a frente encardida pela fuligem das locomotivas que diariamente cruzavam defronte, e de onde se avistava a Estação da linha férrea de Baturité. Era amanuense, amigado, e gostava de jogar víspora em família aos domingos.

Nessa noite estavam reunidas as pessoas do costume. Ao centro da sala, em torno de uma mesa coberta com um pano xadrez, à luz parca de um candeeiro de louça esfumado, em forma de abajur, corriam os olhos sobre as velhas coleções desbotadas, enquanto uma voz fina de mulher flauteava arrastando as sílabas numa cadência morosa: — Vin...te e quatro! Sessen...ta e nove!... Cinqüen...ta e seis!...

Havia um silêncio morno e concentrado em que destacava o rolar abafado das pedras no saquinho da baeta verde.

A sala era estreita, sem teto, chão de tijolo, com duas portas para o interior da casa, paredes escorridas pedindo uma caiação geral. À direita, defronte da janela, dormia um velho piano de aspecto pobre, encimado por um espelho não menos gasto. O resto da mobília compunha-se de algumas cadeiras, um sofá entre as duas portas do fundo, a mesa do centro, e uma espécie de console, colocada à esquerda, onde pousavam dois jarros com flores artificiais.

De onde em onde zunia o falsete do amanuense:

Quadra! Ou caçoava: — Os anos de Cristo!... Os óculos do Padre Eterno!

Risadinhas explodiam a espaços, gostosas, indiscretas — uma pilhéria ricocheteava nos quatro ângulos da mesa.

— É boa! É boa! fazia João da Mata erguendo a cabeça, mostrando a dentuça.

Depois voltava o silêncio, e a voz fina de mulher continuava a cantar os números solene­mente.

— Víspora! saltou de repente um rapazola de óculos, bigodinho fino, flor na botoeira do fraque de casimira clara.

Toda gente o conhecia — era o Zuza, quin­tanista de direito, filho do coronel Souza Nunes.

— Podem conferir, disse erguendo-se, risonho — segunda linha.

E estendeu o braço, passando o cartão para o amanuense.

— Não desmarquem, não desmarquem, recomendou este espalmando a mão. Pode ter sido engano. Errare humanum est...

Houve um ligeiro sussurro de vozes e de caroços rolando sobre a mesa com um surdo ruído de contas desfiadas. Todos desfizeram as marcações.

Numa das extremidades sentava-se João da Mata, de paletó de fazenda parda sobre a camisa de meia, costas para a rua.

À direita mexia-se uma senhora gorducha, de seus trinta anos, metida num casaco frouxo de rendas, cabelo penteado em cocó, estampa insi­nuante, bons dentes: era a mulher do amanuense, que passava por sua legítima esposa não obstante as insinuações malévolas da alcovitice vilã que entrevira escândalos na vida privada de D. Te­rezinha. Contudo, era tida em conta de excelente dona-de-casa, honesta, dizendo-se relacionada com as principais famílias de Fortaleza.

Ninguém ousava mesmo dirigir-lhe um gracejo de mau gosto, uma pilhéria calculada. Inventava-se — calúnias do populacho — que se cor­res­pondia ocultamente com o presidente da província. Ela, porém, gabava, batendo no peito com orgulho, que tinha uma vida limpa, graças a Deus; que isso de patifarias não lhe entrava em casa, não, mas era o mesmo. Estava ali o Janjão que não a deixava mentir.

Ao pé de D. Terezinha aprumava-se Maria do Carmo, afilhada de João, uma rapariga muito nova, com um belo arzinho de noviça, morena-clara, olhos cor de azeitonas, carnes rijas, e cuja atenção volvia-se insistentemente para o Zuza.

As outras pessoas eram também da intimidade: o Loureiro, guarda-livros da firma Carvalho & Cia., o Dr. Mendes, juiz municipal, mais a senhora, a Lídia Campelo, filha da viúva Campelo, e o estudante. Às vezes ia mais gente e o víspora prolongava-se até meia-noite.

João da Mata era um sujeito esgrouvinhado, esguio e alto, carão magro de tísico, com uma cor hepática denunciando vícios de sangue, pouco cabelo, óculos escuros através dos quais boliam dois olhos miúdos e vesgos. Usava pêra e bigode ralo caindo sobre os beiços, tesos como fios de arame; a testa ampla confundia-se com a meia calva reluzente. Falava depressa, com um sotaque abe­mo­lado, gesticulando bruscamente, e, quando ria, punha em evidência a medonha dentuça postiça. Noutros tempos fora mestre-escola no sertão da província, de onde se mudara para a capital por conveniências particulares. Era então simplesmente o professor Gadelha, o terror dos estudantes de gramática. O sertão foi-lhe aborrecendo; estava cansado de ensinar a meninos, era preciso fazer pela vida noutro meio mais vasto onde as suas qualidades, boas ou más, fossem aquilatadas com justiça. Estava perdendo-se, inutilizando-se e fossilizando-se, por assim dizer, entre um vigário seboso e pernóstico e um delegado de polícia ignorante: — “Não era um águia, um Abílio Borges, um Macedo... mas reconhecia que também não era burro. Até podia fazer figura em Fortaleza.”

E abalou com tanta felicidade que não tardou ser nomeado comissário de socorros ao tempo da grande seca de 77, dois anos depois de sua chegada à capital. Desde logo tornou-se conhecido, suas façanhas corriam impressas nos pasquins domin­gueiros. De uma feita escapou milagrosamente de ser preso por crime de defloramento numa menor, criada do Dr. Moraes e Silva; de outra feita apanhou de rebenque na cara por haver caluniado um capitão de infantaria propalando uma infâmia. Toda a gente o conhecia muitíssimo bem, por sinal tinha uma cicatriz oblonga e funda na têmpora esquerda, e não largava o mau vezo de roer o canto das unhas.

Depois da seca entregou-se de corpo e alma à polícia, à intriguinha partidária, à rabulice, à cabala eleitoral, à chicana. Toda a vez que se anunciava um pleito, punha em jogo as mil e uma sutilezas que só o seu espírito sagaz podia conceber. Ninguém como ele sabia copiar uma chapa em letra firme e aprumada. Aquilo a pena cantava no papel que nem o lápis de um taquígrafo. E que letra, que esplêndido talhe! Dir-se-ia traçada a nanquim, delicadamente, com a paciência de um chinês. Ninguém como ele sabia tirar proveito duma vitória alcançada pelo partido. Discutia, falava alto, berrava... impunha-se!

— Extraordinário homem! diziam os chefes políticos; destes é que nós precisamos, destes é que precisa o partido.

Mas João sabia vender caro seu peixe. Fazia política por uma espécie de ambição egoísta, visando sempre tirar resultados positivos de suas artimanhas, embora com prejuízo de alguém.

Dinheiro é o que ele queria, não lhe fossem falar em política sem interesse pessoal.

“— Histórias, homem, histórias! Isso de patrio­tismo é uma patranha, um rótulo falso! O que se quer é dinheiro, o santo dinheirinho, a mamata. Qual pátria, qual nada! Patacoadas!” Ele, João, trabalhava, lá isso era inegável: dava o seu voto, cabalava, servia de testa-de-ferro, mas... tivessem paciência — era mão pra lá mão para cá... Porque — argumentava — a política é uma especulação torpe como outra qualquer, como a de comprar e vender couros de bode na praia, a mesmíssima coisa; pois não é? Pra tudo é preciso jeito, muito jeitinho...

Agora, porém, andava meio retraído, dava o seu voto, calado, e — passe muito bem! — A política só lhe trouxera desenganos e inimigos. Não estava mais para servir de degrau a figurão algum. Que se fomentassem! É boa! Trabalhara que nem besta de carga para no fim de contas ganhar o quê? Um pingue lugar de amanuense? Um miserável emprego que se anda oferecendo aí a qualquer vagabundo? Decididamente não o pilhavam mais para a canga... Estava experimentado, meus senhores, experimentadíssimo.

E agora, com efeito, ninguém o via mais nas redações, entre os jornalistas da terra, a esbravejar contra os adversários, nem nos cafés, quanto mais em dia de eleição, sentado, como dantes, na sua cadeira de mesário, carrancudo, circunspecto, a contar votos, a lavrar atas. Estava outro homem, completamente outro: amigo de casa, vivendo para si, com poucas amizades, metódico, econômico, às voltas com a sua atrabílis crônica, sem ambições, sem dívidas.

A sua grande paixão, o seu fraco era a Maria do Carmo, a menina de seus olhos, a afilhadinha; queria um bem extraordinário à rapariga e tratava-a com um carinho lânguido de amante apaixonado no supremo grau do amor incondicional. Criara-a desde pequena, era como se fosse pai, tinha direitos sobre ela; podia mesmo beijá-la — sem malícia, já se deixa ver — nas faces, na testa, nos braços e até, por que não? na boca.

Às vezes, quando Maria voltava da Escola Normal, ele mandava-a sentar-se na rede, a seu lado. A pequena guardava os livros e lá ia, sem fazer beiço, deitar-se com o padrinho, amarfanhando o rico vestidinho de cretone passado a ferro pela manhã. Obedecia-lhe cegamente, nunca lhe dissera uma palavra áspera; ao contrário, — eram carinhos, cafunés no alto da cabeça, cócegas, histórias de alma do outro mundo e gracinhas para ele rir... Tinha sempre um sorriso fresco e luminoso para “o seu padrinho”. E João da Mata sentia um bem-estar incomparável, uma delícia, um gozo inefável ante aquele esplêndido tipo de cearense morena, olhos cor de azeitona onde boia­va uma névoa de ingenuidade, cabelos compridos descendo até a altura dos quadris, desmanchando-se em ondas de seda finíssima... Quantas vezes, quantas! punha-se, por trás dos grandes óculos escuros, a olhá-la como um pateta, sem que ela sequer percebesse a fixidez de seu olhar cheio de desejo!

Maria estava-se pondo moça, entrava nos seus quinze anos, e o padrinho a adorá-la cada vez mais!

João começou a enquizilar-se com as freqüentes visitas do Zuza. Por fim notara certas tendências do estudante para a pequena, certo quebrar de olhos, uma como insistência atrevida em dizer as coisas por metáforas... Isso o incomodava, punha-lhe pruridos na calva, enraivecia-o. Quanto ao Loureiro não havia risco, o guarda-livros estava para casar com a Campelinho, era um rapaz sério. Mas o senhor Zuza?... Ali andava namoro, apostava. Tinha idéia de ter lido na Província uns versos dedicados a M. C. e assinados por Z.*** Naquela noite, sobretudo, pareceu-lhe ver o mariola passar uma carta, um papel a Maria. Boas! Era preciso pôr um termo ao descaramento, sob pena de ele, João, desmoralizar-se no conceito da gente séria. Lá por ser filho do Sr. coronel não fosse pensar que faria o que entendesse. Alto lá! Tudo, menos patifaria dentro de sua casa.

E, enquanto ia enchendo os cartões automaticamente sem olhar para os números, pensava em Maria do Carmo, mordendo com desespero as guias do bigodaço.

Quando o Zuza, todo gabola e amaneirado, vermelho do calor da luz, gritou — víspora! numa voz triunfante e clara, João esteve quase atirando-lhe com o cartão. Vieram-lhe desejos imoderados de estourar, de dar escândalo, trêmulo, nervoso, a semicalva reluzente de suor.

— Sim senhor, disse secamente devolvendo o cartão. Vamos à última...

E o jogo continuou. Fez-se novo silêncio. Agora era o Zuza, o futuro bacharel que cantava pausadamente, tirando as pedras com a ponta dos dedos e colocando-as devagar, cauteloso.

Davam nove horas na Sé quando todos se ergueram. A Campelinho suplicou mais uma partida, o Loureiro também foi de opinião que se jogasse ainda uma vez, todos, enfim, desejavam con- tinuar, mas João da Mata opôs-se tenazmente: que era tarde, tinha muito que escrever.

— Uma só, meu padrinho, rogou Maria do Carmo tomando-lhe as duas mãos e fitando-o com os seus magníficos olhos cor de azeitona.

O amanuense estremeceu. Agora era a própria afilhada, a Sra. D. Maria do Carmo que lhe pedia com um sorriso extraordinário que jogassem! E na sua imaginação acentuava-se a suspeita do namoro com o estudante.

Curvou-se e proferiu um palavrão ao ouvido da rapariga. Estava desesperado, não se continha.

— Não senhora, por hoje basta de víspora!

Todos admiraram a súbita mudança na sua fisionomia a princípio tão alegre.

A mulher do Dr. Mendes, muito afetada, aco­tovelou o marido e despediu-se “até a primeira ­vista”.

Zuza foi o último a retirar-se, fitando em Maria um olhar embebido de ternura.

A noite estava muito escura e calma. As estrelas tinham um brilho particular, altas, minúsculas como cabeças de alfinetes em papel de seda escuro. Ouvia-se distintamente, como por um tubo acústico, a toada dos soldados rezando à Virgem da Conceição, no quartel de linha e o marulhar da praia, distante. A rua do Trilho, deserta, com a sua iluminação incompleta, naqueles confins da cidade, parecia um túnel subterrâneo. Fazia medo transitar ali a desoras.

Assim que se foram os habitués do víspora, João da Mata desabafou: — “Uma patifaria! O Sr. Zuza pretendia sem dúvida abusar da sua confian­ça, plantar a desordem no seio da família, mas estava muito enganado. Ali era casa de gente pobre e honesta. Estava muito enganadinho, seu pelintra!”

— Mas eu sei quem é a culpada, acrescentou furioso, a culpada é a Sra. D. Maria do Carmo, porque se atreve a olhar para ele!

Aquilo não podia continuar, o Sr. Zuza não lhe punha mais os pés em casa sob pretexto algum. Não se portava sério? Pois então — fora! pra rua!

Estavam fazendo de sua casa um alcouce! A Sra. D. Lídia vinha namorar o outro às suas barbas; já uma vez caíra-lhe porta dentro uma imundície de carta anônima denunciando certos ­abusos...

E colérico, soprando o bigode, sacudindo os braços, esmurrando a mesa, berrava, com os olhos na alcova onde sumira-se D. Terezinha.

Maria desaparecera pelo corredor e chorava debruçada sobre a mesa de jantar, onde ardia uma vela de carnaúba.

— Que sujeito! gania o amanuense. Pensa ele que não tem mais do que enfronhar-se num fato de casimira clara, com uma flor no peito, com modos de safardana, e zás! plantar-se na pequena, mas está muito enganado! Aqui estou eu (e batia com força no peito ossudo) para impedir escândalos em minha casa!

Debalde D. Terezinha aconselhava, aflita, que não desse escândalo, que fosse dormir — “As paredes têm ouvidos, dizia ela dentro da alcova. O moço era filho de gente graúda, e ele, Janjão, um simples empregado público. Tivesse modos. Se houvesse má intenção por parte do Zuza, ela, Teté, seria a primeira a não consentir que ele pisasse o chão de sua casa. Mas, não senhor, a gente deve pensar antes de fazer as coisas. Pra que todo aquele espalhafato, por que semelhante barulho?”

João da Mata, porém, estava fora de si, tinha a cabeça a arder como uma brasa. Seu temperamento excessivamente irritável expandia-se com desespero ao mesmo tempo que seu coração de homem gasto sentia pela primeira vez um quer que era, uma agonia, uma sufocação ante a possibilidade de um namoro entre o estudante e a afilhada. Não era precisamente receio de que o Zuza pudesse iludir a rapariga desonrando-a e atirando-a por aí ao desprezo; era como revolta do instinto, uma espécie de egoísmo animal que o torturava, acendendo-lhe todas as cóleras, dominando-o, como se Maria fosse propriedade sua, exclusivamente sua por direito inalienável. Via-a caída pelo acadêmico, toda voltada para ele, amando-o talvez, preferindo-o a todos os outros homens, entregando-se-lhe. E o que seria dele, João, depois? Nem mais uma beijoca na boquinha rubra e pequenina, nem mais um abraço ao voltar da escola, cansadinha, o rosto afogueado pelo calor; nem mais uns cafunés, nem um sorriso daqueles que ela sempre tinha para o padrinho... Isto é que o desesperava!

Desde a saída de Maria do colégio das Irmãs de Caridade tinha se operado uma mudança admirável nos hábitos de João da Mata. Ela já não era para ele como uma filha; estava quase moça, incomparavelmente mais bonita e fornida de carnes. Já não era, que esperança! aquela Maria do Carmo da Imaculada Conceição, toda santidade, magrinha, com uma cor esbranquiçada e mórbida de cera velha, o olhar macilento, a falar sempre no padre Reitor e na Superiora e na Irmã Filomena e noutras pieguices. Uma tontinha a Maria naquele tempo. Quando ia passar o domingo em casa, uma vez no mês, metia-se para os fundos do quintal ou pelas camarinhas, muito calada, muito sonsa, a ler a Imitação; não chegava à janela, não aparecia às visitas, doida por voltar ao colégio. Aquilo punha o padrinho de mau humor. Uma coisa assim fazia até vergonha a ele, que detestava tudo quanto cheirasse a sacristia. Porque João da Mata dizia-se pensador livre; não acreditava em santos, e maldizia os padres. Jesus, na sua opinião, era uma espécie de mito, uma como legenda mística sem utilidade prática. Isso de colégios internos à guisa de conventos não se acomodava com o seu temperamento. Também fora professor, olé! e sabia muito bem o que isso era — “um coito de patifarias”. Queria a educação como nos colégios da Europa, segundo vira em certo pedagogista, onde as meninas desenvolvem-se física e moralmente como a rapaziada de calças, com uma rapidez admirável, tornando-se por fim excelentes mães de família, perfeitas donas-de-casa, sem a intervenção inquisitorial da Irmã de Caridade. Não compreendia (tacanhez de espírito embora) como pudesse instruir-se na prática indispensável da vida social uma criatura educada a toques de sineta, no silêncio e na sensaboria de uma casa conventual, entre paredes sombrias, com quadros alegóricos das almas do purgatório e das penas do inferno; com o mais lamentável desprezo de todas as prescrições higiênicas, sem ar nem luz, rezando noite e dia — ora pro nobis, ora pro nobis... Era da opinião do José Pereira da Província: Irmãs de Caridade foram feitas para hospitais. O diabo é que no Ceará não havia colégios sérios. A instrução pública estava reduzida a meia dúzia de conventilhos: uma calamidade pior que a seca. O menino ou menina saía da escola sabendo menos que dantes e mais instruído em hábitos vergonhosos. As melhores famílias sacudiam as filhas na Imaculada Conceição como único recurso para não vê-las completamente ignorantes e pervertidas. Afinal, para não contrariar o Mendonça que queria a filha para santa, metera Maria do Carmo no “convento”.

D. Terezinha participava das mesmas idéias do Janjão: Uma menina inteligente como Maria devia educar-se no Rio de Janeiro ou num colégio particular, mas um colégio onde ela pudesse aprender o “traquejo social”. Pode ser que as Irmãs sejam umas mulheres virtuosíssimas e castas, mas filha sua não punha os pés em colégio de freiras...

João da Mata detestava a padraria. Dava-se apenas com um padre, o cônego Feitosa, porque, dizia ele, era um sacerdote sem hipocrisia, um padre como ele entendia que deviam ser todos os padres: asseado, inimigo da batina, com afilhadas em casa... E por que não? Os padres são fisicamente (e sublinhava a palavra), anato­mi­ca­mente, fisiologicamente homens como os outros: têm coração, órgãos sexuais, nervos como os outros homens. Portanto, assiste-lhes o mesmíssimo direito de procriação, direito natural­ e até consagrado pela Escritura. O contrário é con­trafazer a natureza humana que, afinal, não obedece a preceitos de castidade. Daí, concluía João, daí o desregramento das classes religiosas condenadas a eterno celi­bato. O próprio Cristo dissera numa parábola cheia de senso e de experiência: “Crescei e multipli­cai-vos.”

“Por amor de Deus” não lhe falassem em padres. A educação moderna, a educação livre, sem intervenção da batina — eis o que ele queria e apregoava alto e bom som.

Havia meses que Maria do Carmo cursava a Escola Normal. Sua vida traduzia-se em ler romances que pedia emprestados a Lídia, toda preocupada com bailes, passeios, modas e tutti quanti... Ia à Escola todos os dias vestidinha com simplicidade, muito limpa, mangas curtas evidenciando o meio-braço moreno e roliço, em cabelo, o guarda-sol de seda na mão, por ali afora — toque, toque, toque — até à praça do Patrocínio, como uma grande senhora independente.

Agora, sim, pensava o amanuense, Maria estava uma mocetona digna de figurar em qualquer salão aristocrático.

A fama da normalista encheu depressa toda a capital. Não se compreendia como uma simples retirante saída há pouco das Irmãs de Caridade fosse tão bem-feita de corpo, tão desenvolta e insinuante. As outras normalistas tinham-lhe inveja e faziam-lhe pirraças. Nas reuniões do Club Iracema era ela a preferida dos rapazes, todos a procuravam.

João da Mata inflava. Certo não a entregaria por preço algum a qualquer rapazola como o filho do coronel Souza Nunes.

Entretanto, o Zuza era um rapaz da moda. Montava a cavalo, fazia versos, assinava a Gazeta Jurídica, freqüentava o palácio do presidente...

João conhecera-o uma noite no baile do Dr. Castro. Havia meses que se achava em Fortaleza estudando o quinto ano de direito e gozando a sua fama de rapaz rico. Às seis horas da tarde já lá estava ele, no Trilho, em casa do amanuense, queixando-se da monotonia da vida cearense e gabando, com ares de fidalgo, a capital de Pernambuco. Ali, sim, a gente pode viver, pode gozar. Muito progresso, muito divertimento: corridas de cavalos, uma sociedade papa-fina muitíssimo bem-educada, magníficos arrabaldes, certo bom gosto nas toaletes, nos costumes, certas comodidades que ainda não havia no Ceará...

— Ao que parece o Sr. Zuza não gosta do Ceará... disse-lhe um dia D. Terezinha.

— Absolutamente não, minha senhora. Sou meio exigente em matéria de civilização; isto me parece ainda uma terra de bugres...

— De bugres?!

— ...Sim, uma terra em que só se fala nas secas e no preço da carne verde. V. Exª compreende, não pode corresponder à expectativa de um rapaz de certa ordem, por assim dizer educado na Veneza Americana...

— Deste modo o Sr. Zuza ofende os seus con­terrâneos, os seus parentes...

— Absolutamente não.

O que dizia é que o Recife está num plano muito superior a Fortaleza. Apenas estabelecia um paralelo.

João da Mata achava-o pedante, desequilibrado, tolo. — “Não, o Sr. Zuza não lhe punha mais os pés em casa por forma alguma!” bradava naquela noite.

Maria continuava a chorar lá dentro, na sala de jantar, inconsolável, triste, com um grande desgosto na alma. De repente ouviu a voz do padrinho que a chamava. Ergueu-se com um movimento brusco e rápido, o lenço nos olhos, soluçando devagar.

João quis saber onde estava “a carta que o Zuza lhe havia entregue”. Botasse-a pra ali, já!

Trêmula, abafando a cólera que lhe oprimia a respiração, Maria não podia falar.

— Vamos, vamos!

— Não tenho carta alguma, disse num acento doloroso.

João da Mata sentiu atear-se-lhe o fogo da concupiscência. Teve ímpetos de tomar entre as mãos a cabeça da afilhada e beijá-la, beijá-la sofregamente, com a fúria de um selvagem, no pescoço, na boca, nos olhos... ímpetos de beijá-la toda inteira, como um doido. Maria dominava-o, fazia-lhe perder a tramontana.

— Então aquele bandido não lhe entregou uma carta por debaixo da mesa, no víspora? Entregou, sim senhora, dê-ma!

— Não senhor, não me entregou coisa alguma, tornou a normalista, sem levantar a cabeça fungando.

Estavam em frente um do outro, ao pé da mesa. As portas da sala já se tinham fechado; ele com o paletó aberto mostrando a camisa de meia cor de carne, o olhar fixo em Maria; ela com o seu ves­tidinho claro de chita, cabelos penteados numa trança, acaçapada, submissa ante a cólera rude do padrinho.

— Pois bem, concluiu este moderando a voz. Tome sentido: vossemecê não me aparece mais àquele cabrocha, está ouvindo?

E depois duma pausa, com ternura:

— Vá dormir, ande...

Soprou o gás e foi deitar-se com a mulher, na alcova.

— Pois não achas, Teté, dizia ele em camisa de dormir, aconchegado à D. Terezinha, na larga cama de jacarandá: não achas que é um desaforo aquele patife vir à nossa casa para namorar?

— Não, que tolice! O Zuza até é um rapaz sério... Vem, coitado, porque nos estima...

— É boa! — fez João. Então vem porque nos estima, hein? Esta cá me fica, Sra. D. Teté, esta cá me fica!

— Homem, trate das suas hemorróidas que é melhor...

— Ora, sabe que mais? Você é outra!

E deram-se as costas fazendo ranger a cama.

Com pouco ambos roncavam no discreto silêncio da alcova.

Sobre a cômoda, ao pé do oratório, ardia uma lamparina de azeite.