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A Normalista/XII

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O Zuza abalara de feito numa sexta-feira, dias depois do casamento da Lídia. Por toda parte se comentava, com risinhos sublinhados, o escandaloso namoro com a normalista, e o pai, o coronel Souza Nunes, escrupuloso em tudo que lhe dizia respeito, exigiu do filho que embarcasse no primeiro vapor, sob penas severas.

— Mas, meu pai...

— Tenha santa paciência, vossemecê embarca ou diz por que não embarca. Fala-se em toda a cidade nos seus namoros com a rapariga e eu não quero, não consinto em semelhante escândalo. Sei muito bem o que isso é. Não pode ser boa mãe de família uma rapariga educada em companhia de um safardana reconhecido, como o tal Sr. João da Mata. Prepare as malas e deixe-se de histórias, que é perder tempo.

Nestas condições o estudante não teve jeito senão resignar-se ante a vontade imperiosa do pai e anunciar ao José Pereira o seu embarque daí a dois dias.

— De acordo, aprovou o redator da Província. Deves tratar quanto antes da tua formatura e então podes voltar ao Ceará e fazer um figurão na nossa magistratura, que já conta em seu seio bons talentos, rapazes da tua estatura, inteligentes e resolutos.

Sentia muito que o Zuza não se demorasse mais algum tempo, mas, enfim, como esperava em breve tornar a vê-lo formadinho, com o seu título de bacharel, “dando sorte” na capital cearense, que diabo! era preciso abafar a saudade e consolar-se.

O Zuza, porém, estava contrariado. Agora que as coisas corriam-lhe tão bem, que a rapariga entregava-se-lhe de corpo e alma, é que o obrigavam a embarcar da noite para o dia, sem ao menos ter tempo de despedir-se dela, de dar-lhe uma beijoca, um abraço sequer, às escondidas. É verdade que o seu amor não era lá para que se dissesse um amor extraordinário, uma dessas paixões incendiárias que decidem do futuro de um cristão, mas, tinha a sua simpatia por aqueles olhinhos ternos como os de uma santa, lá isso tinha... Tão boas as palestras ao meio-dia, na Escola Normal, enquanto as outras normalistas divertiam-se lá para dentro, à espera dos pro­fessores! Uma gentinha levada da breca, essas normalistas! Com que facilidade a Maria do Carmo, aliás, uma das mais comportadas, entregava-lhe a face para beijar e escrevia-lhe cartinhas perfumadas, cheias de juras e protestos de amor! Se fosse outro, até já podia ter feito uma asneira... Arrependia-se agora de não ter aproveitado os melhores momentos... Grandíssimo calouro! podia ter desfrutado a valer.

E concluiu, preparando-se para sair:

— Ora sabem que mais? Há males que vêm para bem. A cidade está cheia do meu nome e do nome da rapariga, o verdadeiro é ir-me embora mesmo, sem dar satisfação a ninguém. Meu pai é um homem de juízo. Eu podia muito bem engraçar-me deveras com a menina para casar e depois... sabe Deus as conseqüências. Já se foi o tempo de um homem sacrificar posição e futuro por uma mulher pobre. Concluo o meu curso e sigo para a Europa, é o verdadeiro, ora adeus!

Enfiou a manga do redingote, atabalhoado, e saiu a despedir-se dos amigos.

Toda a cidade soube logo da viagem intem­pestiva do estudante. A notícia propalou-se com a rapidez de fogo em palha, por todos os botequins, por todos os cafés e restaurantes, avolu­mando-se, como se se tratasse de um grande acontecimento.

Quem, o Zuza, o filho do coronel Souza Nunes? Então não se casava com a normalista?

— Por esta já esperava eu, diziam uns convictamente.

— E eu, repetiam outros.

— Pela cara se conhece quem tem lombrigas, seu Sussuarana, afirmava um sujeito reles na botica do Travassos. Aquele tipo sempre me pareceu uma bisca. Agora a pobre rapariga é quem fica por aí com cara de besta, sem achar quem lhe roa os ossos.

— Pode dizer, seu compadre. Esses fidalgos o que querem é isso mesmo — desfrutar e pôr-se ao fresco. Todo o nosso mal é recebermos em nossas casas qualquer sunga-neném que chegue a esta terra. Nós, os pais de família, é que somos os culpados.

— E o compadre João da Mata o que pretende fazer?

— Eu sei lá, homem de Deus, aquele é outro...

A viagem imprevista do Zuza assumia proporções de escândalo. Nas fileiras políticas especialmente, entre os partidos contrários à administração presidencial, alardeava-se o fato: que o rapaz era um produto da política do governo, que todos os amigos do presidente mediam-se pela mesma bitola, que era tudo uma súcia de bandidos de casaca, usurpadores da honra cearense, o diabo!

Os jornais da oposição rosnaram contra a moralidade dos governistas, responsabilizando o presidente pelo “desmembramento de caracteres” que ia pela sociedade cearense, alcunhando-o de negro Romão. Tal dizia que “S. Exª era homem de costumes dissolutos, acostumado a beber cerveja nos cafés cantantes de Paris, e a passear de braço com as cocottes no Bois de Boulogne”. Tal outro afirmava que “S. Exª sabia manobrar perfeitamente um phaeteon, montava muito bem a cavalo, mas não tinha capacidade para dirigir os destinos de um país”.

Insinuava aquele que “a viagem inesperada de certo bacharel por formar-se era um atentado contra os nossos brios e contra a moral pública”; aquele outro confirmava que “a polícia devia dar caça a um tal Sr. bacharel de nome açucarado contra quem pesavam as mais sérias acusações no tocante ao seu procedimento para com a família cea­rense”.

E toda a gente sabia que se tratava do Zuza e da Maria do Carmo.

O estudante, azucrinado por todos os lados, numa roda viva de indiretas, perdia a cabeça, indagava na agência se o vapor já tinha chegado, esbaforido, às carreiras, doido já por se ver barra afora, debruçado, tranqüilamente na amurada, a ver sumirem-se no horizonte, como visões de uma noite mal dormida, as areias do Mucuripe.

Uf!... Estava cansado de suportar tanta sujidade! Decididamente não voltaria mais ao Ceará por preço algum. Diabo de província onde ninguém está livre da calúnia e da descompostura pela imprensa desde que não se submete às imposições duma política de interesses pessoais.

Revoltava-se de novo contra o Ceará, contra os costumes cearenses, contra a política, “essa política sem ideal e sem patriotismo, que só servia para nos rebaixar, obrigando o indivíduo a vender-se por amor de sua mulher e de seus filhos”. Que diabo tinha ele com a política para que se viesse meter com a sua vida? Só porque era amigo do presidente da Província e filho de político? Sebo! Então não se podia ter amigos no Ceará, decididamente. E por que tanto barulho em torno do seu nome, por que, não lhe diriam? Por causa de um simples namoro com uma pobre normalista sem eira nem beira? Era o cúmulo!

Com que deliciosa alegria ele ergueu-se da rede no dia do embarque, de manhã muito cedo, as malas no meio do quarto prontas, a passagem comprada no bolso, sem dívidas, sem compromissos, completamente pronto a deixar o Ceará! Quando vieram lhe chamar para o banho, às seis horas, já há muito estava de pé, em chambre, muito bem-disposto, fumando o seu cigarro, passando uma vista de olhos na maleta do camarote onde refulgia, numa frescura capitosa, a roupa branca — ceroulas, camisas, meias e toalhas de rosto — tudo arrumado cautelosamente, com um cuidado feminino, umas cheirando ainda a sabão, passadinhas a ferro outras.

Ah! ia deixando fora a Casa de Pensão. Tomou do livro que se achava sobre a mesa e colocou-o na maleta, ao lado, para ler em viagem.

Agora sim, não faltava mais nada. Só pedia a Deus que não chovesse, porque um embarque debaixo de aguaceiro era um desastre horroroso.

De feito ameaçava chover. Era em janeiro. Há dias caía sobre a cidade uma chuvinha sintomática de inverno, persistente e miúda, acompanhada de trovões longínquos, lavando a atmosfera, encharcando as ruas, alentando a população, enverdecendo as árvores. Os longos meses de seca iam ser compensados por uma abundância de chuvas consoladoras e refrigerantes. As manhãs iam se tornando frescas e já se viam passar, em tabuleiro, feixes de feijão verde e hortaliças para a ­feira.

Zuza tinha aberto a vidraça para consultar o tempo. Os telhados, defronte, estavam úmidos e o céu de uma cor esmaecida de safira, arqueava-se, sem uma nuvem na penumbra da antemanhã. Passava um fiscal da Câmara com o seu boné, jaqueta com botões dourados, chapéu de chuva debaixo do braço, assoando-se com estrondo.

— Tudo fechado ainda, com efeito! pensou o Zuza. Entretanto já tinham dado seis horas.

Entrou e pôs-se a reler as cartas de Maria do Carmo, trincando a ponta do bigode.

“Meu querido Zuza...”

Nesta a normalista jurava como não tinha ido ao Clube Iracema; que era uma calúnia o que tinham dito ao estudante...

“Tua querida Maria”.

Zuza meneou a cabeça com um ar de riso e abriu outra.

“Zuza do meu coração...”

Nesta outra Maria lamentava que o rapaz não tivesse aparecido na Escola Normal na véspera.

“Tu já não me amas, Zuza; não queiras matar-me de saudades. Todo os dias peço a Deus por ti e tu nem sequer te lembras da tua futura es­posa!”

E assim, uma a uma, o futuro bacharel releu toda a série de cartas da normalista, enfeixando-as depois, dobradinhas, com um cadarço.

Que horror, meu Deus, quanta banalidade! E ela a tomar a coisa a sério! A gente sempre faz asneiras de criança nessa idade!...

E guardando o maço de cartas no fundo da maleta: “— Magnífico rol de asneiras para fazer rir a rapaziada de Pernambuco.”

As horas passavam vertiginosas. A larga claridade do sol penetrava no quarto pela janela aberta, como uma visita sem-cerimônia, anunciando um dia seco e esplêndido.

Já lá fora, na rua, recomeçava a labuta quotidiana. Um barbeiro, que morava defronte, amolava as navalhas assobiando um trecho de Fandango, com as pernas cruzadas, de frente para a rua. Passavam burricos com cargas de água, procurando as coxias. Meninos apregoavam o Cearense.

José Pereira ficara de vir almoçar com o Zuza, mais cedo que de costume, para seguirem juntos ao ponto de embarque.

D. Sofia andava numa faina, da sala para a cozinha, com os olhos empanados de lágrimas, esquecendo as suas dores de útero para pensar no Zuza, no seu filho que se ia embora.

O coronel, esse não se alterava, calmo, consultando o relógio de vez em quando, bem-humorado nesse dia, passeando o seu grande ar de homem independente.

Cerca de 10 horas entrou o redator da Província anunciando a chegada do vapor.

— A que horas sai? perguntou o estudante.

— Está marcado para as duas. Em todo caso é prudente ir mais cedo...

— Sem dúvida. Ao meio-dia, o mais tardar, devo estar a bordo. Qual é o vapor?

— O Espírito Santo.

— Diabo, uma carroça!

José Pereira entrara para o quarto do Zuza, e, sentado na larga rede de varandas encarnadas, perna traçada com desembaraço, passeava o olhar morosamente naquele tabernáculo de rapaz solteiro, agora em desordem, como um ninho abandonado, enquanto o estudante acabava de fazer a toalete no aposento contíguo.

Na frente das duas malas, uma grande e outra menor, lia-se em letreiros impressos e nítidos — José de Souza Nunes — Recife. Perto estava um caixote com livros e o mesmo dístico no alto.

— Dez e meia! Fez o redator levando o relógio ao ouvido.

Imediatamente surgiu o Zuza lépido, esfregando as mãos, como se saísse de um banho de per­fumes.

— Prontinho, disse ele.

E misteriosamente:

— Então, com que a canalha tem-se divertido à minha custa, hein?

— Como assim?

— Oh! homem, inventaram por aí que eu deflorei a Maria do Carmo. Não leste o Pedro II e o Cearense?

— E tens culpa no cartório?

— Não, com os diabos, mas isso é um horror! Ninguém pode mais gracejar, ninguém tem mais o direito de chegar-se a uma rapariga honesta sem intenções malévolas. Cada vez me con­venço mais de que isso é uma terra de selvagens, seu José Pereira! Isto é um país de bárbaros. Vocês da imprensa devem civilizar este povo, devem ensinar esta gente a pensar e a ter juízo, do contrário...

— Mas, fala a verdade, interrompeu o outro com um ar de riso malicioso; tu nunca...

— Palavra como não! É verdade que lhe dei alguns beijos, mas o nosso namoro nunca foi além disso, mesmo porque, tu compreendes a minha responsabilidade... Depois, só fui à casa do padrinho umas três vezes, no máximo. Calúnia, simples calúnia...

— É. Este povo é muito indiscreto...

— Indiscreto não — alcoviteiro, mentiroso, ignorante e besta, é o que ele é.

E depois de uma pausa:

— Bem, vamos almoçar que deve ser hora.

Uma vez instalado a bordo, no seu camarote do lado do mar, o futuro bacharel, de binóculo a tiracolo e boné, respirou a todo o pulmão e foi assistir da tolda à manobra do vapor que suspendia o ferro.

Eram duas horas em ponto. O tempo estava magnífico. Ventava forte e o mar em ressaca atirava sobre o quebra-mar uma toalha de espuma que se desmanchava em poeira tenuíssima irisada pelo sol. A cada golpe de mar havia uma algazarra na praia coalhada de gente. Escaleres navegavam para terra puxados a remo, destacando a bandeira do escaler da Capitania do Porto.

Zuza assestou o binóculo, e, sacando do lenço, correspondeu aos acenos que lhe faziam de um escaler que se afastava. Sentia agora uma ponta de saudade espicaçar-lhe o coração. Através da confusão que reinava no seu espírito, como um ponto luminoso por entre um nevoeiro denso, via mentalmente e nitidamente a cabeça branca de D. Sofia, de sua boa mãe, e só então sentiu que uma coisa prendia-lhe ao Ceará, atraía-lhe a essa terra que ele tanto detestava — sim, queria mal ao Ceará não sabia mesmo por que, por índole, por sistema, por pedantismo, mas não podia esquecer nunca o Ceará, porque nele ficava a sua velha que ainda há pouco, abraçando-o entre lágrimas, metera-lhe no bolso uma nota de cem mil-réis lisa e cheirando a fundo de baú.

Boa a santa velhinha! pensava ele, e já não enxergava coisa alguma, porque os vidros do binóculo estavam úmidos e enevoados...

Depois, enquanto o vapor singrava em direção ao Mucuripe, começou a examinar a costa cearense, como se nunca a tivesse visto de fora, da tolda de um navio. Viu passar diante de seus olhos arregalados todo o litoral da Fortaleza, desde o farol de Mucuripe até a ponta dos Arpoa­dores...

Primeiro o farol, lá muito ao longe, esbranqui­çado, cor de areia, ereto, batido pelos ventos; depois a extensa faixa de areia que se desdobra em ziguezague até à cidade; a praia alvacenta e rendilhada de espumas. Em seguida o novo edifício da Alfândega, em forma de gaiola, acaçapado, sem arquitetura, tão feio que o mar parece recuar com medo à sua catadura.

Noutro plano, coqueiros maltratados pelo rigor do sol, erguendo-se da areia movediça que os ameaçava soterrar, uns já enterrados até a fronde, outros inclinados, prestes a desabar; o torreão dos judeus Boris, imitando a torre de um castelo medieval, cinzento e esguio; o seminário, por trás no alto da Prainha, com as suas torres triangulares; as torres vetustas e enegrecidas da Sé; o Passeio Público, com os seus três planos em escadarias; a S. C. de Misericórdia, branca, no alto; o Gasômetro; a Cadeia; e, por ali afora, o arraial Moura Brasil, invadido pelo mar, reduzido a um montão de casebres trepados uns sobre os outros...

— “Sim, senhor, pensou o Zuza, bonito aspecto para se ver de longe, barra afora...”

Dentro em pouco o vapor começou a tombar desesperadamente. Fortaleza já não era mais do que uma pintura microscópica, diluindo-se muito ao longe na tinta alvacenta do horizonte...

...E só agora, três dias depois da partida do Zuza, é que Maria do Carmo sentia a dor do seu abandono, ao mesmo tempo que adquiria a certeza esmagadora de que estava para ser mãe; sim, para ser mãe de um filho espúrio, concebido num momento de desvario, mal acordada de um pesadelo horrível. Era demais, era! Se dissesse que ela tinha deixado o seu quarto para ir ter à rede do padrinho, oferecendo-se-lhe como uma fêmea desavergonhada, vá; era justo que caísse sobre si toda a cólera dos homens, mas, ao contrário, ele, o infame do padrinho é que fora alta noite ao seu quarto, provocar-lhe, impor-lhe, para bem dizer, uma coisa daquelas, e ela, coitada, tão inexperiente, tão tola que nem ao menos tivera coragem para dar um escândalo, expulsando-o, como se expulsa um ladrão, dando-lhe com a mão no focinho, embora com sacrifício de sua vida.

Chegavam a seus ouvidos, indistintamente, como um surdo rumor de cochichos, os ecos de maledicência. Na Escola Normal as outras raparigas atiravam-lhe indiretas fortes, que ela já não tinha ânimo de repelir como dantes.

Viam-na triste, para um canto, muito desconfiada, com grandes olheiras. Todas notavam as alterações de sua fisionomia, e certo desleixo no trajar, que faziam dela uma outra Maria do Carmo, albardeira e insociável, inimiga da convivência das companheiras, egoísta, intratável.

— Aquilo é coisa... comentavam maliciosamente as normalistas. A Maria viu alma do outro mundo, não é possível.

— Que o quê, menina, são desgostos de família. Dizem que o padrinho a maltrata.

— Quem, o João da Mata? Um grandíssimo miserável. Daí talvez seja isso mesmo.

— Não se iludam, meninas, insinuou a zarolha, a Maria ficou assim depois que o Sr. Zuza foi-se embora. Ela dantes era até uma rapariga muito alegre, vocês não se lembram?

— Coisas deste mundo, mulher, coisas des­te mundo. Ninguém deve fazer mau juízo das ­pes­soas.

O diretor um dia maltratou-a. Ao chegar viu desenhada na pedra da aula, a giz, uma obscenidade. Ficou furioso, disse muitas grosserias às raparigas e quis saber quem era a autora de semelhante indecência.

Silêncio profundo. Ninguém se atrevia a responder.

— Tenham a bondade de dizer quem fez isto! repetiu o diretor, e, de relance, viu, na última fila, um dedo que apontava para Maria do Carmo.

— Ah! foi a senhora, D. Maria do Carmo?

Maria empalideceu.

— Eu, não senhor!

— Tenha a bondade, faça o favor de vir apagar isto.

— Mas não fui eu, Sr. diretor, tornou ela erguendo-se.

— Embora, venha sempre: a senhora paga pelas outras.

— Não senhor, não posso responder por uma falta que não cometi.

— Não vem?

— Não senhor.

Toda a aula estava voltada para Maria do Carmo, medindo-a de alto a baixo, como se vissem nela uma transfiguração extraordinária.

— Então a senhora não vem? repetiu o homem fazendo uma carranca medonha.

— Não senhor...

— Retire-se da aula! fez ele apontando a porta. A senhora é uma insubordinada, desobedeceu à primeira autoridade deste estabelecimento. Vamos, retire-se!

Houve um silêncio grave, e Maria, tomando os livros, séria e resignada, sem olhar para as colegas, retirou-se taciturna, ouvindo atrás de si o atrito da esponja na pedra.

E tudo mais era assim, sucediam-se as contrariedades como um castigo. Crescia-lhe na alma o desgosto, como uma nuvem que sobe no horizonte vagarosamente alastrando pouco a pouco toda a vasta cúpula do céu para se desfazer em chuva caudalosa. Tinha pena de não ser, como as “outras mulheres”, indiferente a tudo, até nos momentos mais difíceis da vida. Vinham-lhe às vezes alegrias intermitentes, uma resignação infinita animava todo seu ser, e dispunha-se a enfrentar todas as conseqüências do seu desatino com uma calma heróica, sem dar mostra da mais leve tristeza.

Nesses momentos abria-se em efusões de ingênua bondade para com D. Terezinha, procurando-a, puxando conversa, oferecendo-se-lhe para pentear o cabelo, gabando-lhe os vestidos, com uma humildade de escrava. Mas a madrinha, seca e indomável, aborrecia-se com aquilo, enfadava-se, sempre de cara fechada, respondendo por mo­nos­sílabos às perguntas da afilhada. Quando amanhecia mal-humorada, com as suas desconfianças, enquizilava-se demais. — “Deixe-me, criatura, deixe-me, por amor de Deus, oh!” Maria não dizia palavra, recolhia-se ao silêncio do seu quarto a costurar ou a ler o Almanaque das senhoras por desfastio, para se distrair.

Entretanto João da Mata progredia no vício de beber aguardente. Andava agora muito chegado ao Perneta e ao Guedes, de quem se dizia amigo do coração.

A bodega do Zé Gato continuava a ser o ponto de suas reuniões, onde se demoravam às vezes até alta noite a jogar a bisca num esquecimento absoluto de família e de deveres, saturados de álcool, lívidos à luz de um miserável candeeiro de querosene. O triste ordenado que lhes pingava no bolso em cada fim de mês escorria-lhes por entre os dedos como azougue, transformando-se em fichas na banca do jogo e desaparecendo como por encanto, sem que eles próprios soubessem como.

Quantas vezes sucedia entrar em casa sem um real no bolso para mandar à feira no dia se­guinte!

Era preciso então tomar dinheiro a juros aos agiotas, correr toda a cidade atrás de alguém que lhe emprestasse alguns mil-réis até o fim do mês, contar as suas necessidades, as pequeninas misérias domésticas, inventar situações incríveis. Porque os seus “amigos do coração”, o Perneta e o Guedes, da Matraca, também eram pobretões e perdulários, sentiam muito as necessidades do Janjão, mas não lhe podiam ser úteis por forma alguma, senão dando-lhe a ganhar no jogo quando a sorte não os protegia.

— É. Eu bem sei que vocês também têm família como eu e precisam também. É o diabo, é o diabo!

Daí as dissensões, os conflitos, em casa, com a mulher por causa de dinheiro. Ele já não conseguia impor à D. Terezinha a sua autoridade de chefe de casa, como dantes; ao contrário, agora suportava-lhe as impertinências, as saraivadas de impropérios, com uma passividade de animal submisso.

— Tenha vergonha, homem de Deus, tenha vergonha, que você já não é criança, dizia-lhe ela nas bochechas, quase lhe abanando o queixo. Olhe para as barbas que tem na cara, porte-se como gente!

E ele ouvia tudo aquilo sem dizer água vai, caladinho como um prego, murcho, impotente!

Como os tempos mudam! Há poucos dias era ele forte, o mandachuva naquela casa; bastava um olhar seu, por cima dos óculos escuros, para que todos, D. Terezinha, Maria do Carmo e a Mariana, estremecessem com medo, porque sabiam de quanto ele era capaz nos momentos de cólera; agora não, tinham-se trocado os papéis: bastava um olhar de D. Terezinha para que ele lhe desse as costas disfarçadamente para evitar barulho.

— Basta, basta, basta! costumava dizer quando a mulher dirigia-se para ele com os olhos chamejantes, de mãos fechadas.

E escafedia-se até o fundo do quintal para não lhe ouvir os disparates.

Estava magro, muito magro, e queixava-se de dores nos intestinos.

Diabo da repartição não lhe deixava tempo para nada. Era um trabalhar sem descanso, sentado a uma banca, das nove às três, copiando ofícios, riscando papel estupidamente. Se ao menos tivesse quem lhe arranjasse com o ministro uma aposentadoria ainda que fosse com a metade do ordenado... Mas, qual! tudo uns políticos sem importância, uns lagalhés que iam para a câmara proferir barbaridades, a repetir que o país estava à beira de um abismo e nada mais! Até estimava que lhe demitissem do emprego, porque iria fazer pela vida noutra parte, e escusava perder tempo e em­porcalhar papel, para no fim do mês — tome lá o seu ordenado, uns míseros vinténs que mal chegavam para o boi. Uma desgraça!

De resto a Maria não lhe dava muito cuidado. A princípio ainda lhe fizera uns carinhos, dera-lhe uns cortes de chita e um rico vestido de cassa da Índia “para agradar”, porque também seria uma ingratidão vê-la para um canto a se acabar, magra e amarela que nem uma lesma. Achava até que tinha feito muito. Outros havia piores do que ele, ora!

— Meu bem, tristezas não pagam dívidas. É andar, é andar sem olhar para trás.

Mas quando, um belo dia, Maria declarou-lhe positivamente que estava prenhe, que sentia “uma coisa” bulir-lhe na barriga, João estre­munhou. — Que se há de fazer, filha? Agora é ter paciência. Foi uma fatalidade, foi uma fatalidade. Há de se arranjar a coisa do melhor modo possível. Vais aí para qualquer sítio, fora da cidade, e ninguém saberá de coisa alguma. Dá-se tanto disto...

— E depois? murmurou Maria mordendo a ponta do lenço, cabisbaixa.

— E depois? E depois... ora adeus! e depois dá-se a alguém para criar o trambolho e tu voltas à tua santa vidinha.

Maria soluçava baixo, fungando numa crise nervosa.

— Já te pões a chorar como uma criança! Tolice! Estou a dizer-te que o caso é muito simples.



Uma tarde em que os Mendes, o juiz municipal e a mulher, tinham ido passear ao Trilho, João da Mata entrou alvoroçado, sem fôlego, com uma notícia a escapulir-lhe da boca. — Sabem quem está muito doente?

Todos voltaram-se surpreendidos, com o olhar cheio de curiosidade. — Não, ninguém sabia. Algum conhecido?

— O presidente, o Dr. Castro, teve um ataque há pouquinho. A rua está cheia. Diz que está bem mal.

— De quê, menino? interrogou o juiz muito admirado e já nervoso.

Houve logo um interesse comovido nos circunstantes.

E João, sentando-se, sem apertar a mão aos Mendes, pálido, limpando a testa, foi dizendo o que sabia: — Muita gente defronte do palácio. Tinham sido chamados todos os médicos, e todos, menos o Dr. Melo, eram de parecer que se tratava de um caso de febre amarela. O presidente tinha acabado de jantar e lia à cabeceira da mesa a correspondência do sul chegada naquele momento, quando começou a sentir-se mal — embrulho no estômago, tonteira, calafrios. Imediatamente, ergueu-se lívido, e, ao dar o primeiro passo, caiu fulminado!

— Ai! fez D. Terezinha cruzando as mãos sobre o regaço. E depois?

— Depois conduziram-no à cama, sem sentidos, vomitando uma coisa preta...

João fez esgares de nojo. Todos cuspiram.

— ... E quando os médicos chegaram já o encontraram sem pingo de sangue no rosto, vomitando ainda golfadas de bílis sobre a esposa que o amparava, coitada, nem sei mesmo como...

— Coitado! lamentaram num tom arrastado as duas senhoras.

Maria do Carmo ouvia silenciosa e compungida a narração do padrinho, ao lado do piano, com os olhos úmidos e o ar assustado.

— Mas, João, isto é sério? perguntou o juiz municipal erguendo-se com os braços cruzados, estupefato.

— Oh! senhor, pois eu havia de inventar uma coisa desta? Admiro até como vocês ainda não sabiam, porque a rua está cheia. Eu soube ali, na bodega do Zé Gato.

Fez-se um silêncio repassado de suspiros.

— Um homem tão forte, vendendo saúde! fez o juiz.

— Mas bebia muito, coitado, tornou João da Mata respirando com força. Era homem que não bebia água!

— Por isso não, atalhou D. Terezinha. Que asneira! Tanta gente se embriaga todos os dias e não lhe sucede nada...

— Daí pode ser que escape, murmurou D. Amélia; não queriam sepultar o homem em vida.

— Pode ser...

— Pode ser, repetiu o juiz. A ciência faz mi­lagres.

— Que dúvida!

Então o Mendes tomando o chapéu, muito impressionado, as mãos trêmulas:

— Bem, vamo-nos Amélia. Esta vida, esta vida!

Era cedo, insistiu D. Terezinha triste. Mas os Mendes pretextaram afazeres, lembraram as crianças que tinham ficado com a criada e despediram-se.

Maria do Carmo passou a noite nervosa, com insônias, sentida com a doença do Dr. Castro, muito apreensiva.

Não podia se conformar com a idéia da morte do presidente, o homem da moda, o “querido das moças”, o grande amigo do Ceará, que tantos benefícios fizera a essa província, mandando construir açudes no sertão, reconstruindo o Passeio Público, ativando as obras do porto, facilitando a emigração, prodigalizando esmolas, e, finalmente, introduzindo em Fortaleza certos costumes parisienses, como por exemplo, o sistema de passear a cavalo a chouto, de aparar a cauda aos animais de sela. Lembrava as qualidades pessoais do fidalgo paulista, o seu modo de falar num sotaque aportuguesado, muito moderado na conversação íntima, as suas maneiras delicadas, os belos dentes branquejando sob um bigode sedoso e bem tratado. Uma vez, no baile oferecido à oficialidade do cruzador “1º de Março” dançara com ele uma quadrilha, por sinal bebera muita champanha nessa noite a ponto de ficar um pouco tonta da cabeça. Coitado! uma alma boa. É verdade que tinha demitido o Pinheirão mais os filhos, deixando-os na miséria, mas no dia seguinte mandara-lhes um envelope com cinqüenta mil-réis. Tudo por causa da política; a política é que o fazia mau. Tinha rasgos de generosidade fidalga, lá isso era inegável, tanto assim que um dia dera ao negro Romão, um negro sujo como aquele, cinco mil-reisinhos. Era uma pena se morresse, coitado, havia de fazer uma falta tão grande! — Compadecia-se como se fosse seu parente. Balbuciou uma promessa às almas do purgatório e só muito tarde, pela uma hora da manhã, conseguiu adormecer.

Ao outro dia procurou saber logo como ia o presidente. As notícias eram cada vez mais desagradáveis. As janelas do palácio continuavam fechadas e os transeuntes olhavam contristados o casarão ao redor do qual pairava uma melancolia lúgubre. Os boatos multiplicavam-se penetrando todas as casas como um vento de desgraça. A Província suspendeu a publicação por condolência, e os jornais da oposição fizeram uma pausa nos seus ataques à administração provincial.

As filhinhas do presidente estavam em casa do José Pereira, na rua Major Facundo, duas crianças louras e inteligentes, que falavam francês, uma nascida em Paris, e outra no Rio de Janeiro. Às duas horas já se dizia que o “homem” não escapava. Um cabo de ordem arrastando o chanfalho, passava a toda pressa em direção do telégrafo. O espírito público começava a inquietar-se com a sorte do presidente, e os próprios adversários políticos enchiam-se de penas concentradas.

Pela noite desabou um formidável aguaceiro e toda a população, por assim dizer toda, aguardava ansiosa, dentro da casa, ao sussurro da chuva que caía fora, sacudida pelo vento sul, notícias sobre o estado do Dr. Castro.

Maria, como toda a gente, sentia um peso no coração ao lembrar-se daquele homem sadio e robusto, a seus olhos a síntese da mais requintada elegância, que tanto amara o Ceará, e cujo nome andava gravado a canivete até no tronco dos cajueiros, nos sertões por onde tinha andado, tão moço ainda e já às portas da morte acabando-se como qualquer mortal! — A providência às vezes era injusta, como os homens: poupava um ente abominável como o padrinho e um pelintra desleal como o Zuza, para aniquilar, enquanto se esfrega um olho, um homem da força do Dr. Castro, “útil ao país e benfeitor da humanidade”!

Indignava-se com essa preferência injusta das cortes celestes, e, de si para si, concluía que não valia a pena uma pessoa ser honesta, trabalhar noite e dia, dedicar-se a uma causa nobre, engrandecer-se aos olhos da humanidade para um belo dia — toma! vá para a cova que é o seu lugar! Uma coisa estúpida a vida, afinal de contas.

Entretanto outros viviam aí a cometer mil desatinos, a roubar, a assassinar, a iludir os incautos e tinham vida para um século inteiro, livres de congestões, de febre amarela, e de quanta doença há.

Acordou cedo e foi-se pôr à janela à espera de alguém que lhe desse notícias do presidente. O céu estava carregado de nuvens compactas, e nebli­nava. A casa da viúva Campelo, defronte, estava fechada; a viúva tinha ido passar uns dias com a filha no Benfica.

Passou um empregado da Estrada de Ferro, condutor de trem, com as calças arregaçadas, comendo pão. Maria chamou-o: — O Sr. sabe me dizer como vai o presidente?

— Faleceu às duas horas da madrugada, respondeu o sujeito mastigando, indiferente.

— Obrigado, disse Maria empalidecendo, e entrou imediatamente, batendo o postigo. — Coitado! foi dizendo pela casa com grande mágoa na voz. Coitado! Que pena!

— Que foi? perguntou o amanuense que subia o corredor em ceroula.

— O presidente, que morreu!...

João parou assombrado como se lhe tivesse caído um raio defronte.

— Morreu, hein?!

— Disse-me agora mesmo um empregado da Estrada de Ferro.

— Realmente! E vá a gente se fiar na justiça divina! Morre um homem daqueles, da noite para o dia, como qualquer bêbado!

E lá se foi resmungando contra Deus e contra os padres.

Os sinos da Sé começaram a dobrar a finados. Aumentava a chuva, que já se ouvia chiar nas calçadas, como uma panela fervendo.

Maria entrou para o seu quarto, aflita. Essa manhã foi para ela de tristeza e desânimo. Acudiam-lhe à imaginação lembranças extravagantes, idéias lúgubres, como aves negras que pousavam de chofre num arvoredo, alvoroçadas, cantando sinistramente. Caía em abstrações prolongadas em que se punha a contar os dedos maquinalmente, como se fosse ensandecer. Apoderou-se dela um medo pueril, um inexplicável pavor das coisas sombrias, um supersticioso receio de almas do outro mundo, um mal-estar, um quer que era que lhe trancava a respiração, que lhe oprimia o peito.

Procurava disfarçar as apreensões, arrumando os trastes do quarto, mexendo nos baús, numa inquietação crescente, num vira-e-mexe cada vez mais açodado, abrindo e fechando gavetas, ata­rantada, com o coração aos pulos.

— O enterro! o enterro! bradou da porta a Mariana que ia às compras.

Todos correram à janela. D. Terezinha na precipitação deixou cair um copo, que se esfarinhou, e João da Mata esquecera os óculos, enfiando as mangas da camisa.

Maria arrancou como uma louca, dando um encontrão na mesa do centro da sala de visitas.

Continuava a chover, agora devagar, com uma insistência importuna, o sol a espiar por trás duma nuvem, frio indeciso, mandando, com um supremo desdém pelas coisas cá de baixo, uma réstea de luz tímida e complacente sobre a manhã úmida.

O enterro do presidente passava na esquina, caminho do cemitério.

Maria do Carmo assistia com a respiração suspensa e um nó na garganta ao desfilar do préstito, o caixão levado por seis homens de preto, coberto de galões dourados debaixo da chuva miúda, o acompanhamento — uma comparsaria dispersa de gente de todas as classes de chapéu-de-chuva aberto, marchando resignadamente ao som da música do batalhão que tocava a funeral.

Os padres já tinham passado, na frente, com os seus acólitos, muito graves, olhando para o chão, evitando as poças de água. Um carro seguia atrás todo fechado, devagar.

E a chuva a cair e a música a tocar o funeral deixando por onde passava uma tristeza vaga que lembrava um dia de finados entre sepulturas...

D. Terezinha enxugava os olhos com a aba do casaco e João da Mata pigarreava disfarçando a comoção.

Maria ficou à janela vendo passar o resto do acompanhamento, sujeitos sem paletó, de chapéu de palha de carnaúba, outros sem chapéu...

— Que triste, meu Deus!

E entrou muito inquieta, com um frio na medula, as pupilas dilatadas, pálida, toda trêmula. Mas no meio da sala perdeu o equilíbrio — escureceu-lhe a vista, tropeçou numa cadeira e estendeu-se no chão pesadamente, como morta.

— Chega! A Maria teve uma coisa! gritou D. Terezinha, correndo para a afilhada. Chega Janjão, chega depressa!

— A água-flórida, a água-flórida, em cima da cômoda.

O amanuense precipitou-se pelo corredor a grandes passadas, atônito, aterrado, sem saber o que fizesse, seguido pelo Sultão que lhe tomou a frente ganindo.

— Jesus, o que foi?

— Sei lá, uma coisa que lhe deu de repente... Segura aí nos braços...

E ambos, João da Mata e a mulher, pálidos, muito vexados, conduziram a rapariga para a alcova, arrastando os pés com o peso.

— Chega depressa a água-flórida, mandou João abanando o rosto à doente.

D. Terezinha trouxe a garrafa e começou logo o afanoso trabalho de umedecer as têmporas de Maria, dando-lhe a cheirar o líquido, friccionando-lhe a testa com força, numa aflição.

— Um copo com água, um copo com água, Janjão.

Maria deu um grande suspiro, entreabrindo os olhos, estendida ao comprido na larga cama de jacarandá.

— Cheira mais, cheira mais, recomendava D. Terezinha, agora mais aliviada.

Maria murmurou que estava melhor.

— Já pode se sentar? perguntou o amanuense, chegando o copo. Vá, faça um esforçozinho... Upa!

— Não seria bom chamar o médico? lembrou D. Terezinha.

Maria fez com a mão “que não”, e com a voz fatigada, apoiada ao espelho da cama: — “Não era preciso, já estava boa...”

— Sentes alguma coisa? quis saber o ama­nuense. Se sentes, dize.

— Apenas uma dorzinha aqui... — E indicou o flanco esquerdo.

— Bom, bom, bom, quietinha...

E desde esse dia aumentaram as suspeitas de D. Terezinha, que observava agora os menores movimentos da afilhada, insistentemente, examinando-lhe a roupa usada, medindo-lhe o volume da barriga, perseguindo-a com os olhos.

— Isto, isto ainda acaba mal! pensava ela.