A Normalista/XV
Quando mestre Cosme, uma manhã, foi avisar a João da Mata, que “a menina estava com as dores”, o amanuense dormia ainda sob os lençóis e nem sequer sonhava na afilhada.
Ergueu-se da rede, com um pulo, enfiou as calças, lavou-se num instante, e abalou mais o velho para a Aldeota, sem dizer palavra a D. Terezinha.
— “Já tinham arranjado parteira?” inquiriu acelerando o passo.
— Já, inhôr sim, a comadre Joana Pataca, uma do Outeiro.
— Boa?
Mestre Cosme não afirmava porque não a conhecia bem, mas era limpa e não tinha má cara. Diz que era a melhor parteira do Outeiro. Agora, se seu Joãozinho não quisesse... A mulher já estava cuidando da menina...
— Quando apareceram as dores? — Se Maria gemia muito...
O velho informou tudo minuciosamente sem ocultar um só detalhe, juntando às palavras os seus gestos rudes de homem do campo.
A rapariga há dois dias queixava-se de umas dores nas “ancas e no pé da barriga”, acompanhadas de fraqueza nas pernas e grande falta de ar... Se gemia? Muito, coitada, metia até pena. Pudera! novinha ainda... A parteira dissera logo que a criança estava no nascedouro. Àquela noite as dores tinham piorado, ninguém dormira, velando a pobre moça. Eram chás e fricções, e — corre daqui e chega depressa — todos com cuidado, rezando à N. S. do Bom Parto.
Logo da porteira do sítio João escutou os gemidos de Maria do Carmo, trêmulos, sentidos, longos... e aquilo apertou-lhe o coração.
No pequeno quarto de taipa, com uma janelinha para o descampado, achava-se tia Joaquina, à cabeceira da normalista, alisando-lhe os cabelos, com carinho, e uma outra mulher gorda, pançuda, sem casaco, muito trigueira, com marcas de bexiga no rosto, meio idosa.
— Dão licença? murmurou João da Mata descobrindo-se com respeito.
A mulher gorda tomou o casaco, às pressas, e Maria volveu os olhos úmidos e profundamente melancólicos para o padrinho, gemendo.
Mestre Cosme trouxe um tamborete.
Sentia-se um cheiro ativo de alfazema queimada: encostado à parede fumegava o braseiro:
— Então, como vai? perguntou João tomando a mão da afilhada. Muitas dores, hein?
— Assim... respondeu a rapariga mordendo o beiço com um gesto doloroso, revirando-se na rede, e continuou a gemer alto.
— A senhora é que é a parteira? tornou João para a mulher gorda que se conservara imóvel com o queixo na mão.
— Sua criada Joana Pataca.
— Já verificou se a criança está perfeita, se não há novidade?
— Ora, ora, ora... há que tempo! Daqui a pouquinho o menino está fora, se Deus quiser.
O amanuense encarou por cima dos óculos, com ar de desconfiança, o todo obeso da mulher. E, sentando-se:
— A senhora tem licença para assistir?
Não era preciso licença, não senhor. No Ceará qualquer mulher podia ser parteira contanto que merecesse confiança. Ela, Joana Pataca, era muito conhecida no Outeiro, por sinal tinha partejado uma vez a mulher do comandante do batalhão...
— Vossemecê duvida?
— Não, não... é que eu queria saber... Então não é preciso licença?
— Inhôr não. É qualquer uma.
— Está bom, está bom... Mas não se descuide... Olhe, não vá esquecer...
A parteira pousou no chão o cachimbo, que estivera fumando, e foi aquecer uns panos.
Deu meio-dia e a rapariga não teve a criança. As dores tinham melhorado um pouco. Tia Joaquina batia os beiços rezando “— Tenha paciência, minha filha, tenha fé no Senhor do Bonfim”, dizia ela muito solícita.
João da Mata passou todo esse dia na Aldeota, aguardando o sucesso, bebendo aguardante e acendendo cigarros, esquecido da repartição.
Mestre Cosme armara-lhe uma rede no alpendre e fora-se a desbastar a mata, escanchado na Coruja.
Fazia um belo dia de sol, calmo e luminoso. O arvoredo imóvel dormitava na esplêndida pulverização da luz que o narcotizava para beber-lhe a seiva. O passaredo aninhava-se na verde espessura dos cajueiros em flor, contubernal e gárrulo; rolas bravas debicavam nas clareiras os minúsculos diamantes que o sol punha na areia. E no silêncio e na beatitude daquela espécie de eremitério João pôde dormir um sono bom de duas horas, embalado pelos gemidos da afilhada como por um vago e monótono estribilho trespassado de melancolia.
Às sete horas da noite, ao acender-se a primeira vela, Maria teve um sobressalto e ergueu-se bruscamente com uma fortíssima dor no baixo-ventre, muito branca, o olhar desvairado e os cabelos em desordem.
— Que é isso, comadre! repreendeu a parteira agarrando-a.
— Minha filha! fez tia Joaquina.
E em pé, entre as duas mulheres, com a cabeça arqueada para trás, contorcendo-se numa aflição suprema, a rapariga soltava gemidos estrangulados, cortada de dores, agarrando-se como uma louca ao pescoço das velhas, no bico dos pés, em camisa.
Houve uma confusão extrema.
— Sente-se, comadre, sente-se, por amor de Deus! suplicava a parteira, agarrando-a com jeito.
— Sente-se, minha filha, repetia a outra.
João da Mata acudiu gelado.
— Calma! calma! bradou estacando à porta do quarto.
Mas era tarde. Ouviu-se uma pancada surda no chão, como a queda de um bolão de barro úmido e, imediatamente, rios de sangue jorraram aos pés da parteira, e no linho branco da camisa de Maria do Carmo desenhou-se larga faixa rubra, de alto a baixo, como uma bandeira de guerra desdobrada.
— Louvado seja Nosso Senhor Jesus Cristo! rosnou Joana Pataca estremecendo.
E Maria tombou como um fardo, sem sentidos, na rede fria.
Passou-se a noite às voltas. O amanuense resolveu não chamar médico — que era uma asneira, o perigo tinha passado. A parturiente adormecera, profundamente, depois de lhe terem ministrado um hidromel de aguardente.
Sobre uma grande caixa de pinho, a um canto do quarto, envolvido em panos, o recém-nascido — uma criança nutrida e robusta — dormia o sono eterno, roxo, de olhos fechados, as gordas mãozinhas cruzadas sobre o peito, com um fio de sangue a escorrer-lhe do nariz.
João não pregara olhos, pensativo, com a calva entre as mãos, ao lado da afilhada. — Era o diabo, era o diabo! Até lhe doía a cabeça! Grandíssima besta, a parteira, que nem ao menos soubera apanhar a criança! Estúpida! deixar morrer uma criança tão bem-feita e nutrida! Isso só acontecia a ele, João da Mata.
De meia em meia hora acendia um cigarro automaticamente e punha-se para ali a ruminar silenciosamente, à luz duma triste vela de carnaúba, que pingava a sua cera denegrida, no gargalo duma velha botija de genebra, esbatendo ao fundo do quarto o perfil do recém-nascido.
Diabo! pensava o amanuense quebrando a cinza do cigarro. Um caiporismo! Tantos cuidados, tanta aflição, e, afinal de contas, lá ia tudo águas abaixo. Por um lado era uma felicidade o pequeno ter morrido, porque isso de filho natural sempre dava que falar às más línguas e até podia-se descobrir a verdade.
Consolava-se com esta idéia.
Perto, numa palhoça vizinha, havia um samba que durava desde o anoitecer. No silêncio da noite ecoava um alarido medonho, vozes aguardentadas, sapateados que estremeciam o chão, cantos, desafios ao som duma viola cansada.
Maria ressonava docemente, com o rosto voltado para a parede, o tronco repousando sobre chumaços de pano onde brilhavam manchas de sangue. Cerca de onze horas moveu-se devagar, abrindo os olhos e soerguendo-se, como quem acorda de um pesadelo; mas faltaram-lhe as forças e repousou novamente.
— “Queria alguma coisa?” perguntou João.
— Onde está meu filho?
— Não te lembres disso agora, vê se descansas...
— Mas onde puseram ele? Está vivo?
— Qual vivo, filha! Pois querias tu que escapasse?
E em tom lamentoso:
— Coitado, ao menos está no céu, livre das misérias deste mundo...
Maria não se conteve: repuxou o lençol, e, com os olhos cheios de água, murmurou numa voz entrecortada pelos soluços:
— Pobrezinho!... Por que não me disseram logo?...
— Já te pões a chorar!
Maria do Carmo soluçava com desespero, sentindo crescer dentro de si, no íntimo do seu coração, avassalando-a, abalando todo o seu ser, toda a sua delicada alma de mulher, como um sopro violento e devastador, esse inestimável desgosto que as mães sentem ao ver o filho morto. Ela, que desejava tanto criá-lo, amamentá-lo com o seu leite, que era o seu próprio sangue, a sua própria vida, amá-lo, adorá-lo, com toda a força do seu coração!... Era um filho natural, mas era seu filho, nascido em suas entranhas, carne de sua carne, sangue de seu sangue, havia de amá-lo muito...
— Quero vê-lo, deixe-me vê-lo! pediu aflita.
— Que tolice! fez João agasalhando-a melhor. Não pense nisto agora, criatura, os médicos recomendam toda a calma. A criança está morta, que se há de fazer?...
Continuavam os soluços, um choro estugado, interrompido por uma tossezinha convulsa.
— Mau! mau! tornou João.
E, imediatamente, foi buscar o cadáver do filho, depondo-o carinhosamente sobre os joelhos.
Tia Joaquina apareceu, envolvida numa larga coberta de chita feita de retalhos. “— O que era?...”
— Nada, tia Joaquina. Ela que desejou ver o filho, explicou João. Uma imprudência. Até pode lhe fazer mal...
— Vejam a vela, por favor, pediu Maria. Quero ver meu filho...
E ao mirar o rosto lívido da criança, os bracinhos rechonchudos, o filete de sangue escorrendo do nariz como um veio de rubi, a rapariga sentiu um calafrio e um grande vácuo no peito, como se lhe tivessem arrancado um pedaço do corpo. E entrou a soluçar outra vez de um modo tão penoso e comovente que João da Mata não pôde recalcar duas lágrimas, as primeiras de sua vida, que rolaram vagarosas nas suas faces magras, como duas linfas cristalinas na aspereza tosca duma rocha.
No dia seguinte, antes do sol nascer, mestre Cosme foi ao fundo do sítio cavar uma sepultura para o pequenino cadáver. João acompanhou-o taciturno. Pararam ao pé de um grande cajueiro, que ficava defronte da casa, e, com pouco, o amanuense viu sumir-se debaixo da terra úmida o corpo do seu primeiro filho.
Mestre Cosme socou bem a areia, nivelou o terreno com os pés, e suspirou com força, como depois de um trabalho penoso.
João assistiu em pé, sem dar palavra, mãos para trás, olhos cravados na terra.
— Pronto! fez o velho pousando a enxada no ombro.
— Bem, murmurou João. E seguiram por entre as ateiras calados e graves.
Seriam seis horas da manhã. No alto de um coqueiro que farfalhava à beira do cercado, cantava uma graúna, e as notas límpidas do seu canto vibravam demoradamente na transparência do ar, sobre a verde monotonia do campo, como um toque de alvorada!
Tinha-se calado o samba havia pouco.
Meses depois, quando Maria do Carmo apresentou-se na Escola Normal para concluir o curso interrompido, estava nédia e desenvolta, muito corada, com uma estranha chama de felicidade no olhar. A sua presença foi como uma ressurreição. — A Maria do Carmo, hein?! Nem parecia a mesma! — Houve um alarido entre as normalistas: abraços, beijos, cochichos... Até o edifício tinha-se pintado de novo como para recebê-la!
O programa era outro, mais extenso, mais amplo, dividido metodicamente em Educação Física, Educação Intelectual, Educação Nacional ou Cívica, Educação Religiosa... pelos moldes de H. Spencer e Pestalozzi; o horário das aulas tinha sido alterado, havia uma escola anexa de aplicação, estava tudo mudado!
A esse tempo um grande acontecimento preocupava toda a cidade. Liam-se na seção telegráfica da Província as primeiras notícias sobre a proclamação da república brasileira. Dizia-se que o barão de Ladário tinha sido morto a pistola por um oficial de linha, na praça da Aclamação, e que o imperador não dera uma palavra ao saber dos acontecimentos, em Petrópolis.
O Ceará estremecia a esses boatos. Grupos de militares cruzavam as ruas, ouviam-se toques de corneta no batalhão e na Escola Militar. Tratava-se de depor o presidente da província, um coronel do exército. Os canhões La Hitte, da fortaleza de N. Sra. d’Assunção, dormiam enfileirados na praça dos Mártires, defronte do Passeio Público guardados por alunos de patrona e gola azul.
Ninguém se lembrava de escândalos domésticos nem de pequeninos fatos particulares.
Um homem revoltava-se, indignado com o novo estado de coisas — era João da Mata.
— É boa! bradava ele na bodega do Zé Gato, esmurrando a mesa. Isto é um país sem dignidade, uma nação de selvagens! Expulsar do trono um monarca da força de Pedro II, mandá-lo para o estrangeiro doente e quase louco, é o cúmulo da ignorância e da selvageria!
E Maria do Carmo, agora noiva do alferes Coutinho da polícia, via diante de si um futuro largo, imensamente luminoso, como um grande mar tranqüilo e dormente.