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A Pata da Gazela/IV

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Ao mesmo tempo que o nosso leão, entrava Leopoldo de Castro na modesta habitação que então occupava na Gloria.

Quando lhe fugira a celeste visão, o mancebo foi seguindo com o passo e com os olhos o carro que levava sua alma presa áquelle rosto encantador. O passo era rapido e o olhar ardente; um anciava por chegar; o outro quizera attrahir pela força da paixão, pelo iman das centelhas magneticas, que desferia a alma.

Fosse illusão dos sentidos perturbados pela commoção interior, ou breve e confusa percepção da realidade, julgou o moço vêr, no momento de dobrar o carro pela rua Sete de Setembro, um talhe esbelto inclinar-se para a frente, e apparecer de relance um rosto alvo, donde escapou-se vivo e rapido olhar.

Leopoldo não tinha o intento de alcançar, nem mesmo seguir, o carro que fugia com velocidade; mas embalava-o a esperança de que um obstaculo qualquer, impedindo por instantes o livre transito, lhe permittisse outra vez contemplar a moça. Quando, porém, isso não succedesse, consolava-o a idéa de conhecer a direcção que tomaria a linda victoria:

— Si eu soubesse ao menos para que lado mora ella!... Esse ponto seria o meu horizonte, o meu céo. Me voltaria para ali quando adorasse á Deus, e quando conversasse com ella. Amaria as estrellas, as nuvens e até as borrascas dessa banda do firmamento; amaria as ruas, as calçadas e até a poeira desse arrabalde da cidade.

O mancebo vagou assim durante duas horas, percorrendo as ruas sem destino. Não era tanto a esperança de vêr a moça ou sómente o carro, como a necessidade de occupar seu espirito, o que o impellia nessa perseguição de uma sombra.

— Eu tornarei a vel-a, pensava elle comsigo; e ella me ha-de amar, tenho convicção. O amor é um magnetismo; eu acredito que o magnetismo se resume nelle; que a lei da attracção não é sinão a lei da sympathia; os polos são a cabeça e o coração, na terra, como no homem. Si ella fôr a mesma que eu vi com os olhos de minha alma, a mesma que se revellou á minha paixão, aquella a que devo unir-me eternamente para formar um ser mais perfeito, eu caminharei para ella, como ella para mim, impellidos por uma força mysteriosa, por mutua aspiração.

Com o animo repousado por essa convicção que nelle se derramára, entrou Leopoldo em casa. Ahi o esperaya o isolamento em que se ia escôando sua vida, depois da perda de uma irmã á quem adorava.

Nessa irmã tinha elle resumido todas as affeições da familia, prematuramente arrebatadas á sua ternura; o amor filial, que não tivera tempo de expandir-se, a amisade de um irmão, seu companheiro de infancia, todos esses sentimentos cortados em flôr, elle os transportára para aquelle ente querido, que era a imagem de sua mãi.

Essa perda deixára um vacuo immenso no coração de Leopoldo; a principio enchera-o a dôr; depois a saudade; agora essa mesma terna saudade sentia-se desamparada na profunda solidão daquelle coração ermo. O mancebo carecia de uma affeição para povoar esse deserto de sua alma; de uma voz que repercutisse nesse lugubre silencio. É tão doce partilhar sua melancholia, ou seu prazer, com um outro eu, com um amigo ou uma esposa. São dous hombros para a cruz, e dous peitos para a alegria; allivia-se o peso, mas duplica-se o gozo.

Ao cahir da tarde, quando o crepusculo já desdobrava sobre a cidade o véo de gaza pardacenta, Leopoldo, sentado á janella de peitoril de sua casa, fumava um charuto, com os olhos engolphados no azul diaphano do céo, onde scintillava a primeira estrella. A seus pés desdobrava-se a bahia placida e serena como um lago, com a sua graciosa cintura de montanhas, caprichosamente recortadas.

O espirito do moço não se embebia de certo. na perspectiva dessa encantadora natureza, sempre admirada, e sempre nova. Ao contrario abandonava-se todo ás recordações de seu encontro pela manhã e aos enlevos que lhe deixara a contemplação da linda moça. Passava e repassava em sua memoria como em um cadinho, todas as circumstancias minimas deste grande e importante acontecimento, desde o momento em que assomou a visão até que desappareceu por ultimo ao dobrar o canto da rua.

Achava nisso o mesmo praser que um menino guloso experimenta em chupar novamente os favos já saboreados; lá ficou um raio de mel, que o labio avido colhe. Para Leopoldo esses raios de mel eram os olhares, os movimentos, os sorrisos da moça, avivados pela maior contensão do espirito.

Houve uma occasião em que o mancebo quiz representar em sua lembrança a imagem da moça: naturalmente começou interrogando sua memoria á respeito dos traços principaes. Como era ella? Alta ou baixa, torneada ou esbelta, loura ou morena? Que côr tinhão seus olhos?

A nenhuma dessas interrogações satisfez a memoria; porque não recebêra a impressão particular de cada um dos traços da moça. Não obstante, a apparição encantadora resurgia dentro de sua alma; elle a revia tal como se desenhára a seus olhos algumas horas antes. Era a imagem diaphana de um sonho que tomara vulto gracioso de mulher.

— Não me lembro de seus traços, não posso lembrar-me!... murmurava no intimo. Eu a contemplei, como se contempla uma luz brilhante: ve-se a chamma, o esplendor; e nem se repara no espectro que a flamma envolve como uma roupagem. Ella é minha luz; não sei a côr e a fórma que tem, mas sei que scintilla, que me deslumbra; que innunda meu ser de uma aurora celeste. Não poderia descreve-la, como um poeta... Mas que importa? Pois que eu a sinto em mim; pois que eu a possuo em meu coração?

As palpebras do mancebo cerrarão-se coando apenas uma restea de olhar, que se embebia nas alvas espiras da fumaça do charuto. Percebia-se que naquelia nevoa se debuxava á sua imaginação a seductora imagem, deante da qual elle cahia em extases de uma doçura ineffavel.

— Quem sabe? Talvez não seja ella o que nos bailes se chama uma moça bonita; talvez não tenha as feições lindas e o talhe elegante. Mas eu a amo!... O amor é sol do coração; imprime-lhe o brilho e o matiz! Venus, a deosa da formosura , surgindo da espuma das ondas, não é outra cousa senão o mytho da mulher amada, surgindo d’entre as puras illusões do coração! O que eu admiro nella, o que me enleva, é sua belleza celeste; é o anjo que transparece atravez do envolucro terrestre; é a alma pura e immaculada que se derrama de seus labios em sorrisos, e a envolve como a scintillação de uma estrella.

Leopoldo já não estava só na existencia; tinha para acompanha-lo na esperança essa doce apparição; como para partilhar a saudade tinha a memoria querida de sua irmã. O coração aproximou as duas imagens; ligou-as por algum vinculo misterioso; e creou assim uma familia ideal, em cujo seio viveu para o futuro, como para o passado.

Nas horas do trabalho, o moço absorvia-se completamente nas occupações habituães e cerrava sua alma para não deixar que as miserias do mundo ahi penetrando profanassem o templo de sua adoração; o templo da esperança e da saudade. Fora dessas longas horas, encerrava-se naquelle asylo e ahi vivia.

Alguns dias depois do encontro da rua da Quitanda, o Castro percorrendo distrahidamente os jornaes da manha, deu com os olhos sobre os annuncios de espectaculo, cousa que desde muito tempo não existia para elle. Representava-se no theatro lyrico a Lucia de Lamermoor, o mais sublime poema de melancolia, que já se escreveu na lingua dos anjos.

O mancebo teve um desejo irresistivel de ir aquella noite ao espectaculo, apezar de conservar ainda o luto pesado. Não comprehendia esse capricho de seu coração; attribuiu ao encanto das reminiscencias daquella musica tão triste, e tambem daquelle amor tão estremecido, que os homens quizeram romper, mas a fatalidade uniu para sempre no tumulo. Elle ia saturar-se de tristeza; não havia, portanto, profanação de uma dôr santa.

Eram perto de dez horas: cantava-se o final do segundo acto da opera, e Leopoldo, sentado em uma cadeira, do lado direito, estava completamente absorvido no canto magistral de Lagrange e Mirate. Um momento, porém, ergueu os olhos, e volvendo-os lentamente, fitou-os em um camarote da segunda ordem. Estremeceu; o olhar morno e baço que se escapava de sua pupilla illuminou-se de fogos sombrios e ardentes.

Vira a mulher amada.

Amelia estava nessa noite em uma de suas horas de inspiração; a mulher bella tem, como o homem de intelligencia, em certos momentos, influições energicas de poesia; nessas occasiões ambos irradiam; a mulher fica esplendida, o homem sublime.

O talhe esbelto da moça desenhava-se através da nivea transparencia de um lindo vestido de tarlatana com laivos escarlates. Coroava-lhe a fronte o diadema de suas belas tranças, donde resvalavam dois cachos soberbos, que brincavam sobre o collo. Os cabelleireiros chamam esses cachos de arrependimentos, repentirs. Por que motivo? A alma que se arrepende convolve-se daquella fórma; o pezar a confrange. Já se vê que os cabeleireiros tambem são poetas.

Não foi, porém, o suave perfil da moça, nem os contornos macios de suas fórmas gentis, o que arrebatou o espírito do mancebo. Elle só viu a luz, o brilho d’alma, rarejando do sorriso. Contemplava a rosa, embebia-se nella, sem contar-lhe as petalas.

Amelia, que apoiava o lindo braço sobre a almofada de velludo da ballaustrada, prestava attenção á scena, recolhendo ás vezes à vista para discorrel-a vagamente pelos camarotes fronteiros. Depois que o panno cahiu, conservou-se na mesma posição, conversando com sua mãi e Laura que ali estava de visita. Então voltou rapidamente o rosto, e deixou cahir sobre a platéa um olhar subito e vivo. Foi uma centelha electrica, listrando no espaço, para logo apagar-se.

Revelou-se no semblante da moça alguma inquietação e visivel incommodo. Quiz disfarçar, mas afinal ergueu-se, para occultar-se no interior do camarote, por detrás de Laura, a qual occupava o outro logar da frente.

O olhar que deitára á platéa encontrou o olhar profundo e ardente de Leopoldo; e batendo de encontro a esse raio brilhante, reagiu como estylete para feril-a no coração.

Leopoldo notou vagamente esse movimento; mas como entre a columna e o busto de Laura elle via a sombra da mulher a quem amava, não se interrompeu seu enlevo. De vez emquando passava-lhe pelo rosto um lampejo subtil, no qual presentia o olhar furtivo da moça.