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A Pata da Gazela/V

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Estava a subir o panno.

Amelia resolvêra ficar onde estava, e não tomar o logar da frente, apezar de Laura ter voltado a seu camarote. Mas essa resolução, tão solidamente calcada em seu coração, cahiu de repente: bastou um olhar. Vira na platéa, encostado á balaustrada da orchestra, um elegante cavalheiro.

Era Horacio.

O sorriso brando que manava dos labios da moça, como a onda pura e christalina de um ribeiro, desappareceu então sob outro sorriso mais brilhante, que borbulhava como a frol da cascata. Era o sorriso da vaidade, como o outro era da innocencia.

A moça collocou-se na frente, fazendo realçar com a graça de seus movimentos a suprema elegancia do talhe. Demorou-se mais do que era, preciso nesse acto; e sentando-se, houve em seu corpo um impulso quasi imperceptivel de mysteriosa expansão. Dir-se-hia que ella se queria debuxar no quadro illuminado do camarote.

A causa desse elance não o adivinham? O leão tinha assestado seu binoculo de marfim; e a moça com um irresistivel assomo de faceirice abandonava-se ao olhar do mancebo.

Durante o acto, Amelia distrahiu mais a attenção do semblante pallido de Leopoldo. Enleiava os olhos na figura elegante de Horacio; prendia-se ao fino buço negro que sombreava o labio desdenhoso do leão; embebia-se toda na graça de sua attitude: tentando assim resistir a curiosidade incommoda que attrahia sua attenção para o importuno desconhecido.

Não sei porque, Leopoldo, cuja adoração era infatigavel como a emanação de uma chamma perenne sentiu naquella occasião a necessidade de dar um repouso a sua contemplação. Então como si a luz que o deslumbrava se fosse tornando mais doce, elle pôde vêr destacar-se o perfil gracioso da moça.

— Tem o cabello castanho! É pena! Acreditava que a mulher a quem amasse algum dia, havia de ser loura. É a côr do reflexo da luz, deve ser a côr desse véo casto que Deus fez para o pudôr. A madeixa foi dada á mulher para recatar a face que enrubece e o seio que palpita; essa gaza preciosa deve ser de ouro, ou antes de graça e esplendor.

O moço já não olhava para Amelia; com as palpebras cerradas estava agora vendo-a na penumbra d’alma.

— Mas para mim é indifferente que tenha o cabello castanho; podia: têl-o negro como a treva. Eu a amo, amo sua alma, sua essencia pura e immaculada! Si Deus me enviou um anjo para consolar-me em minha affliccão; para amparar-me em meu isolamento; para encher de ineffaveis jubilos meu ser saturado de amarguras; posso eu qiueixar-me porque o Senhor o vestiu de uma simples tunica de lã, e não de um sumptuoso manto de ouro? Eu gostava dos cabellos louros: pois agora só gosto, só quero, só vejo uns cabellos castanhos, porque pertencem a ella, s’impregnam de seu perfume, e respiram seu halito!

Terminára o acto. Leopoldo, contemplando a moça, pela primeira vez lembrou-se de saber quem era, na sociedade, aquella mulher que lhe pertencia pelo pensamento. Tinha-se habituado a consideral-a como uma cousa sua; parecia-lhe que ninguem mais existia sinão elles dois.

Volveu os olhos em busca de algum conhecido, a quem dirigisse a pergunta. Não encontrou: mas ao cabo de alguns instantes descobriu o leão em seu posto.

— Ah! Já está Horacio, que póde me informar. Elle conhece todo o mundo! Justamente agora pôz o binoculo para o camarote.

Como desejava sahir, dirigiu-se para aquelle lado; mas o leão, inquieto e preoccupado, sahira açodadamente, e subia de um pulo as escadas que o separavam da segunda ordem.

— Aquella mão é irmã do meu adorado pesinho! Não tem a graça delle, sem duvida, nem se compara com aquelle mimo de amor; mas ha um certo ar de familia, um quer que seja !...

Assim cogitando, Horacio chegára à porta de um camarote, e pela fresta fitára com disfarce o olhar em Laura, cuja mão, excessivamente pequena, e calçada por uma luva muito justa, custava a segurar o binoculo de madreperola.

O moço, apenas reconheceu o vestido de seda violeta, e a mãosinha que lhe servira de phanal, abaixou o olhar para a fimbria do vestido a vêr si descobria alguma cousa, o peito, a pônta, a sombra, ao menos, do pesinho mimoso, do idolo de sua alma. Mas não foi possível: o vestido arrastava no chão; nenhum movimento fazia ondular a seda; e comtudo o mancebo ali ficou immovel, palpitante de emoção, como si esperasse dos labios da mulher amada o monosyllabo que devia dicidir de seu destino.

A paixão que o mancebo concebêra pela dona incognita da botina achada, longe de-se desvanecer, adquirira uma vehemencia extrema. Horacio, o feliz conquistador, o coração fogoso e inflammavel, nunca ardêra por mulher alguma, como agora ardia, por aquelle pesinho idolatrado. Era um verdadeiro amor de leão, terrivel e indomito; era um delirio; uma raiva.

Seus amigos já não o reconheciam; elle apparecia nos bailes, nos theatros, nos pontos de reunião, de relance, como um meteoro, seguindo após uma idéa fixa, ou uma sombra que fugia diante de seus passos. Conversou-se muito na rua do Ouvidor á este respeito. Uns attribuiam o facto inaudito á primeira derrota.

— Horacio, dizia um de seus amigos, como Napoleão, só devia ser derrotado uma vez. Mas essa vez foi Waterloo!

— Que pensa então?

— Que o pobre rapaz caminha para o seu rochedo de Santa Helena. Ou casa ahi com alguma mulher feia e rica, ou engorda como um cevado.

Outros lembravam-se de algum desarranjo de fortuna, ou de alguma velleidade politica, para explicar o mysterio. Mas sabia-se que o moço tinha bom e seguro rendimento; e quanto á politica, elle a comparava a uma embriaguez causada pela mais ordinaria zurrapa de taberna.

Muitas vezes disse, gracejando, a seus amigos:

— Quando me quizer embriagar, em vez de zurrapa, beberei champanhe. É mais fino, e tambem mais barato, porque não deixa uma irritação de estomago, cujo preço é muito superior ao de uma caixa de superior clicquot.

A causa real da mudança do leão ninguem, pois, a sabia, nem a suspeitava.

Depois da achada da botina, sua vida tomára um aspecto muito diferente. Naquella mesma tarde em que o deixamos na sua casa de Botafogo, terminado o jantar, mandou apromptar o tilbury e voltou á cidade. Seu apparecimento áquella hora na rua do Ouvidor causou extranheza; um leão de raça, como elle, não passeia ao escurecer, sobretudo no centro do commercio, onde só ficam os que trabalham. Seria misturar-se com os leopardos que aproveitam a ausencia dos reis da moda, para restolhar alguma caça retardada.

Correu Horacio todas as lojas de calçado á procura de informações. Para disfarçar sua paixão, inventou uma aposta, como pretexto à sua curiosidade. A um freguez como elle não se recusava tão pequeno favor, sobretudo quando levava o sainete de uma anecdota de bom tom. A todos elles o leão se dirigia mais ou menos nestes termos:

— Fiz uma aposta com uma senhora. Que em todo o Rio de Janeiro não se encontram tres moças de 18 annos que calcem n. 29. Tenho todo o empenho em ganhar a aposta, não tanto pelos botões de punho, como porque, si ella perder, ha de ser obrigada a mostrar-me seu pé, para eu verificar si é realmente desse tamanho. Peço-lhe, pois, que me dê uma nota das freguezas a quem costuma vender calçado deste numero.

Nesta pesquiza gastou Horacio muitos dias, sem colher o menor resultado. Os poucos pares de calçado n. 29, vendidos pelas diferentes lojas, eram destinados á meninas de doze annos ou a pessoas desconhecidas, cuja idade se ignorava. Apezar de tudo o leão não desanimava; todas as manhãs, ao acordar, levantava um plano de campanha, que punha em pratica durante o dia.

Horacio sentira-se de repente tomado de indefinivel ternura por uma classe, de que antes só lembrava-se para amaldiçoal-a: a classe dos sapateiros. Quando via um sujeito de avental de couro e sovella, o leão sentia-se attrahido para aquelle individuo, que talvez encerrasse o segredo, de sua felicidade, seu futuro, sua existencia. Outras vezes, porém, tinha de repente uns accessos de ciume selvagem. Lembrando-se que esse operario talvez já houvesse tomado medida ao adorado pésinho; que essas mãos calosas teriam tocado a cutis assetinada do anjo de seus pensamentos; o mancebo sentia em si o furor de Othello e procurava um punhal no seio; felizmente só achava a carteira, a adaga de ouro com que neste seculo se assassina mais cruelmente.

Depois de consumir as horas em suas indagações, ia contemplar o botina, prenda querida de seu amor e proseguia á noite sua porfia incansavel. Corria os espectaculos e bailes, com o olhar rastejando para descobrir por baixo da orla do vestido, o ignoto deus de suas adorações. Não dansava para observar melhor o arregaçado dos vestidos; de ordinario andava pelas escadas e portas, afim de aproveitar o ensejo da subida e descida; muitas vezes ia fumar junto ao logar onde se collocavam os lacaios, na esperança de conhecer o portador da botina.

Quando as rainhas da moda, as deusas do salão, sorprezas e attonitas o viam passar sem distinguil-as com uma palavra ou uma fineza, elle, atirando-lhes um olhar de compaixão, dizia comsigo:

— Coitadas ! não sabem que o leão viu a pata da gazella e fareja-lhe o rastro. Que lhe importam as garras da panthera?...

Recolhendo, Horacio accendia duas velas transparentes e collocava-as a um e outro lado da almofada de velludo escarlate, sobre uma mesinha de charão, embutido de madreperolas. Tirava de um elegante cofre de platina a mimosa botina, e com respeitosa delicadeza deitava-a sobre a almofada, de modo que se visse perfeitamente a graciosa fórma do pé que habitara aquelle ninho de amor.

Então accendia o charuto, sentava-se n’uma cadeira de espreguiçar, defronte, porém, distante, para que o fumo não se empregnasse na botina, e ficava em muda e arrebatada contemplação até alta noite.

Sobre aquella botina via elevar-se como sobre um pedestal, um vulto de estatua, mas vago, indistincto; e comtudo esse esboço sem fórmas seductoras, aquella sombra sem alma e sem calôr lhe parecia de uma belleza deslumbrante. Não era ella a mulher a que pertencia o mais formoso pé do mundo, o mimo, a obra prima da natureza?

Recordava-se das mulheres mais bonitas que tinha visto, das mais lindas senhoras a quem amára com paixão, e sua memoria as trazia todas, uma após outra, para as collocar ao lado daquella figura vaga e desvanecida, que plainava sobre a almofada, como sobre uma nuvem de ouro. Como ellas fugiam abatidas e humilhadas diante de seu impetuoso desdêm!

— Não são dignas, murmurava elle, nem de beijarem o chão pisado pela fada desta botina!

Eis qual tinha sido a vida de Horacio até o momento em que o vamos encontrar no mesmo logar defronte da porta entreaberta do camarote. Laura percebeu-o afinal, e sorriu-lhe com ternura. A attenção do rei da moda era uma fineza, um ar de seu real agrado; cumpria-lhe agradecer.

Fitando com mais força o olhar na pupilla da moça como para travar-lhe da vontade, Horacio abaixou lentamente esse olhar até a fimbria do vestido de chamalote com uma insistencia significativa. Laura fez-se escarlate; e a porta do camarote, rapidamente fechada, a subtrahiu ás vistas ardentes do leão.

— É ella! exclamou o coração do mancebo afogado em jubilo. Não ha duvida. Para sentir esse pudor exagerado e incomprehensivel é preciso ter ali occulto um pé como aquelle que eu sonhei. Um pé?... Não; um mimo, uma maravilha, um thesouro, um céo!... É o pudor da violeta, que se esconde na sombra; é o pudor da perola, occulta na concha; é o pudor do diamante, sumido no seio da terra; é o pudor da estrella, immergindo-se no azul.

O leão desceu as escadas murmurando:

— Vêl-o e morrer.

Pouco depois terminou o espectaculo. Amelia com um resaibo de melancholia na fronte, embuçou-se na pellissa e desceu. Ella perdêra de vista Horacio e só o tornára a vêr parado em frente à porta do camarote de Laura. Desamparada pelo encanto do gentil mancebo, soffrêra todo o resto do espectaculo o desassocêgo que lhe incutia o olhar de Leopoldo. Por mais que voltasse o rosto sentia a phosphorecencia estranha desse olhar repulsivo, que entretanto a prendia, máo grado seu.

Leopoldo esperava no corredor da entrada a passagem da moça, quando avistou a seu lado Horacio. O leão soffrego e impaciente, volvia o olhar em varias direcções; naturalmente procurava alguem, e receiava que lhe escapasse.

— Adeus, Horacio.

— Boa noite, Leopoldo.

Amelia appareceu nesse momento.

— Conheces aquella moça, Horacio?

— Qual?... Espera!

Horacio tinha avistado Laura, que descia o lanço da escada opposta, e corrêra pressuroso, com os olhos fitos na fimbria de sêda. Seu olhar tinha tal força que parecia um croque a levantar a orla do vestido. Debalde; nem a sombra do pé: o encorpado estôfo arrastava pesadamente pelo chão.

Chegou a moça à porta, onde o carro a esperava. Horacio teve um vislumbre de esperança; porém nova decepção o esperava. Não viu mais do que uma nuvem de sêdas ondular e sumir-se.

O leão fez um movimento de desespero.

— Senhor! porque em vez de homem, não me fizeste estribo de um carro! Teria a felicidade de ser pisado por aquelle pesinho.