A Pata da Gazela/VII
A esse tempo Horácio, sentado em uma poltrona na casa de Bernardo, fumava o seu conchita, com o olhar, ora na calçada, ora no espelho fronteiro, à espreita do menor vulto de mulher.
O leão pensava:
— Choveu; as ruas ainda estão molhadas. Qual é a senhora que tendo um pé mimoso e uma perna bonita, não aproveita um destes dias para atravessar a Rua do Ouvidor? Se deixarem escapar estes pretextos de mostrar semelhantes maravilhas, morrerão elas desconhecidas, apenas vistas por um dono avaro, mas nunca admiradas, porque a admiração é sentimento que precisa da luz plena, da grande expansão. Se a Vênus de Praxíteles existisse, mas só para mim, palavra de honra que sua beleza não excitaria em minha alma o menor entusiasmo.
Nessa ocasião Amélia passava diante da loja, e voltando-se recebeu a cortesia do leão, a quem respondeu com um sorriso amável. Parando na vidraça, achou ela pretexto para entrar, e comprou uma galanteria Durante esse tempo Horácio recebeu por diversas vezes o olhar e o sorriso da moça.
Acompanhando com a vista o passo airoso e sutil de Amélia, Horácio exclamou, dirigindo-se ao caixeiro do Bernardo:
— Que passo gracioso! É o andar da garça!
Estas palavras foram ditas em voz bastante alta, para que a moça ouvisse; um ligeiro estremecimento que se notou na suave ondulação do talhe revelou que o leão lograra seu desejo. A moça ouvira com efeito a fineza.
Recostado de novo na poltrona o leão continuou a pensar:
— Realmente, que elegância no andar! Eu seria capaz de apostar que esse andar era do pezinho, do meu adorado pezinho, se já não tivesse descoberto a dona do primor. Mas Laura não vem!... O criado me disse que ao meio-dia, e é quase uma hora! Terá mudado de resolução?... Não duvido, com aquele zelo feroz que tem por sua jóia, talvez não quisesse vir para não ser obrigada a mostrá-la. Um avaro não fecha com mais cuidado a burra, do que ela esconde seu tesouro. Que pecado! Subtrair ao mundo essa maravilha que Deus fez para ser admirada! Ah! eu desejava ser uma nação; assim como há demônios-legiões, por que não pode haver homens-povos? Se o fosse, daria um trono a essa mulher, somente para que ela instituísse o beija-pé. Como eu seria cortesão! Como eu a beijaria por minhas cem bocas de súdito!
O mancebo sobressaltou-se; vira uma sombra que assomava no espelho fronteiro. Era Laura. Que devia fazer? Correr à porta para ser visto pela moça ou deixar-se ficar na poltrona para melhor descobrir o pé adorado?
A atitude do leão revelava a hesitação de seu espírito; com o corpo lançado à frente parecia fazer um esforço para se conservar sentado. Laura, que de seu lado já o tinha avistado no espelho, ficara em um estado de perturbação indizível.
— Que tem, prima? perguntou-lhe um senhor que a acompanhava.
— Nada! balbuciou a moça.
A princípio Laura fizera um movimento para recuar, mas arrependendo-se avançou com afoiteza, e passou rapidamente pela frente da loja, sem volver um olhar para dentro. Por mais que o leão se derreasse na poltrona, não logrou ver coisa alguma; a senhora arrastava a fímbria do vestido pela calçada coberta de lama, com o mesmo descuido que teria se caminhasse sobre rico tapete.
— Está zangada comigo; está furiosa! Desde a noite do teatro que não me pode ver; e parece que preparou-se para o assalto, porque achei as avenidas da praça já tomadas e vigorosamente defendidas. A mucama é uma Górgona, o porteiro um Cérbero; apenas consegui abrandar o moleque, porque é um idiota!... Nunca vi uma ferocidade igual; creio que a leoa da floresta não defende seu cachorrinho com sanha igual à desta leoa de sala. Parece incrível; mas eu conheço de quanto é capaz a vaidade da mulher. Todo este furor não é mais do que um assomo de faceirice; percebeu que estou apaixonado pelo pezinho mimoso, e quer-me trazer atado como um cativo ao seu carro de triunfo. Realmente uma moça bonita não pode ter maior satisfação: ver-me a mim, Horácio de Almeida, o primeiro conquistador do Rio de Janeiro, curvar-se humilde, não a seu olhar, a seu sorriso, à beleza de seu rosto, ou à graça de seu talhe, mas à planta de seus pés divinos! Fazer-me tapete de seus passos!... Que pode mais desejar a rainha dos salões fluminenses?
O moço mordeu a ponta do bigode negro e ficou alguns instantes muito pensativo.
— É preciso mudar o plano de ataque! Comecei à maneira de César, atacando com impetuosidade. Vou contemporizar conforme a escola de Fábio; simulo uma retirada; o inimigo avança, eu o envolvo; corto-lhe a retirada, e ele rende-se. Arraso o Humaitá daquele vestido que defende o meu pezinho adorado como uma casamata. A indiferença é a serpente tentadora da mulher.
Em conseqüência destas reflexões, Horácio deixou-se ficar onde estava, e não seguiu a moça. Quando supôs que ela já ia distante, foi procurar algures, em um bilhar, o preservativo contra a tentação de cortejá-la, ou antes o seu pezinho.
— Ela há de reparar no meu eclipse! murmurou com certa confiança.
Entretanto Laura, descendo a Rua do Ouvidor, encontrara pouco adiante, na casa do Masset, Amélia em companhia da mãe. As duas amigas não podendo vir juntas, tinham ajustado seu encontro para aquele ponto. O primo despediu-se, e as senhoras continuaram seu itinerário pelas diferentes lojas e casas de modas.
Ao cabo de duas ou três horas, tomaram o carro que estava parado próximo à Rua dos Ouvires e partiram na direção do Catete. A poucos passos dali, Amélia perguntou ao lacaio sentado na almofada:
— Trouxe?
— Sim, senhora; está aí dentro.
— Bem!
O carro aproximava-se do Largo da Lapa, quando Amélia disse:
— Podíamos ir agora ao Passeio Público?
— Tão tarde! replicou Laura.
— Deixa-te disso! observou a mãe da moça.
— Por quê, mamãe? Há tanto tempo que lá não vamos.
— Não há nada de novo.
— Ora, eu queria ver a garça. Ainda não a vi.
— Viste, sim!
— Mas não reparei numa coisa!...
— Em quê?
— Uma coisa. Depois direi.
Tanto insistiu que a mãe cedeu a seu capricho, e deu ordem ao cocheiro que chegasse até o portão do Passeio Público. As senhoras desapareceram na curva de uma das alamedas do parque, em direção ao lago. Amélia queria ver o andar da garça, que Horácio tinha comparado ao seu.
Nessa ocasião passava o tílburi do nosso leão, que vinha do lado da Ajuda. Um atropelo, produzido por uma gôndola mal conduzida, ia atirando o tílburi sobre o carro parado no portão do Passeio Público. Este incidente chamou a atenção do moço para o cocheiro, que derreado sobre a almofada não se movera.
A memória apresenta às vezes um fenômeno curioso; conserva por muito tempo oculta e sopitada uma impressão de que não temos a menor consciência. De repente, porém, uma circunstância qualquer evoca essa reminiscência apagada; e ela ressurge com vigor e fidelidade.
Foi o que sucedeu a Horácio. Minutos antes, por maiores esforços que fizesse para recordar-se da libré do lacaio, portador da botina perdida, não o conseguiria decerto. Entretanto bastou-lhe ver a roupa do cocheiro, para acudir-lhe imediatamente ao espírito a imagem desvanecida. Era esse o carro, que vira quinze dias antes na Rua da Quitanda; não havia dúvida.
O leão mandou parar o tílburi e entrou no Passeio Público; depois de percorrer inutilmente várias alamedas, afinal descobriu entre as árvores, além do lago, as ondulações dos vestidos de algumas senhoras acompanhadas por um lacaio, e tomou apressadamente aquela direção.
O terreno estava úmido da chuva da manhã; e por isso o pé dos passeadores deixava o rasto impresso na branca e fina areia das alamedas. Notando esta circunstância, Horácio procurou o vestígio de alguma botina irmã da que achara, e guardava como uma relíquia; ficou ébrio de contentamento reconhecendo entre muitas pegadas o leve debuxo que deixara no chão o mimoso pezinho.
Se não fosse o anelo de alcançar as senhoras e reconhecer a dona incógnita do tesouro, Horácio se houvera ajoelhado a beijar o rasto da fada de seus amores; mas as senhoras caminhavam rapidamente para o portão.
Por mais que se apressasse o leão, chegando à saída, apenas viu o carro que partia. Felizmente adiantando-se pôde reconhecer Amélia, que lhe sorriu e inclinou-se para acompanhá-lo com os olhos.
— E ela! Que pateta sou eu! Devia ter adivinhado. Há pouco, vendo-a passar pela Rua do Ouvidor, tive um pressentimento! Aquele andar cheio de graça não podia enganar.
No dia. seguinte o leão fez-se apresentar ao pai de Amélia, abastado consignatário de café, estabelecido à Rua Direita. O encontro deu-se na Praça do Comércio. Horácio aí foi a pretexto de comprar apólices; e um amigo, corretor de fundos, prestou-lhe aquele serviço. O negociante ofereceu a casa ao moço que aceitou a fineza com efusão de contentamento.
O Sr. Pereira Sales habitava nas Laranjeiras uma bela chácara. Amélia era filha única, e seu dote, convertido em cem apólices, só esperava o noivo. Quanto à mulher, tinha uma boa pensão instituída no montepio geral. Seguro assim o futuro, vivia o negociante com certa largueza, economizando pouco ou nada de seus lucros anuais.
Quando Horácio teve conhecimento destas particularidades domésticas, sorriu.
— Bem! O meu pezinho tem um dote para seu calçado. Pode andar com luxo!
A primeira vez que Horácio visitou a família de Pereira Sales, encontrou Laura na sala; a moça fora passar a noite com a amiga, e conversava jovialmente. Apenas viu o leão, demudou-se; e instantes depois, inventou um pretexto para retirar-se, apesar das instâncias de Amélia.
Horácio pouca ou nenhuma atenção deu à mudança que se tinha operado em Laura, em sua retirada repentina. Desde que a moça não era a dona feliz do mais lindo pé do mundo, tornava-se para ele uma criatura indiferente; tanto mais quanto sua alma estava ali de rojo beijando a fímbria de seda, que lhe ocultava o tão ansiado tesouro.
Em Amélia, várias impressões produziu a apresentação do moço. No primeiro momento acreditou que o leão viera atraído por ela; mais tarde, lembrando-se do teatro, suspeitou que fosse apenas um meio de aproximar-se de Laura; finalmente ocorreu-lhe que podia não passar de um encontro casual de seu pai, e de uma delicadeza da parte de Horácio.
Suas dúvidas porém se dissiparam poucos dias depois.
Uma noite a moça, impelida por um movimento de faceirice, soltou estas palavras, no meio de uma conversa com o leão:
— Laura está uma ingrata! Há tanto tempo que não vem passar uma noite comigo.
Ao mesmo tempo fitava os olhos no moço para ver a expressão de sua fisionomia.
— É uma fineza de sua amiga, que eu agradeço de coração, respondeu Horácio.
— Uma fineza?... perguntou Amélia pressentindo laivos de ironia.
— Quando sua amiga está aqui, a senhora sem dúvida não a deixa!
— É muito natural.
— Já vê pois que eu tenho razão. Se ela viesse...
— Eu teria ciúmes, D. Amélia,
A moça corou.
— Pois amanhã Laura há de passar a noite comigo.
Estas palavras foram ditas com o estouvamento da menina, que procura disfarçar um prazer sob a máscara da contrariedade. Mas a máscara é tão risonha, que não ilude.
— Quer-me tanto mal assim? perguntou Horácio. Não admira; uma paixão ardente e impetuosa, como eu sinto pela senhora, não devia ter outra sorte. O verdadeiro amor foi e será sempre infeliz; não há mulher que o compreenda.
Amélia com as faces a arder não sabia que fizesse; sua mão trêmula brincava com as flores de um vaso, que vacilou sobre o consolo e caiu no chão. O fracasso da porcelana, despedaçando-se, chamou a atenção das pessoas que estavam na sala; assim rompeu-se o enleio de Amélia
A moça retirou-se confusa para o interior da casa. Momentos depois entrou de novo na sala, já serena e prazenteira. Seus olhos procuraram Horácio, para oferecer-lhe o meigo sorriso que trazia nos lábios.
Esse sorriso dizia em sua eloqüência muda o seguinte:
— Se nunca a mulher soube compreender a verdadeira paixão, serei eu a primeira.
Foi esta pelo menos a tradução de Horácio, perfeito filólogo do amor, e habituado a decifrar esses hieróglifos dos lábios de mulher.