A Pata da Gazela/VIII
Não abandonemos o pobre Leopoldo à sua amarga decepção.
O moço chegara a casa mergulhado na tristeza profunda, que sobre ele derramaram os acontecimentos da manhã. Talvez a morte de Amélia não lhe causasse tamanho pesar, como o daquela cruel decepção que estava presentemente curtindo.
O aleijão excita geralmente uma invencível repugnância, repassada de terror. A aberração da forma humana abate o orgulho do bípede implume, fazendo-o descer abaixo do orangotango. Ao mesmo tempo, é ameaça viva a uma das mais caras aspirações do homem: a esperança de renascer em outra criatura, gerada de seu ser. Se a fatalidade pesar sobre a prole querida?
Imagine-se que dor era a do mancebo, quando via a deformidade surgir de repente para esmagar em seu coração a imagem da mulher amada, da virgem de seus castos sonhos?
O contraste sobretudo era terrível. Se Amélia fosse feia, o senão do pé não passara de um defeito; não quebraria a harmonia do todo. Mas Amélia era linda, e não somente linda; tinha a beleza regular, suave e pura que se pode chamar a melodia da forma. A desproporção grosseira de um membro tornava-se pois, nessa estátua perfeita, uma verdadeira monstruosidade. Era um berro no meio de uma sinfonia; era um disparate da natureza, uma superfetação do horrível no belo. Fazia lembrar os ídolos e fetiches do Oriente, onde a imaginação doentia do povo reúne em uma só imagem o símbolo dos maiores contrastes.
Nessa angústia passou Leopoldo o resto daquele dia e os que se lhe seguiram.
— Não amo a sua beleza material, oh, não! pensava o mancebo. O que eu adoro nela é a beleza moral, a alma nobre e pura, a criatura celeste, a luz, o anjo. Qualquer que fosse o invólucro de seu espírito imaculado, creio que havia de adorá-la tanto, como a adorei desde o momento em que primeiro a vi.
"Fosse ela feia para os outros, que chamam formosura o que lhes encanta os sentidos, para mim seria sempre bela, porque meus olhos haviam de vê-la através de seu esplêndido sorriso. O que é o corpo humano no fim de contas? O que é o contorno suave de um talhe elegante, e a cútis acetinada de um rosto ou de um colo mimoso? Um pouco de matéria a que a luz transmite a cor, o espírito e a vida. Tirem-lhe esses dois alentos, e verão que lodo impuro e nauseante ficam sendo aquelas formas sedutoras."
"Pois luz e espírito não eram a essência da alma de Amélia? Quando essa alma a vestia com uma túnica resplandecente, que mulher se lhe podia comparar em lindeza? Então não era somente formosa, flutuava em um éter de beleza deslumbrante."
"Mas ela não é feia, é aleijada!..."
Um soluço afogou as tristes lucubrações do mancebo. Ele repassou outra vez na mente as circunstâncias de sua triste descoberta; quis duvidar, combateu pertinazmente sua própria razão que lhe apresentava a realidade, e afinal sucumbiu, curvando-se à implacável certeza. Tinha visto uma vez, e como essa não bastasse, o acaso lhe oferecera ocasião de apalpar a verdade e saciar-se dela.
— Não se admira a Vênus de Milo, uma estátua mutilada? dizia o mancebo relutando contra sua viva repugnância. Não se admira o primor da arte grega, apesar de não restar dela mais do que uma cabeça e um torso de mulher? Essa beleza truncada não vale a beleza aleijada? A mutilação não repugna tanto ou mais do que a deformidade?
A razão de Leopoldo não o deixava embalar-se muito tempo nesse pensamento consolador Replicava logo, refutando vigorosamente as argúcias do coração:
— A estátua mutilada, que excita a admiração do mundo, não é a cópia integral da beleza que lhe servia de tipo, mas um fragmento apenas dessa cópia. A alma, que se extasia na contemplação desse fragmento, recompõe o ideal do artista. Admira-se a Vênus de Milo, como se admira um esboço não acabado de Rafael; como se admira a pétala de uma rosa, arrancada da corola. Mas, fosse embora aquele primor de estatuária a reprodução exata de uma mulher, a mutilação respeita a beleza; o aleijão a deturpa. Se a mulher que se ama perdesse um pé, seria desgraçada; com um pé monstruoso, é mais do que desgraçada, é repulsiva.
Leopoldo deixava-se convencer por estas sugestões:
— Infelizmente assim é. Mas por que há de ser assim? A mutilação é um fato humano; o aleijão é um fato natural. Essa aberração do princípio criador, esse desvio da forma primitiva, indicam sem dúvida um vício na essência do organismo. Não se tem verificado que nos corpos mal conformados de nascença habita sempre uma alma enferma? Nos corcundas sobretudo, porque a espinha dorsal é o tronco da inteligência. A deformidade de um membro, de um ramo apenas, não denota eiva tão profunda do espírito, é certo, mas revela que a alma não é nobre e superior. Não se concebe o anjo dentro de um aleijão.
O resultado destas cogitações era a gota de fel espremido, que ia filtrando a pouco e pouco no coração e acabaria por saturar todas as doces reminiscências dos últimos dias. Leopoldo convenceu-se que não devia amar a desconhecida; mas, ao contrário, arrancar de sua alma os germes da paixão nascente.
Tomando esta.resolução, o moço, que vivia muito retirado depois de suas desgraças de família, esteve a lembrar-se de algumas antigas relações. Veio-lhe o desejo de cultivá-las de novo. Um instinto lhe dizia que para gastar as primícias de um coração virgem, não há como o atrito do mundo.
Entre as casas que outrora freqüentava, escolheu para a primeira noite a de D. Clementina, amiga íntima de sua irmã. Era uma senhora já no declínio da idade e da formosura; gostava muito de dançar, e por isso reunia constantemente em sua sala as moças de sua amizade. Logo que se achavam presentes quatro pares, a dona da casa dava o sinal, o marido arredava a mesa do centro, o filho, menino de quinze anos, sentava-se ao piano e...
— Chassé-croisé! gritava D. Clementina.
Nesta casa Leopoldo tinha certeza, não só de ser bem recebido, como de encontrar bastante arruído para aturdir-se e abafar uns gemidos que sentia às vezes repercutirem no coração. Tinham decorrido cinco dias depois da decepção; às oito horas da noite entrou o moço na sala de D. Clementina, que o recebeu com surpresa cheia de amabilidades.
Além de estimado, acontecia que ele era justamente o quarto par. Tirado o dono da casa, o Sr. Campos, o filho Alfredo, e três velhas, inválidas da dança, havia na sala cinco senhoras para dois cavalheiros; servindo uma senhora de cavalheiro, ainda faltava metade de um par.
Quando a campainha anunciou mais uma visita, D. Clementina de olhos fitos na porta da sala, dispôs-se a receber o recém-chegado com o seu mais afável sorriso. Vendo Leopoldo, correu a ele, e desfolhando-lhe um ramalhete de amabilidades, trançou-lhe o braço; antes que o moço tomasse pé na sala, era arrebatado pela quadrilha, a compasso de galope.
Realmente ele não podia escolher melhor. A agitação daquela dança rápida, sem pausa; a confusão que os pares criavam de propósito para aumentar a animação; os risos e gracejos que provocavam os menores incidentes da quadrilha; todo esse rumor e atropelo tinham por tal forma sacudido o espírito de Leopoldo, que as idéias e recordações tristes lhe caíram, como as folhas secas de uma árvore, abalada pelo vento rijo do outono.
Sentiu o coração vazio, porém tranqüilo; o prazer vivo e cintilante daquela reunião, apenas roçava-lhe pela superfície; não penetrava, mas também já não transudavam-lhe do íntimo as amarguras de que nos últimos dias se tinha saturado.
De repente operou-se na perspectiva da sala uma transformação inesperada. Amélia entrara; e sua graça difundiu-se com um influxo celeste, no meneio de seu talhe elegante, na suavidade de sua voz, na irradiação de seus olhares.
Leopoldo embebeu-se naquela suave aparição, como da primeira vez que a vira, mas para percorrer em um ápice, as fases de seu amor, e cair de novo na esmagadora decepção.
De repente aquela estátua luminosa escureceu a seus olhos deixando apenas um resíduo negro: esqueleto calcinado que arrastava uma deformidade. Debalde Amélia se ostentava no fulgor de sua beleza, toucada pelos primeiros arrebóis do amor; debalde as ondulações de seu corpo debuxavam formas encantadoras, e o sorriso de seus lábios destilava uma fragrância mística de beijos puros; os olhos de Leopoldo não viam nenhum desses encantos. Através dos folhos do vestido roçagante, sua vista fitava-se implacável no pé monstruoso que lhe esmagava o coração como a pata grosseira de um animal.
Todos os encantos dessa criatura, ele os despia de seu manto sedutor e dissecava-os com frio rancor. A inflexão voluptuosa do talhe provinha da resistência que opunha ao andar o enorme pé; o passo ligeiro era um esforço supremo para disfarçar o aleijão, o sorriso gracioso um enleio para prender os olhos estranhos, não permitindo que eles se abaixassem até à fímbria do vestido.
E por isso mesmo o olhar de Leopoldo, olhar frio, cruel, inexorável, se tinha cravado na orla da saia elegante, donde não havia forças para arrancá-lo.
Amélia sentiu esse olhar cruciante e estremeceu, tomada de um vago terror. Imediatamente sentou-se, e arranjando as dobras do vestido, procurou disfarçar; mas em vão: o olhar do moço continuava fito no mesmo ponto e produzia nela uma sensação incômoda.
— É D. Amélia, filha de um negociante, chamado Sales. Não conhece?
Estas palavras foram dirigidas a Leopoldo por D. Clementina, que sentando-se a seu lado, acompanhou-lhe o olhar fito.
— Não, minha senhora.
— Então vou apresentá-lo.
— Obrigado, D. Clementina; depois.
— Não acha muito galante?
Leopoldo hesitou:
— Oh! muito! . . .
Viera-lhe nessa ocasião o mesmo ímpeto que sentem de ordinário os amantes em igual situação: o de criticar e desmerecer nas prendas da mulher que os faz sofrer. É uma reação natural do coração; Leopoldo, porém, julgou indigno de si tal procedimento; tinha o direito de afastarse, de fugir com horror dessa mulher, mas não o de ofendê-la. A culpa de amá-la era sua, e não dela.
Aproveitou um momento de distração da dona da casa, para tomar o chapéu e esquivar-se sem que o percebessem.
Amélia, porém, o viu; seus olhos ficaram por algum tempo presos na porta por onde acabava o moço de sair. Quando, passado um instante, caiu em si, ficou surpreendida. Que tinha ela com aquele desconhecido?
Ao chegar, vendo o rosto pálido e os olhos profundos, que tão desagradável impressão haviam deixado em seu espírito, a moça havia sentido um mal-estar íntimo. Vinha com a alma cheia das primeiras delícias de um amor nascente; com as doces emoções da declaração de Horácio. A presença de Leopoldo foi um travo.
Mas também para que viera? Por que não ficara em sua casa esperando Horácio?
Vão lá sondar o coração feminino. Agora que sabia-se amada, a moça queria gozar de seu triunfo, e ver humilde e abatido a seus pés o rei da moda, o soberbo leão. O meio era fazer-se ardentemente desejada, tornar-se difícil e esquiva, embora lhe custasse o sacrifício dos momentos agradáveis que podia passar junto de Horácio.
A presença de Leopoldo em casa de D. Clementina a incomodara, e entretanto seu olhar parecia agora sentir a ausência do mancebo.
A princípio havia ali uma pessoa demais; agora faltava alguma coisa. Se não era um homem, era uma curiosidade, uma emoção.
— Amélia!
A moça voltou-se para ouvir D. Clementina que a chamava.
— Quero apresentar-lhe um moço, que a acha muito bonita.
Dizendo estas palavras, a dona da casa corria os olhos pela sala à busca de alguém.
— Não o vejo agora.
— Quem é?
— O Castro... Conhece?...
— Não, senhora.
— Querem ver que já se retirou?
Amélia pôde reter o monossílabo que ia cair-lhe do lábio, confirmando a suposição da dona da casa. Tinha adivinhado que se tratava do seu desconhecido.
— Então ele me acha bonita?
— O Castro?... Muito. Creio que ficou apaixonado! Se visse os olhos que lhe deitava quando a senhora chegou!
— Então foi de paixão que ele fugiu?
— Quem sabe? A paixão é como o vinho que em uns dá para rir, e em outros para chorar. Há namorados que perseguem, e outros que fogem!
Amélia julgou prudente desviar a conversa daquele assunto escabroso, no qual D. Clementina se comprazia, porque lhe recordava sua mocidade já desvanecida.