A Pata da Gazela/X
Pela manhã se dissiparam essas névoas que no espírito de Amélia deixara a noite antecedente.
Era domingo. A moça, envolta em seu roupão alvo, com os cabelos soltos pelas espáduas, encostou o rosto à vidraça da janela. Afastando a cortina de cassa branca, podia enxergar perfeitamente a rua, sem que de fora vissem o seu gracioso desalinho.
Não tardou que se ouvisse um tropel de cavalo. Era o leão que ia dar seu passeio matutino. Vendo agitar-se a cortina, e desenhar-se no vidro a ponta de uns dedos cor-de-rosa, Horácio cortejou enviando um sorriso à janela.
À noite o moço dirigiu-se à casa do Sales; Amélia o esperava. A sala estava cheia de visitas. Entrando, o olhar de Horácio encontrou um olhar terno que o saudava de longe.
Mas o sorriso se desfez com a perturbação que de repente sentiu a moça. A vista do leão tinha descido até o tapete, e se fixara com uma insistência visível na fímbria do vestido, ligeiramente arregaçada. Horácio julgou que pudesse lobrigar a ponta do pezinho que idolatrava.
A moça concertou as dobras da saia de modo a interceptar o olhar curioso; e disfarçou conversando com uma amiga.
Desde princípio notara Amélia aquele sestro de Horácio. Quando ela o supunha mais embebido em seus encantos, mais rendido à sua beleza, surpreendia o olhar do moço a rastejar pelo chão, procurando insinuar-se por baixo da orla de seu vestido.
Muitas vezes ela perdia os seus mais ternos sorrisos, porque o moço, em vez de procurar-lhe no rosto a esperança de ser amado, esquecia-se a catar sobre o tapete alguma idéia que não se animava a revelar. Já tinha sucedido, durante que ela tocava, distrair-se o leão, e com a atenção presa no pedal, nem ouvir a peça de música.
Horácio a amava sem dúvida; já lhe tinha dado provas de que sentia por ela uma paixão veemente. Ele, o rei da moda, o festejado conquistador, para quem todas as portas e todos os corações abriam-se como a gruta encantada de Aladino, a uma só palavra; ele ali estava cativo da vontade dela, e atado ao seu carro triunfal. Que prova mais eloqüente de profundo amor, do que essa submissão espontânea do altivo leão?
A força nunca se revela tanto como na posse de si mesma, no vigor com que se domina. Hércules, fiando aos pés de Onfale, é o último canto, o epílogo sublime da epopéia da forca humana. Exterminando a fera, a natureza e até os deuses, Hércules foi grande; abatendo a si mesmo, foi maior, porque venceu o vencedor.
Amélia compreendia que homenagem eloqüente à sua beleza havia naquela adoração do elegante cavalheiro; sentia-se orgulhosa com esse amor, que tantas mulheres lhe invejavam; consideravase rainha, desde que via a seus pés subjugado e humilde o rei da moda.
Mas lá no íntimo alguma coisa lhe remordia quando notava a pertinácia com que o olhar de Horácio procurava a fímbria de seu vestido. Nesses momentos sentia n'alma um alvoroço; chegava a suspeitar que Horácio não lhe tinha amor, e estava escarnecendo dela com uma paixão fingida.
A verdade, porém, é a que sabemos. Horácio tinha paixão louca pelo pezinho de que só conhecia a botina e o rasto; fazendo a corte a Amélia, ele prestava culto ao deus ignoto, que adorava sob aquela forma encantadora. Pelo cuidado que tinha a moça em não desconcertar os babados de seu vestido comprido demais, conheceu ele o zelo com que a dona recatava o tesouro. Contudo não desesperou; o cuidado da moça havia de adormecer um momento; podia mesmo sobrevir um acidente inesperado que realizasse a sua mais cara esperança.
Até aquela noite todos os esforços se tinham frustrado; à sua insistência a moça tinha oposto a pertinácia do capricho feminino. Quanto mais atento ele estava para aproveitar qualquer descuido, mais alerta ela ficava para não cometer a mínima falta.
Horácio porém resolveu dar o golpe; e com essa intenção, fora à casa de Sales, no domingo em que estamos.
Quando se ofereceu ocasião, travou com Amélia, recostada à janela, o seguinte diálogo:
— Como é bonita! disse ele contemplando a moça com enlevo.
— Ainda não tinha percebido? perguntou ela com irônica faceirice.
— Não, D. Amélia, não; porque de cada vez a acho mais bonita; todos os dias a senhora muda a meus olhos; torna-se outra, mais linda, mais formosa, do que era aquela que eu conhecia anteriormente. Como hoje, acredite, nunca a vi.
— Que tenho eu demais?
— Não sei; tem uma auréola de beleza! Seus olhos desferem raios de luz tão pura; sua boca sorri como a flor em botão, que abriu com a frescura da noite. Os anéis de seus cabelos castanhos parecem impregnados de um fluido misterioso, que se derrama em torno. Mas de toda a sua formosura há uma coisa sobretudo que eu admiro, que eu adoro. Não é, nem seus olhos brilhantes, nem seus lábios mimosos, nem seu talhe elegante, nem suas tranças tão opulentas; não é nada disto!
— O que é então?
— Para que dizê-lo? Para que revelar a minha paixão a quem dela escarnece? Se eu o confessasse, cessariam o suplício que tenho sofrido, as ânsias que estou curtindo? Não; haviam de aumentar se isso fosse possível. A senhora teria prazer em torturar-me ainda mais.
— Explique-se: confesso que não o entendo. Que suplício tem o senhor sofrido?
— A mulher é caprichosa, muitas vezes faz padecer aquele que a ama sinceramente, e só por espírito de contradição. Uma coisa inocente, um favor pequenino... permite aos estranhos e indiferentes, e entretanto recusa ao homem que morre de paixão por ela. Não é uma crueldade? A senhora pergunta, D. Amélia, que suplício tenho eu sofrido. Este, de ser consumido a fogo lento por um desejo, que um gesto seu podia tornar em gozo infinito!
A moça, com as faces incendidas em rubor, lutava no alvoroço e confusão, que iam se apoderando de toda sua pessoa.
— Entende agora, D. Amélia?
— Não! murmurou trêmula.
— Pois não percebeu ainda, que há uma coisa que eu sobretudo amo na senhora? Tanto percebeu, que fez o propósito de escondê-la a meus olhos, cansados de a procurarem a cada instante. Não está contente ainda de ver-me arrastando assim a alma pelo pó, no vão intento de entrever de longe o objeto de minhas adorações?
O leão fitou um olhar fascinador no semblante da moça.
— Para que negar, D. Amélia? A senhora o sabe, e finge ignorar para mais torturar-me.
— Eu, não!
— A senhora sabe por quem deliro de paixão, por quem darei a minha vida sem hesitar. Se não soubesse, já eu teria visto e admirado esse pezinho mimoso, que me mata com seu rigor.
Uma visita que entrava na sala, deu a Amélia um pretexto para fugir, disfarçando seu rubor e perturbação, no afã da recepção das senhoras que chegavam.
Ao retirar-se, Horácio achou ensejo de trocar uma palavra com a moça, enquanto lhe apertava a mão:
— Não seja cruel!
— Oh! cruel não sou eu, replicou a moça com expressão de ressentimento.
Mais tarde, em sua alcova, enquanto desfazia o penteado, soltando os lindos anéis do cabelo castanho, Amélia recordou-se das palavras apaixonadas que ouvira de Leopoldo na véspera, e comparou-as com as queixas de Horácio. A linguagem do primeiro tinha a eloqüência da paixão; parecia vir do íntimo, do mais profundo do coração. A linguagem do segundo tinha a graça da sedução: era a vibração passageira das cordas d'alma.
Mas a palavra do leão vinha envolta em um sorriso gracioso, sombreado por um bigode fino e elegante!
Durante uma semana, Amélia não viu Horácio, por uma razão muito simples. O moço, de arrufado, não apareceu durante dois dias; quando se resolveu a aparecer, a moça despeitada inventou um incômodo, e não desceu à sala de visita, pelo dobro do tempo. Se Horácio sustentasse a luta, podia haver sério rompimento.
O leão porém estava domado; tinha achado a sua Diana. No quinto dia foi humildemente render preito e homenagem à suserana de seu coração. Amélia o recebeu como rainha magnânima; e tratou-o nesse dia com amabilidade extrema. Pela primeira vez, Horácio pôde beijar-lhe a ponta dos dedos.
Animado com esse acolhimento, o leão arriscou de novo a grande questão. Fitando o olhar no rosto da moça e abaixando-o à orla do vestido, disse em tom suplicante:
— Me deixa ver?
— Não, respondeu a moça com vivacidade, e demudando-se:
— Quando cessará este capricho?
— Nunca.
Horácio teve um assomo de impaciência.
— Bem. Não me quer mostrar a mim, Horácio de Almeida; pois há de mostrá-lo a uma pessoa.
— A quem? perguntou a moça irritada.
— A seu marido.
Amélia tornou-se pálida, e sentiu passar-lhe nos olhos uma vertigem; mas recobrou-se logo à idéia de que as palavras de Horácio não passavam de um galanteio.
— Se algum dia me casar, replicou ela sorrindo, há de ser com a condição de não mostrar.
— Havemos de discutir essa condição.
— Vamos mudar de conversa?
— Como quiser; temos muito tempo para continuá-la.
Enquanto Amélia o olhava surpresa, Horácio voltando-se para o grupo das senhoras, tomou parte na conversação geral.
— Já sabem a novidade, minhas senhoras?
— Qual delas? Há tantas.
— A novidade nova, a ultimamente inventada, que eu acabo de receber em primeira mão, de caminho para aqui.
— Algum casamento, aposto.
— E eu sei de quem.
— Não adivinhou. Talvez que a novidade de amanhã seja algum casamento; quem sabe? respondeu Horácio, relanceando um olhar para Amélia. Mas a novidade de hoje, é apenas um baile, um baile, um baile de estrondo.
— Aonde?
— No Cassino?
— No clube?
— Em casa de Azevedo.
— É verdade! Eu já tinha ouvido dizer!
— Quer a senhora fazer de velha a minha novidade. O que se dizia era que o Azevedo tinha tenção de dar um baile, mas disso à realização vai uma grande distância. Eu desejo muita coisa que não alcanço, e nem ao menos posso ver. Foi hoje e ao jantar que resolveu-se a grande questão, por ocasião de uma saúde. Um amigo que vinha de lá, encontrando-me a dois passos daqui, me deu a notícia do grande acontecimento. Portanto, minhas senhoras, preparem-se!
— Quando é o dia?
— No primeiro do mês próximo. Ponham desde já em contribuição as lojas e modistas; eu, o que posso, é oferecer-me com muito gosto para admirá-las a todas, e achar a cada uma de per si mais elegante do que as outras juntas. Se Páris me tivesse ouvido, não haveria guerra de Tróia.
— Nem Homero por conseguinte, replicou um literato.
— Homeros sempre os há. Quando não encontram os heróis já feitos, inventam-nos, e com tal habilidade, que esses grandes homens postiços parecem verdadeiros, como os dentes de osana, e os coques das moças. O mesmo sucede com os Anacreontes, cuja raça é muito maior; quando não acham ninfas para cantar, qualquer bruxa lhes serve de pretexto ou de cabide para pendurarem a lira.
Amélia ficara triste e preocupada; escutava a palavra volúvel do moço com um sentimento indefinível de angústia; parecia-lhe que era seu amor por ela, que Horácio rasgava aos pedacinhos, como uma página querida, abandonando-os ao sopro do vento, ao capricho daquela conversa.
Uma amiga reparando na tristeza da filha de Sales e no olhar que em certa ocasião lhe deitara Horácio, disse ao ouvido da moça sentada a seu lado:
— Amélia ficou lograda!
— Como?
— Creio que Horácio está justo com outra.
— Quem lhe disse?
— A tristeza de Amélia, e o olhar que o sujeito lhe deitou, quando falava de um casamento que se há de saber amanhã.
— É verdade. Com quem será?
— Naturalmente com alguma fazendeira de mil contos. Depois que saírem da igreja, o marido leva-a para o colégio do Hitchings; e deixa-a lá como pensionista, enquanto ele vai a Paris aperfeiçoar-se na escola dos maridos.
"Esta senhora é uma sátira viva; sua conversa parece um fogo de artifício; dir-se-ia que o seu gracioso traje é todo composto de alfinetes, que ela vai deixando em sua passagem envoltos em sorrisos açucarados, como confeitos de carnaval.
"Oculto seu nome porque é muito conhecida na boa sociedade do Rio de Janeiro, e não quero comprometê-la com os noivos presentes e futuros das fazendeiras ricas."
Depois de ter durante alguns instantes ainda polvilhado a conversa com sua palavra elegante e chistosa, Horácio tomou o chapéu e retirou-se. Não eram nove horas; esta circunstância mais entristeceu Amélia, e mais excitou a atenção da moça maliciosa.
À porta da casa de Sales encontrou Horácio seu tílburi. Mandou o cocheiro esperá-lo no Largo do Machado, e ele, tendo acendido o charuto e vestido o sobretudo, seguiu a pé. Queria pensar.
Horácio pertencia à escola daqueles que entendem, que nunca é tarde para arrepender-se o homem de um compromisso. Ele compreendia o alea jacta est por esta forma prudente e razoável. César, tendo lançado a ponte sobre o Rubicão, via de longe em Roma a ditadura, e mais tarde a púrpura imperial, portanto fez ele muito bem em passar, sobretudo desde que o rio já não opunha obstáculo. Mas se em vez do poder, César encontrasse no caminho a derrota, a ponte lançada lhe serviria para voltar às Gálias, e ele teria o cuidado de queimá-la depois que tornasse a passar.
Como César, ele tinha lançado a ponte com aquela palavra dita a Amélia, em um momento de despeito. Devia porém passar o Rubicão do casamento?
Era sobre tão importante questão que o leão queria refletir, fazendo a pé o trajeto entre as Laranjeiras e o Largo do Machado.
— O casamento é o suplício de Prometeu, pensava ele; um homem atado ao rochedo da família, com o coração devorado pelo tédio; uma criatura dividida em duas metades, que se contrariam a cada instante, porque estão ligadas. Em vez do romance, do idílio, do drama, a prosa monótona de uma história que se lê todos os dias. Esse prazer incomparável de sentir-se todo dentro de si, de resumir-se no seu único eu, de dispor livremente de sua pessoa e vida, não o tem o marido a menos que seja um biltre. O casamento dilata a superfície da alma; em vez de sofrer-se no seu coração apenas, sofre-se na mulher, no filho, e em cada um dos fios dessa grande teia humana que se chama família.
Horácio recordou-se de alguns de seus amigos que haviam casado, e achou nessas reminiscências a prova de sua opinião.
— O casamento é tudo isso; mas que importa, desde que não há outro meio de realizar o meu desejo e satisfazer esta paixão ardente e impetuosa? Daria a vida inteira, e sem hesitar, pela felicidade que eu sonho. Pois se eu a daria de uma vez, por que não a emprestarei sob hipoteca?
Tendo chegado ao Largo do Machado, o moço entrou no tílburi, que o conduziu a casa.
Aí, contemplando a mimosa botina, guardada como uma relíquia encheu-se cada vez mais da resolução que havia tomado.