A Reforma da Natureza (12ª edição)/1ª parte/Capítulo 10

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CAPÍTULO X

A VOLTA DE DONA BENTA



NO DIA MARCADO, ali pela dez horas da manhã, Emília e a Răzinha ouviram rumor de automóvel na estrada. Correram à varanda. Vinha vindo uma porção de carros, com Dona Benta, tia Nastácia e os meninos no da frente.

Ao entrarem no terreiro, Emília adiantou-se para recebê-los. Os homens da Comissão apearam-se e despediram-se de Dona Benta com muitas palavras de agradecimentos e amabilidades.

Pois é isso — disse-lhes a boa velha. — Sigam lá na Europa as minhas instruções, que tudo dará certo. Adeus, adeus! Mil recomendações ao Rei Carol e ao Duque e à Duquesa de Windsor — gostei muito dela. E digam ao Mussolini e ao Hitler que apareçam quando puderem, para um passeio no Quindim. Adeus, adeus!

Os automóveis da Comissão partiram na volada.

Depois que desapareceram lá na curva, Dona Benta entrou para a saleta com os meninos e tia Nastácia foi para a cozinha. Mas... que era aquilo? Não estavam reconhecndo a velha saleta da entrada. Tudo esquisito, tudo diferente.

— Que é isto, Emilia? Que significam estas mudanças?

Emília contou tudo.

— Eu reformei a Natureza — disse ela. — Sempre tive a idéia de que o mundo por aqui estava tão torto como a Europa, e enquanto a senhora consertava a Europa eu consertei o Sítio.

— Consertou o Sítio?! — repetiu Dona Benta sem entender coisa nenhuma. — Que história é essa?

Narizinho interveio:

— Eu bem disse, vovó, que ela queria ficar sozinha para fazer coisas malucas. Fui là ao meu quarto e encontrei a cama pendurada no forro, imagine!...

— E eu — disse Pedrinho entrando — fui à biblioteca e encontrei os seus livros cheirando a alho e a cebola. Abri um, provei: gosto de sopa; páginas adiante, gosto de carne assada...

O assombro de Dona Benta não tinha limites, e por mais que Emília explicasse ela ficava na mesma. Súbito, deu com a Răzinha.

— Quem é esta menina? perguntou.

— É a Ra.

— Que ră?

— A Rãzinha da Silva, minha amiga do Rio, que veio ajudar-me na reforma da Natureza.

O assombro de Dona Benta crescia, e cresceu ainda mais quando tia Nastácia apareceu aos berros.

— Sinhá, Sinhá, está tudo esquisito lá na cozinha! Pus o leite no fogo; assim que começou a ferver, assobiou!...

— Assobiou, o leite, Nastácia?

— Sim, Sinhá, assobiou, e o fogo no mesmo instantinho apagou por si mesmo. Aquilo está com feitiçaria, Sinhá. Andou alguma bruxa por aqui...

— A bruxa é ela — disse Narizinho apontando para Emília. — Diz que reformou a Natureza. . .

Dona Benta não voltava a si do espanto.

— Mas que absurdo, Emília, reformar a Natureza! Quem somos nós para corrigir qualquer coisa do que existe? E quando reformamos qualquer coisa, aparecem logo muitas conseqüências que não previmos. A obra da Natureza é muito sábia, não pode sofrer reformas de pobres criaturas como nós. Tudo quanto existe levou milhões de anos a formar-se, a adaptar-se; e se está no ponto em que está, existem mil razões para isso.

— Não acho! — contestou Emília, cruzando os braços. — A obra da Natureza está tão cheia de "bissurdos" como a obra dos homens. A Natureza vive experimentando e errando. Dá cem pés à centopeia e nem um para as minhocas — por que tanta injustiça? Faz um pêssego tão bonito e deixa que as moscas ponham ovos lá dentro e dos ovos saiam bichos que apodrecem a linda carne dos pêssegos — não é uma judiação? Veste os besouros com uma casca grossa demais e deixa as minhocas mais nuas do que a careca do Quindó — isso é erro. Quanto mais observo as coisas, mais acho tudo torto e errado.

Mas sem demora começou a ser desmentida. Um tico-tico entrou na sala e disse com muito desespero para Dona Benta:

— Minha boa senhora, livrai-me do que a Emília fez em mim. Transformou-me em passarinho-ninho, com os ovos às costas, e isso tem sido uma atrapalhação medonha, porque não me deixa voar com desembaraço, e desse modo não consigo escapar aos meus perseguidores.

— Que história de passarinho-ninho é essa? — perguntou Dona Benta, e, quando soube de tudo, abriu a boca. Era demais a ousadia da Emília. Alterar daquele modo a Natureza! Mudar as coisas que levaram milhões de anos para se equilibrarem ... E, agarrando o tico-tico, desfez-lhe o ninho das costas e guardou os três ovos para pô-los no ninho natural que ele fizesse pelo sistema antigo.

Estava ainda a lidar com a pobre ave, quando Pedrinho apareceu de novo, muito assustado.

— Vovó, o que aconteceu aqui no Sítio parece até um sonho! Encontrei Quindim completamente transformado, com couro de palhinha, a Branca de Neve com os anões pintados no casco, quatro pernas diferentes, cem rabos, e em vez de chifre uma seta de Cupido com um coração na ponta. Imagine! Não dá a menor idéia dum bicho possível!...

A boca de Dona Benta abriu de caber dentro uma laranja.

— E o Rabicó, então? — continuou Pedrinho. — Está com cauda de cachorro lulu, toda frisadinha, e só com dois pés — e pés tartaruga. E com uma ratoeira no focinho e um lenço automático no nariz...

— Sinhá! Sinhá! — voltou tia Nastácia berrando. — O mundo está perdido. Já não entendo mais nada. Fui ver a Mocha e sabe o que encontrei? Um bicho sem propósito, com a cauda no meio do lombo, chifre de saca-rolha com bola de borracha na ponta, e as tetas fora do lugar, com duas torneirinhas, Sinhá, imagine! E o chão anda cheio de moscas sem asa. E um pernilongo cantou no meu ouvido uma música tal e qual aquela que lá na Conferência São "Churche" mandou os músicos tocarem para a senhora ouvir direitinho! Eu não fico mais nesta casa nem um minuto. Isto virou "hospiço" de feiticeiro, Sinhá! Tudo atrapalhado, sem jeito. Ninguém entende nada de nada. Fui encontrar a sua cadeirinha, Sinhá, pregada lá no forro! Subi na escadinha de lavar vidraça, peguei a cadeira pela perna e puxei — e quem disse da cadeira descer? Parece que está pregada no forro com elástico. A gente larga dela e ela sobe outra vez.

— É a força centrípeta — explicou a Rã.

— Centrífuga — corrigiu Emília; e contou a história da supressão do peso.

Tia Nastácia passava a mão num galo que tinha na testa. A negra estava verdadeiramente zonza.

— E ainda tem mais, Sinhá — disse ela. — Imagine que me sentei debaixo da jabuticabeira, e sabe o que aconteceu? De repente uma coisa enorme caiu lá do alto em cima da minha cabeça. Era uma abóbora, Sinhá! Uma abóbora deste tamanho! Fiquei tonta uma porção de tempo, nem sei como não morri. As abóboras andam agora nas jabuticabeiras, Sinhá. Veja que "bissurdo"!

Esta obra entrou em domínio público pela lei 9610 de 1998, Título III, Art. 41.


Caso seja uma obra publicada pela primeira vez entre 1929 e 1977 certamente não estará em domínio público nos Estados Unidos da América.