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A Reforma da Natureza (12ª edição)/1ª parte/Capítulo 9

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CAPÍTULO IX

O LIVRO COMESTÍVEL



A MAIOR PARTE das idéias da Rã eram desse tipo. Pareciam brincadeiras, e isso irritava Emília, que estava tomando muito a sério o seu programa de reforma do mundo. Emília sempre foi uma criaturinha muito séria e convencida. Não fazia nada de brincadeira.

— Parece incrível, Ră! — disse ela. — Chamei você para me ajudar com idéias na reforma, mas até agora não saiu dessa cabecinha uma só coisa aproveitável — só "desmoralizações"...

— Isso não! A idéia das tetas com torneira na Mocha foi minha e você gostou muito. A da pulga também.

— Só essas. Todas as outras eu tive de jogar no lixo. Vamos ver mais uma coisa. Que acha que devemos fazer para a reforma dos livros?

A Rãzinha pensou e não se lembrou de nada.

— Não sei. Parecem-me bem como estão.

— Pois eu tenho uma idéia muito boa — disse Emília. — Fazer o livro comestível

— Que história é essa?

— Muito simples. Em vez de impressos em papel de madeira, que só é comestível para o caruncho, eu farei os livros impressos em um papel fabricado de trigo e muito bem temperado. A tinta será estudada pelos químicos — uma tinta que não faça mal para o estômago. O leitor vai lendo o livro e comendo as folhas; lê uma, rasga-a e come. Quando chega ao fim da leitura, está almoçado ou jantado. Que tal?

A rãzinha gostou tanto da idéia que até lambeu os beiços.

— Otimo, Emília! Isso é mais que uma idéia-mãe. E cada capítulo do livro será feito com papel de um certo gosto. As primeiras páginas terão gosto de sopa; as seguintes terão gosto de salada, de assado, de arroz, de tutu de feijão com torresmos. As últimas serão as da sobremesa — gosto de manjar branco de pudim de laranja, de doce de batata.

— E as folhas do índice — disse Emília — terão gosto de café — serão o cafezinho final do leitor. Dizem que o livro é o pão do espírito. Por que não ser também pão do corpo? As vantagens seriam imensas. Poderiam ser vendidos nas padarias e confeitarias, ou entregues de manhã pelas carrocinhas, juntamente com o pão e o leite.

— Nem precisaria mais pão, Emília! O velho pão viraria livro. O Livro-Pão, o Pão-Livro! Quem souber ler, lê o livro e depois o come; quem não souber ler, come-o só, sem ler. Desse modo o livro pode ter entrada em todas as casas, seja dos sábios, seja dos analfabetos. Otimíssima idéia, Emília!

— Sim — disse esta muito satisfeita com o entusiasmo da Rã. — Porque, afinal de contas, isso de fazer os livros só comíveis para o caruncho é bobagem — podemos fazê-los comíveis para nós também.

— E quem deu a você essa idéia, Emília?

— Foi o raciocínio. O livro existe para ser lido, não é? Mas depois que o lemos e ficamos com toda a história na cabeça, o livro se torna uma inutilidade na casa. Ora, tornando-o comestível, diminuímos uma inutilidade.

— E quando a gente quiser reler um livro?

— Compra outro, do mesmo modo que compramos outro pão todos os dias.

A idéia, depois de discutida em todos os seus aspectos, foi aprovada, e Emília reformou toda a biblioteca de Dona Benta. Fez um papel gostosíssimo e de muito fácil digestão, com sabor e cheiro bastante variados, de modo que todos os paladares se satisfizessem. Só não reformou os dicionários e outros livros de consulta. Emília pensava em tudo.

Também reformou muita coisa na casa. Por meio de cordas e carretilhas, as camas subiam para o forro de manhã, depois de desocupadas, a fim de aumentar o espaço dos cômodos. As fechaduras não precisavam de chaves; bastava que as pessoas pusessem a boca no buraco e dissessem: "Sésamo, abre-te!" e elas se abriam por si mesmas.

— E os mudos? — perguntou a Razinha. — Como vão arrumar-se? Só se eles andarem com uma vitrola no bolso, que pronuncie por eles a palavra Sésamo.

Emília atrapalhou-se com o caso dos mudos e deixou-o para resolver depois.

O leite a ferver ao fogo dava um assobio quando chegava no ponto, de modo a avisar ao fogo, o qual imediatamente parava de agir. O mesmo com todas as comidas — e dessa maneira acabou-se a desagradável história do "feijão com bispo".

E tanta e tanta coisa as duas fizeram, que se fossemos contar metade teríamos de encher dois volumes. Lá pelo fim da semana, o Sítio do Picapau estava totalmente transformado, não dando a menor idéia do antigo. Foi por essa ocasião que chegou carta de Dona Benta anunciando a volta.

— "Já concluímos o nosso serviço na Europa — dizia ela. — Deixamos o continente transformado num perfeito sítio — com tudo — direitinho e todos contentes e felizes. A Comissão que nos trouxe vai reconduzir-nos para aí novamente. Devemos chegar na próxima segunda-feira e espero encontrar tudo em ordem."

Emília leu a carta para a Rãzinha, dizendo: "É uma danada, esta velha! Foi lá e fez o que todos aqueles ditadores e reis não conseguiram. Temos agora de preparar a casa para recebê-la."

Esta obra entrou em domínio público pela lei 9610 de 1998, Título III, Art. 41.


Caso seja uma obra publicada pela primeira vez entre 1929 e 1977 certamente não estará em domínio público nos Estados Unidos da América.