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A Reforma da Natureza (12ª edição)/2ª parte/Capítulo 6

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CAPÍTULO VI

OS DOIS COLEGAS



E DONA BENTA contou numerosas passagens dos assombros e espantos ocorridos ali — a viagem à Lua, a chegada do anjinho, a visita das crianças inglesas, a surra que o marinheiro Popeye levou etc. Depois contou que morava ali um grande colega do Dr. Zamenhof.

— Já ouvi falar — disse este. — O Visconde de Sabugueiro, não é?

— ... bugosa — emendou Emília.

— Sim, é isso. Pois eu teria imenso prazer em trocar idéias com o ilustre colega. Onde anda ele?

— Não sei — disse Dona Benta. — O Visconde, duns tempos para cá, pouco me aparece, anda sempre por fora, com certeza mergulhado nos seus estudos. Vá ver se encontra o Visconde, Emília.

— Emília foi, e minutos depois apareceu acompanhada do sabuguinho. Dona Benta fez as apresentações.

O Dr. Zamenhof mostrou-se admiradíssimo. Esperava um homem como ele, um sábio de barbas e óculos, e apresentavam-lhe um sabugo de cartola! Julgando que fosse brincadeira, quase zangou.

— Minha senhora — disse ele — parece-me que a mistificação está sendo um tanto excessiva...

Dona Benta não entendeu.

— Mistificação, Doutor?

— Sim, falam-me dum sábio e apresentam-me um sabugo de cartola! Se eu não mereço respeito, acho que deve ser respeitada a ciência que eu represento.

Dona Benta caiu em si e riu-se.

— Tem toda a razão, Doutor. É tão estranho este caso do nosso sabuguinho falante, que um homem normal, como o senhor, não pode ter outra impressão. Mas converse com ele e veja por si mesmo se o nosso Visconde é ou não é um sábio.

— Converse com ele? — repetiu o Dr. Zamenhof. — Pois então ele fala?

— Se fala! — bedelhou Emília. — E só fala ali na batata científica! Experimente.

O Dr. Zamenhof não percebia nada de nada e continuou firme na convicção de que todos queriam empulhá-lo. Chegou a corar até a raiz dos cabelos. Mas quase caiu para trás, de espanto, ao ouvir o Visconde abrir a boca e dizer:

— Estou-me lembrando da minha conferência com os professores da Universidade de Princeton, nos Estados Unidos. Também eles muito se espantaram de que uma criatura como eu falasse. . .

O susto fez o Dr. Zamenhof perder a língua. O sabuguinho falava mesmo e muito bem! Tia Nastácia veio com um copo dágua, que o sábio engoliu dum trago. Depois:

— Desculpe, minha senhora — disse ele dirigindo-se a Dona Benta. — Errei nas minhas desconfianças mas quem não me perdoará este humaníssimo erro? A coisa me parece a tal ponto absurda que chega a duvidar de mim mesmo. Estarei por acaso sonhando?

— Belisque para ver — disse Emília.

O Dr. Zamenhof beliscou-se. Sim, não era sonho não. Estava acordadíssimo. Mas continuou no ar, sem conseguir pôr em ordem suas idéias.

— Café! gritou Dona Benta para a cozinha. — Para consertar estas situações mentais, nada como os cafés de tia Nastácia.

Veio o café com bolinhos. O barbudo sábio tomou-o e foi assentando as idéias. Minutos depois estava de braço dado ao Visconde, passeando pela sala e absorvido numa profundíssima conversa sobre glândulas.

— Ando interessado em descobrir a verdadeira função da glândula pineal — dizia o Visconde.

— Credo! — esclamou tia Nastácia, que vinha vindo tirar a bandeja do café. — Até assusta a gente, essa "linguage"...

A conversa dos dois sábios foi interrompida por uma gritaria lá fora. Correram todos para a varanda. Vinha vindo um bando de homens em busca do Dr. Zamenhof.

— Que há? — interpelou este de longe.

— Descobrimos a Noventaequatropeia! — berrou o da frente. Está a um quilômetro daqui! ...

O Dr. Zamenhof despediu-se às carreiras e lá se foi, seguido do Visconde e de Pedrinho. Não queria que matassem o monstro. Sua intenção era pegá-lo vivo para pô-lo num jardim zoológico.

Esta obra entrou em domínio público pela lei 9610 de 1998, Título III, Art. 41.


Caso seja uma obra publicada pela primeira vez entre 1929 e 1977 certamente não estará em domínio público nos Estados Unidos da América.