A Reforma da Natureza (12ª edição)/2ª parte/Capítulo 7

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CAPÍTULO VII

A CAÇA AO MONSTRO


A NOVENTAEQUATROPEIA estava lá na mesma grota úmida dos caetés de tia Nastácia, sempre parada, olhando. Parece que o gosto dela era parar e olhar. O Dr. Zamenhof e seus homens cercaram-na de longe e examinaram-na com os binóculos.

— Noventa e quatro pernas, sim — observou o sábio; — evidentemente, seis foram arrancadas, porque ainda aparecem os buracos em que deviam estar inseridas. O corpo é formado de anéis córneos, exatamente como o das pequeninas centopeias. O aspecto externo é o mesmo das centopeias e aqui estou garantindo que esse monstro não passa duma centopeia gigantesca, que perdeu seis pernas nalgum desastre.

Depois de bem examiná-la pelo binóculo e de medir com o "olhômetro" as dimensões do monstro, discutiu com os seus auxiliares os meios de captura.

— Temos de construir um canudo de vinte metros de comprimento e um metro de diâmetro interno, com tampa dos dois lados, — disse por fim.

— E como fazê-la entrar no canudo? — perguntou um dos assistentes.

O maior problema era esse. O Dr. Zamenhof coçou a barba. Estava indeciso.

— Eu sei o jeito — disse Pedrinho. — Faz-se um curral de paus-a-pique em forma de funil que se vá estreitando até dar na boca do canudo. Depois toca-se o monstro a pedradas e a barulho; ele assusta-se, vai andando para o bico do funil e acaba entrando no canudo.

Como não aparecesse idéia melhor, o plano de Pedrinho foi aprovado — e imediatamente a turma pôs mãos à obra.

A construção do canudo levou tempo; fizeram-no de taquaras trançadas, como os jacás de frangos. E depois construíram um curral de paus-a-pique em forma de funil. O serviço foi muito facilitado pela atitude da Noventaequatropeia, que se mantinha sempre parada, a olhar bobissimamente para todas as coisas. Era uma perfeita cretina.

Emília não resistiu à tentação de também aparecer por lá, e as maneiras lerdas do monstro causaram-lhe espécie.

Para mim, doutor — disse ela dirigindo-se ao sábio — a bicha está com defeito na tiróide. Essa glândula atrofiou-se nela, não produz bastante tiroxina; daí a lerdeza, a "paradura". . .

O barbudo sábio olhou-a com os olhos arregalados.

Depois de prontos o canudo e o curral, surgiu o problema de tanger o bicho para a frente, de modo que fosse caminhando para o bico do funil e entrasse no canudo. Mas nem as pedradas, nem a gritaria, o levaram a sair da sua "paradura", como dizia Emília.

— Assim não vai. — disse o Doutor. — Temos de estudar outro meio.

Pensa que pensa, quem teve a boa idéia foi de novo Pedrinho.

— Só a laço — disse ele. — Fazemos uma comprida corda de cipó trançado e puxamo-la para dentro do canudo.

O Dr. Zamenhof deu ordem para que experimentassem a idéia. Em poucos minutos estava feita uma grossíssima corda dos melhores cipós da mata. Depois enfiaram-na pelo canudo. Restava agora o mais difícil: correr a laçada pa cabeça do monstro.

Foi operação dificil e demorada, mas que se realizou da melhor maneira. A insistente "paradura" do monstro muito facilitou o trabalho. Pronto! Era só puxá-lo agora.

Mas os seis auxiliares do Dr. Zamenhof, por mais força que fizessem, não conseguiram mover do lugar a Noventaequatropeia. Bicho que tem noventa e quatro pés agarra-se ao chão como cola-tudo.

— E agora? — exclamou o Dr. Zamenhof, já meio desanimado.

— Só com o Quindim — lembrou Emília.

Mas o sábio, que nunca ouvira falar em Quindim, ficou na mesma.

— Que história é essa? — perguntou.

Emília riu-se.

— Em vez de explicar — disse ela — o melhor é mostrar. Suspenda o serviço que eu já volto — e tocou para casa correndo.

Os homens ficaram à espera, com caras bobas a olharem-se entre si e depois para o Dr. Zamenhof, o qual só respondia fazendo beiço, como quem diz: "Não entendo nada de nada destas coisas por aqui."

Minutos depois, um grito soou.

— Socorro! Um novo monstro vem vindo! — berrava um dos auxiliares do Dr. Zamenhof, que se havia distanciado dos companheiros.

O pobre homem vinha na volada.

— Um monstro com aparência de rinoceronte de Uganda! — disse ele assustadíssimo ao chegar. — Preparem as armas!

Todos correram às carabinas e puseram-se de joelhos, à espera.

Mas Pedrinho interveio.

— Nada de tiros! Trata-se do nosso rinoceronte, que é mansíssimo e muito camarada. Justamente o tal Quindim de que a Emília falou.

O Dr. Zamenhof enxugava o suor do rosto. Que terra esquisita, santo Deus! Tudo estranho, tudo incompreensível! Sabugos científicos, rinocerontes camaradas...

Nisso repontou a enorme massa do Quindim, com a Emília a cavalo no chifre. O assombro do sábio e dos seus homens subiu mais dez pontos, e foi um custo para os sossegar. Diversos treparam às árvores próximas, como macacos.

Depois de mil explicações, a calma voltou aos expedicionários e Quindim foi atrelado à ponta do cipó.

— Vamos, Quindim! — ordenou Emília lá do seu posto e o rinoceronte moveu-se pesadamente. O cipó esticou como corda de viola e a Noventaequatropeia, a despeito das suas noventa e quatro pernas coladas ao chão, não teve remédio senão sumir-se no canudo. Assim que a viram lá dentro, os homens correram com as tampas e fecharam as duas extremidades.

Pronto! Graças às idéias de Pedrinho e à lembrança da Emília, o tremendo fenômeno da natureza estava encanudado no enorme jacá de frangos. Tinham agora de construir uma carreta especial, que o levasse dali para o jardim zoológico.

— Bom, — disse o Dr. Zamenhof — vocês agora vão cuidar da carreta enquanto eu vou novamente conferenciar com a proprietária do sítio. E separaram-se.

Evidentemente o que ele estava querendo não era conferência nenhuma, e sim outro cafezinho de tia Nastácia. . .

— Minha senhora — disse o Doutor ao entrar — aceite mil felicitações pelos netos que tem. Graças às sugestões desses meninos, apanhamos o monstro e o encanudamos.

— Netos? — repetiu Dona Benta, sem compreender.

— Sim, — disse o Doutor — aqui o Senhor Pedro e ali a Senhora Emília.

— Ah! — exclamou Dona Benta, rindo-se. Essa não é neta, não, Dr. Zamenhof. Emília é uma boneca que evoluiu para gentinha.

O sábio arregalou os olhos. "Boneca que evoluiu para gente?" Estaria a velha a caçoar com ele?

Percebendo a sua atrapalhação, Dona Benta disse:

— A história é muito complicada, Doutor, não pode ser dita em meia dúzia de palavras. Mas, creia ou não, a coisa é como lhe digo. Netos tenho dois, Pedrinho e Narizinho — embora a Emília, quando me quer agradar, também me chame "vovó". . .

Esta obra entrou em domínio público pela lei 9610 de 1998, Título III, Art. 41.


Caso seja uma obra publicada pela primeira vez entre 1929 e 1977 certamente não estará em domínio público nos Estados Unidos da América.