A Retirada da Laguna/V
Recebeu imediatamente o 21.° batalhão ordem de escoltar os engenheiros, numa exploração das localidades vizinhas da colônia; e, com efeito, a 25, o tenente-coronel Juvêncio, com os dois subordinados, avançou até o ponto chamado Retiro que, havia pouco, fora evacuado por um destacamento paraguaio de uma centena de homens. Feito o reconhecimento regressou na mesma tarde a nossa comissão ao acampamento. Haviam tido os infantes que nos acompanhavam que percorrer mais de 52 quilômetros transportando capotes e armas, além de sessenta cartuchos na patrona. Pudemos freqüentemente constatar que as mais longas marchas não conseguem abater a energia do soldado brasileiro.
Decorreram os dias subseqüentes, na inação; e neste solene repouso do pensamento, que é apenas prudência em vésperas de arriscadas empresas.
Tanto ninguém deve perturbar-se com a apreensão de desgraças, que talvez não ocorram, como se não entregar à exagerada confiança no futuro, que à possível catástrofe ainda venha trazer o rigor do imprevisto.
Abril começara, o mês fadado às nossas provações. O serviço de comboio longe estava de se achar garantido e no entanto como que a abundância reinava no acampamento. Carretas em contínua afluência ali traziam toda a espécie de fazendas e demais objetos de luxo que aqueles páramos desertos jamais haviam certamente visto. Assim, as mulheres dos soldados, atraídas por este movimento comercial desciam de Nioac em grupos cada vez mais numerosos. Também para tal afluxo de gente contribuía a reputação de salubridade da colônia de Miranda.
Era para aquele ponto, com efeito, que, muito antes da invasão estrangeira, de toda a vizinhança mandavam convalescentes e valetudinários. Ali são cristalinas as águas do rio que as infiltrações salobras dos pântanos da jusante ainda não contaminaram. Nada deixava a desejar o estado sanitário das tropas. Haviam, pois, recomeçado os exercícios diários de todos os batalhões e nossas músicas, rompendo afinal o longo silêncio, alegravam os espíritos. A dos voluntários de Minas, sobretudo, cuidadosamente recrutada, executava sinfonias cuja novidade, para os ecos locais, ajuntava novo encanto ao prazer da audição.
Recebeu logo o 17.° batalhão ordem de ir, além do ponto atingido pelo 21.°, realizar um reconhecimento, sob a direção do guia Lopes e em companhia de um grupo de índios terenas e guaicurus, que desde algum tempo se apresentara ao coronel. A 10 de abril, realizou-se a partida, bandeiras desfraldadas e música à testa, espetáculo sempre imponente em vésperas de combate. Graças ao comandante apresentava-se o corpo em pé de disciplina, que em qualquer ponto o tornaria notado.
Reservava-nos o dia seguinte emoções muito diversas e quase contraditórias: a esperança de encontrar o inimigo, que se não realizaria, e o imprevisto das mais comoventes cenas familiares.
Anunciou-nos uma mulher, vinda de Nioac, o encontro, à margem de um rio próximo, de um grupo de cavaleiros, falando o espanhol. Depois de lhe fazerem algumas perguntas, haviam-na deixado passar tranqüilamente.
Deu-se logo o alarma em toda a frente e à retaguarda, mas tivemos logo a agradável surpresa do regresso do nosso destacamento trazendo 10 cavaleiros. Eram brasileiros, eram irmãos! Pertenciam a famílias estimadas e bem conhecidas de fazendeiros das vizinhanças de Nioac: Barbosas, Ferreiras, Lopes, e haviam conseguido escapar ao inimigo inexorável. Com a rapidez do raio circula a notícia de sua aparição por todo o acampamento, e até em Nioac. Para os ver acodem homens e mulheres, possuídos como que de embriaguez; e a maioria até a chorar. Patrícios nossos! Rodeados, carregados, acham-se de repente em presença do comandante que os interroga.
Contam que, levados prisioneiros para o território paraguaio, eles e as famílias, haviam, ao se retirar o inimigo, sido dispersos por diversas localidades, principalmente em Vila Horcheta, a sete léguas de Concepción.
Ali lhes haviam dado terras de cultura sob a condição de pagarem aos coletores o quinto da colheita. Nunca os incomodaram muito até então, mas sabendo, ultimamente, que o ditador Lopez, já falto de gente para o Exército, projetara recrutar todos os estrangeiros, e até mesmo os prisioneiros, e que, ao mesmo tempo, se aproximava uma coluna brasileira, tudo tinham arriscado para reunir-se aos patrícios, escapando ao perigo de ter de os combater. As próprias famílias os haviam acoroçoado a assim proceder.
A 25 de março, exatamente no dia dos nossos primeiros reconhecimentos diante da colônia, conseguiram apossar-se de bons cavalos paraguaios, e, como se não iludissem acerca do destino que os aguardava caso fossem novamente capturados, tinham se arriscado a caminhar à noite, e de mata em mata, fazendo contínuos rodeios, em direção à fronteira. Atingindo-a felizmente, atravessaram o Apa e depois, deixando à direita a estrada da colônia, subiram ao norte, em direção à estância do Jardim, de onde desceram ao nosso encontro.
A um deles, o filho do guia Lopes, chamou o coronel à sua barraca e a sós. Era moço simpático, cuja inteligência e discrição pareciam provir da herança paterna. Versou a conversa, naturalmente, sobre as informações que ele e o cunhado, Barbosa, podiam dar relativamente à situação do Paraguai, à sua força apreciável, meios de resistência, e sobretudo quanto à fronteira vizinha.
Responderam os refugiados que as fortificações do Apa não passavam de simples estacadas de madeira comum, guarnecidas, em Bela Vista, por uma centena de homens, sob o comando do major Martim Urbieta. Estavam os outros fortes em piores condições defensivas; mas o governo paraguaio, à vista dos avisos recebidos, comprometera-se a providenciar dentro em pouco e a enviar reforços, determinando que até a chegada destes, se fizesse uma retirada ante a investida brasileira, destruindo-se tudo o que não fosse possível carregar. Acrescentaram que, no interior do Paraguai, era geral o desânimo; dia a dia menos se acreditava num feliz desfecho da guerra. Entretanto a resolução da defesa, a todo o transe, não parecia esmorecida. Quanto ao respeito pelo presidente, El supremo, cujo nome todos pronunciavam descobrindo-se, era sempre o mesmo.
Apenas pelo acampamento se espalharam tais notícias, só houve um grito: Ao Apa! Ao Apa! Atingiu o entusiasmo ao auge, deixando-se os mais prudentes arrastar pela excitação apaixonada dos grupos que de todos os lados se formavam.
Anunciou-se neste momento a volta do 17.° batalhão que acompanhara o velho Lopes. Era geral o desejo de assistir ao primeiro encontro do pai e do primogênito que lhe voltava aos braços.
Passando pelos postos avançados soubera o nosso guia da grande notícia.
Vinha pálido, lacrimejante, em direção ao filho que, respeitosamente, o esperava, descoberto. Não descavalgou; estendeu a destra trêmula ao filho, que a beijou; depois o velho guia deu-lhe a bênção e passou sem proferir palavra.
Foi uma cena patriarcal, e como seja o coração humano sempre sensível aos grandes lances, atônitos, olhávamos uns para os outros, como a indagar se não seria fraqueza entre soldados nem sempre poder conter as lágrimas.
Que emoção devia sentir o velho vendo o filho escapo ao inimigo! E quanta dor, ao pensar que os outros membros da família, ainda cativos, haviam perdido o mais valente defensor! Quando em tal lhe falamos tomou longa pitada e disse: "Deus tudo faz. Deus assim o quis. Fui outrora feliz, tive casa e família. Hoje durmo ao relento; estou só, e como do que a caridade me dá."
— Vamos encontrar casa em Bela Vista, lhe respondemos. Tem o senhor a seu lado filho e genro. Come em companhia de amigos e até ainda é quem lhes dá a comer de seu gado.
Com melancólico sorriso meneou a cabeça, dizendo: "Nunca mais será minha a estância do Jardim!..."
Entrementes, depois de haver combinado com Barbosa os meios de ainda obter gado do sogro, ordenou o coronel que se avançasse.