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A Retirada da Laguna/VII

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Passagem do Apa. Primeiro embate. Ocupação da Machorra.

Haviam as nossas carretas retardatárias chegado ao acampamento a 17. No dia 18, pelas nove da manhã, fez-se a rendição das guardas avançadas. Reinava em nossas linhas a maior tranqüilidade quando, de repente, pelas onze, ouviu-se o grito de alarma: "Cavalaria inimiga!." Armam-se os batalhões; expede o comandante os engenheiros aos postos avançados; o ajudante-general à retaguarda; o assistente do quartel-general aos diversos corpos para lhes examinar as condições e remediar ao que possa faltar. Para a vanguarda marcha ele próprio, acompanhado pelo batalhão de voluntários, com as bocas de fogo do major Cantuária e do tenente Marques da Cruz, o mesmo que havia de morrer combatendo nas linhas de Humaitá. Por nós passou, com a espada nua, não querendo, dizia, tornar a embainhá-la senão depois que houvesse travado conhecimento com os paraguaios.

Estavam os inimigos, então, à pequena distância de nós, perto da mata que beirava um ribeirão. Avançavam sensivelmente estendendo-se em linha de atiradores, correndo de um lado para outro, sob as ordens de um oficial, que entre eles se destacava; e súbito mandou se retirassem: perdemo-los de vista. Após tão prolongada espera ordenou o comandante que volvêssemos às nossas posições.

Pela manhã de 19 deixamos o acampamento. O coronel destacou o 21.° batalhão para a vanguarda com a recomendação de nunca perder de vista o grosso do corpo de Exército, durante a marcha, embora sempre a ganhar terreno. Seguia o resto em destacamentos, próximos uns dos outros, mas, como a animação dos soldados e a dos oficiais corressem parelhas, avançaram os corpos sem prestar grande atenção ás ordens dadas, achando-se por vezes separados por distâncias maiores do que a prudência aconselhava.

À passagem do Taquaruçu, cuja ponte acabavam os paraguaios de destruir, deu-lhes a vanguarda uma descarga, embora quase estivessem fora de alcance. Viu-se um de seus cavaleiros cair ferido. Tomou-o um dos camaradas à garupa, enquanto o terceiro lhe laçava a montaria que fugia, sentindo-se solta. Ao presenciar esta primeira cena de guerra, queriam os nossos soldados deitar-se á água para perseguir o inimigo, quando um toque de clarim do quartel-general os fez estacar. Toda a coluna achou-se logo agrupada atrás deles. Neste entrementes os engenheiros restabeleciam a ponte; bastou-lhes uma hora. Efetuou-se a passagem e a marcha recomeçou à outra margem.

Vencendo pequenos planaltos interpostos às depressões paralelas que sulcam aquela campina, avançamos até a base de uma colina que domina toda a vizinhança. Achara a nossa vanguarda esta posição ocupada por um piquete de cavaleiros; estacou então, e todas as nossas unidades, isoladas, assim fizeram também, uma após outra. Examinaram-nos, então, os paraguaios: nada entre nós e eles se interpunha; podiam contar-nos à vontade. Foi para nós grande desvantagem. Até então julgavam, dando crédito aos nossos refugiados, que a coluna brasileira contava nada menos de seis mil homens, e nosso comandante, como regra de guerra, esforçara-se por lhes alimentar a abusão. Desfizera-se-lhes a ilusão, desvanecida ao primeiro lançado sobre nós.

Mais uma razão para que logo e logo os atacássemos, mas o comandante manteve-nos imóveis.

Só mais tarde soubemos por quê: provinha de intimo motivo: estávamos em sexta-feira Santa e a iniciativa de uma ação de guerra, no próprio dia da morte do Salvador, repugnava a um coração religioso como o do nosso chefe, escravo de todos os nobres sentimentos, a ponto de os exagerar até á contradição, inquieto e como perturbado pelo pressentimento do fim próximo.

Durou-lhe a hesitação bastante para que o destacamento paraguaio não mais receando ser atacado e, cheio de desprezo, talvez, pela nossa pequena força atirada, sem cavalaria alguma, em vastas planícies encharcadas, onde todo o homem a pé é assunto de escárnio, se lembrasse, pela atitude, de nos dar insolentes mostras de desdém que lhe inspirava a inferioridade de nossos recursos militares e, por meio de demonstrações ruidosas, nos fazer ver quanto considerava inúteis quaisquer precauções contra nós. Descavalgaram todos os homens, assentando-se uns á sombra das macaúbas, ao passo que outros faziam tranqüilamente pastar os cavalos. Fazia-nos ferver o sangue aquele afetado descuido. Felizmente, afinal, até ao nosso chefe atingiu esta indignação. Decidiu-se a agir. Só havia um meio de rápido emprego e deste lançamos mão. Fez marques da Cruz avançar a sua peça e uma granada silvou ao meio das aclamações dos nossos soldados. Atingiu a base de alta palmeira, que abrigava bom número de cavaleiros e depois de ricochetear explodiu no ar.

Foi, pelo menos, para nós, um prazer vermos o efeito produzido, a surpresa, o alarma, a confusão. Correram uns após os animais que a detonação dispersara; calvagaram outros, precipitadamente; e sem mais detença dispararam pelo campo, a todo o galope. Passados poucos minutos desaparecera o destacamento inteiro. Lançou-se-lhe segundo projetil, e logo em seguida terceiro, que alcançou mais de meia légua e deu a conhecer ao inimigo a força de nossa artilharia. Toda esta tropa fugidia só haveria de reaparecer diante da fazenda da Machorra, na fronteira.

Chegados, esta tarde, à margem de um ribeirão, que os espanhóis chamam Sombrero, fomos acampar no triângulo que ele ali forma, confluindo com o Apa. Admiramos este belo rio, fronteira dos dois países e cujo aspecto, com sua mata cerrada, tanto nos impressionara quando de longe o avistáramos. Grande futuro lhe está reservado após a guerra.

Desce o Apa por três galhos, logo confluentes, da serra dos Dourados, um pouco abaixo da colônia militar deste nome, a doze léguas, leste-sudeste da de Miranda. Corre a princípio para Oeste, 10° N. até o forte de Bela Vista, que se acha no paralelo 22, e daí, descambando para Oeste 10° S., vai com um curso levemente sinuoso banhar Santa Margarida, Rinconada e outros pontos fortificados até o Paraguai, em cujo leito se despeja.

Ao chegar pediu o coronel que lhe dessem água do Apa, e, ou porque lhe viessem á mente vagas reminiscências históricas, a propósito de caudais célebres, ou porque, após tanto abalo de espírito, experimentasse como que uma agitação febril, disse sorrindo: "Notemos a que hora provamos a água deste rio." Puxou o relógio, bebeu e acrescentou a gracejar: "Desejo que este incidente seja consignado na história desta expedição, se algum dia a escreverem." Pareceu empenhado que se lhe fizesse uma promessa em tal sentido. Foi o autor desta narrativa quem, em nome de todos, a tanto se comprometeu, e hoje o cumpre com religiosa exação porque a morte, de que estava o nosso chefe tão próximo, sabe, pela própria natureza enigmática, tudo enobrecer, tudo absolver e consagrar.

É neste ponto o Apa correntoso; mas as grandes lajes que lhe calçam o leito como que convidam a entrar em suas belas águas. Foi o que fizeram muitos soldados; passaram vários para a outra margem a dizer que iam conquistar o Paraguai.

À noite chegaram dois oficiais[1] que à hora do perigo vinham procurar-nos para conosco dele compartirem. A marchas forçadas acudiam de Camapuã. Adiantando-se à escolta haviam atravessado, não sem correr o risco de algum acidente, as nossas linhas de vanguarda. Só no dia seguinte apareceram os seus soldados ao acampamento, com um viajante por nome Joaquim Augusto, homem corajoso, mas que ao nosso contato só incitava o interesse pessoal.

No dia imediato, às nove da manhã, pôs-se a coluna em movimento e, atravessando o Sombrero, avançou sobre a margem direita do Apa, tendo à vanguarda o batalhão de voluntários. Muito tempo nos custou vencer uma légua, apenas. Sucedia a cada momento algum acidente às carretas das munições. Delas não nos podíamos afastar, próximos como nos achávamos do inimigo. Atingíramos quase, segundo a opinião dos refugiados, a primeira guarda paraguaia, a saber, o forte e a fazenda da Machorra, situada em território brasileiro, a uma légua e quarto para cá do forte de Bela Vista, que está construído na margem paraguaia.

Esperávamos, a cada passo, encontrar resistência. No entanto marchava sempre o nosso batalhão da vanguarda sem perceber ou sem medir a distância que as paradas continuas dos demais corpos punham entre ele e as outras unidades. Em vão soavam os clarins; já se afastara demais para que os pudesse ouvir. Deixá-lo assim isolado não era prudente; tornava-se indispensável mandar um próprio chamá-lo. Ofereceu-se o tenente-coronel Juvêncio e partiu logo com seus dois ajudantes-de-campo e Gabriel Francisco, o genro do guia, que conosco quis ir. Felizmente, tínhamos bons cavalos, dos que haviam resistido à epizootia; safaram-se de perigoso atoleiro, que pela ânsia de chegar não quiséramos contornar. Perdemos logo de vista o corpo de Exército, mas não percebíamos, ainda, nossa tropa já empenhada em combate, ao que supúnhamos, pelas descargas e disparos isolados dos atiradores. Víamos perfeitamente, por vezes, tremular a bandeira nacional, a que depois encobriam elevadas moitas. Parecia-nos, aliás, que não avançava. Em poucos instantes a rapidez da carreira dela nos aproximou e, como eletrizados pela sua vizinhança, atiramos os cavalos ás águas do volumoso ribeirão, que nos barrava o passo, o José Carlos, e afinal nos achamos reunidos aos nossos que, em lugar fechado, combatiam á entrada da Machorra.

Uma linha de paraguaios, assaz extensa, fazia frente ao ataque, ao passo que grande número dos seus se encarniçava, com uma espécie de furor, em destruir a fazenda, incendiando quanto parecia poder arder. Ocupava-se o nosso comandante da vanguarda[2] em examinar uma ponte que cumpria atravessássemos para envolver o inimigo. Foi então que o tenente-coronel Juvêncio lhe comunicou a ordem de estacar. Não permitiam as circunstâncias, porém, que a ela atendêssemos. Concordaram os oficiais na imprescindível necessidade de se ocupar a posição, custasse o que custasse.

Imediatamente a nossa linha de atiradores atirou-se a correr para a frente oposta, e pela própria ponte, porfiando todos em ardor.

Recuaram os paraguaios, mas em boa ordem. Tinham ordens, certamente, para não empenhar combate, mas somente reunir e tanger á retaguarda cavalos e bois que não queriam deixar-nos; e deviam ser numerosos, tanto quanto nos permitia avaliar a poeira que sua marcha ocasionava.

Foi o recinto ocupado: o tenente-coronel Enéias, ali, deu imediatamente nova formatura ao seu batalhão e o manteve numa série de posições que lhe valeu, posteriormente, não só a aprovação do coronel como gerais parabéns. Foram os nossos os primeiros recebidos. Aplaudiram todos o espírito de disciplina dos seus subordinados e o afã com que, logo à primeira voz, começaram a desentulhar o terreiro de objetos que o atravancavam, sem coisa alguma subtrair, assim como de quanto estava no interior das casas.

Neste ínterim apareceu o próprio comandante. Não vendo voltar nenhum daqueles que à vanguarda mandara, às pressas partira para constatar o que havia. O entusiástico acolhimento que neste momento lhe fizeram, e as aclamações dos soldados lhe causaram uma satisfação cuja expressão, malgrado a reserva habitual, a todos se patenteou.

Os auxiliares índios, guaicurus e terenas, não foram os últimos a se apresentar para o saque. Tão pequena disposição para o combate haviam mostrado que, na nossa carreira, ao lhe tomarmos a frente, lhes bradáramos: Vamos! Avante! Valentes camaradas! Agora se lhes transmutara a indolência num ardor sem limites para o saque. Já se haviam disseminado pelas roças de mandioca e de cana, de lá trazendo, imediatamente, cargas sob as quais vergavam, sem, contudo, encurtar o passo.

Vislumbrava-se um resto de crepúsculo, ainda quando o grosso da coluna chegou. Foi este o momento do atropelo e da balbúrdia: tantos objetos se avistavam sem dono, misturados e fadados à destruição. Cada qual tomou o seu quinhão, sendo exatamente os menos beneficiados aqueles que à presa tinham mais direito, pois o haviam conquistado sob o fogo inimigo e guardado, como propriedade pública, até o momento da depredação geral. Era este saque, aliás, legitimo, e não se teria podido, sem manifesta injustiça, recusar tal prazer aos soldados, que o haviam comprado e adiantado por uma série de meses de privações e fome.

Das oito ou dez casas da Machorra, duas estavam reduzidas a cinzas pelo fogo que os próprios paraguaios lhes haviam posto. Foram as outras preservadas pelos nossos soldados. Alguns pedaços do madeiramento, alguns mourões abrasados serviam para cozinhar as batatas, a mandioca e as aves do inimigo. A Machorra, denominada fazenda do marechal Lopez, não passava realmente de terra usurpada, cultivada por ordem sua, além da fronteira.

O trabalho dos invasores, frutuoso como fora, vinha acrescer ao banquete a satisfação de um sentimento de reivindicação nacional. Autorizou-o o coronel com um ar prazenteiro que jamais até então lhe percebêramos.

Notas

[editar]
  1. Os tenentes Augusto Pinto de Sousa e João Luís do Prado Mineiro.
  2. O tenente-coronel Enéias Galvão.