A Retirada da Laguna/X
Íamos, apesar de tudo, encetar a retirada. Sabia o inimigo que os movimentos de nossa coluna, fosse qual fosse o sentido tomado, tinham motivos a que era alheia a sua superioridade militar sobre nós. O combate que nos entregara o seu acampamento abatera-lhe a presunção, elevando ao mesmo tempo a confiança de nossa gente, em si própria, à altura das provações que o futuro nos reservava, assim como das que já experimentáramos.
Era indispensável a vantagem obtida sobre os paraguaios para que a realidade de nossa situação se fizesse, sem murmuração, aceita dos nossos soldados, distraindo-os da imprevidência causadora de tão premente momento. Fácil sem dúvida achar pretextos para a falta de víveres, tendo as informações dos refugiados podido iludir-nos acerca dos recursos da região, mas a insuficiência de munições, logo em começo de campanha, não podia deixar de constituir motivo de injustificável censura pelo fato de que tudo de antemão devera estar calculado pelos nossos chefes, muito embora os exaltassem o entusiasmo, a paixão da glória e o amor da Pátria.
Quando, no dia seguinte, 8, o sol se levantou (era um dia dos mais serenos) já estávamos em ordem de marcha com as mulas carregadas, os bois de carro nas cangas, e tudo quanto restava de gado encostado ao flanco dos batalhões, de modo a seguir todos os movimentos da coluna.
Às sete da manhã, o corpo de caçadores desmontados, a quem competia o turno da vanguarda, abriu a marcha, tendo a seguir bagagens e carretas, circunstância que nos impediu de transpor facilmente um riacho avolumado pelas chuvas dos dias antecedentes. Caindo um de nossos canhões à água só o tiramos com grande dispêndio de tempo e esforços. Nesta ocasião os ímpetos de sofreguidão do coronel Camisão ameaçaram reproduzir-se. Conseguiu, contudo, refreá-los; e desde aí jamais lhe notamos vestígios sequer da antiga agitação; e sim, unicamente, uma solicitude sempre devotada à salvação comum.
Avançávamos em boa ordem quando subitamente viva fuzilaria se fez ouvir: era a nossa vanguarda que renteando um capão de mato fora atacada por uma partida de infantaria, ali emboscada. Tinham algumas balas vindo cair por cima das fileiras num grupo de mulheres que marchavam tranqüilamente ao lado dos soldados; tal algazarra provocaram que não sabíamos o que poderia ter sucedido. Pouco durou este terrível tumulto; investindo resolutamente com o inimigo, nossa gente o desalojou impelindo-o até o primeiro declive do planalto, onde estava a fazenda da Laguna. Mas ali formaram-se os paraguaios novamente, resistindo algum tempo, achegando-se logo depois, passo a passo, dos cavalos; afinal, enquanto alguns, já montados, disparavam, a todo dar de rédeas, outros fingiam resistir para proteger os camaradas que fugiam a bom fugir, inteiramente derrotados.
Continuando a simular esta desordem aparente, pela qual procuravam separar-nos uns dos outros, o mais que pudessem, vimo-los, pouco a pouco, estacar com mais freqüência, sempre mais numerosos, à medida que os reforços lhes chegavam. Ao mesmo tempo o nosso corpo de caçadores, contra eles lançado, cada vez mais se isolava do resto da coluna. Redobrou, então, de intensidade a fuzilaria.
O capitão Pedro José Rufino, que à testa dos caçadores atravessara o ribeirão, depois da bagagem, e se encontrava mais perto da vanguarda, embora ainda bastante longe, percebeu logo o estado de coisas. Depois de expedir um oficial para pedir socorros, deu voz de avançar; e ele próprio atirou-se, sem atentar a quem o acompanhava, ao ponto do mais renhido entrevero. Chegou no momento em que os paraguaios, após todas as suas evoluções de cavalaria, simulando a fuga para depois ganharem terreno, subitamente voltaram, carregando furiosamente. A princípio surpresos, e algum tanto perturbados, mas logo confiantes à voz de Rufino, formaram os nossos quadrados em torno dos oficiais, segundo a ordem recebida; e destes grupos, fora dos quais só havia morrer miseravelmente, sob o sabre e a lança, despejaram-se descargas acompanhadas de aclamações estrepitosas.
Enfim, cerrando fileiras, retomaram os caçadores o movimento para a frente no meio deste turbilhão de homens e cavalos, para se encostar aos capões de mato que, aqui e acolá, se viam pelo campo. Encarniçada peleja onde, de ambos os lados, muitos mortos e feridos houve.
O imediato do corpo de caçadores, Antônio da Cunha deveu a vida à dedicação de um dos seus soldados. Deu-se em outro ponto um episódio freqüentemente relatado mais tarde. Parecia o capitão Costa Pereira o alvo dileto dos assaltos de possante cavalariano; quis acabar com isto e, abrindo espaço, lançou-se fora do quadrado, movido de tal ímpeto que o adversário, intimidado, deu de rédeas a fugir, com grande aplauso dos nossos.
Neste ínterim chegara, a toque-toque, o reforço pedido por José Rufino; e isto precisamente quando lhe iam os cartuchos acabar. Trazia um canhão a primeira companhia que entrou em linha; e uma de suas granadas foi arrebentar no ponto em que mais se adensavam os assaltantes. Esta arma, introduzida inesperadamente na ação, produziu o costumeiro efeito. Espalhou imediatamente a desordem na tropa já abalada pela aparição do socorro; e toda a cavalaria paraguaia desapareceu, deixando um segundo acampamento em nosso poder. Custou-nos isto quatorze mortos e muitos feridos.
Entre estes últimos não podemos esquecer um jovem soldado, Laurindo José Ferreira, que, cercado por quatro inimigos e apenas tendo o fuzil para se defender, todo golpeado de abraços, com a mão esquerda atingida, braço direito profundamente retalhado em diversos lugares e o ombro quase arrancado por um lançado, assim mesmo se não rendeu. Só muito mais tarde veio a restabelecer-se de tantas feridas; a firmeza na ambulância em nada lhe desmentira a bravura ante o inimigo.
Fora o pessoal do nosso serviço médico muito perseguido pelas febres palustres de Miranda. Haviam-nos deixado vários de seus membros; além de tudo as nossas caixas de cirurgia e de farmácia tinham-se todas perdido ou deteriorado, devido aos acidentes da viagem.
Puderam, contudo, os nossos feridos receber ainda todos os socorros de que precisavam, graças aos esforços da engenhosa humanidade de que foram alvos. Superintendera o comandante, sempre, este serviço, e tivéramos a felicidade de conservar dois hábeis clínicos, os doutores Quintana e Gesteira. Pertencia este último ao corpo empenhado no embate de 6, e, sob as balas, dera provas de dedicação e sangue-frio, como verdadeiro discípulo do grande Larrey.
Os cadáveres paraguaios não arrastados pelo laço dos compatriotas foram, todos, achados mutilados e de modo hediondo. A propósito de tais profanações fez o coronel violentas exprobrações aos índios, acenando-lhes até com a pena capital, se acaso, daí em diante, desrespeitassem os mortos. Tais a sua indignação e o pavor aos selvagens incutido, que até o fim da campanha, ficamos livres de semelhante espetáculo, e isto quando já o nosso chefe deixara de existir.
Juntando o exemplo às palavras fez o coronel Camisão inumar, sem exceção, todos os corpos achados no campo de batalha, com o zelo da escrupulosa piedade que tanto era da sua índole. Duas horas se consagraram à triste contingência de entregar os nossos infelizes patrícios à terra inimiga. Que tristeza vê-los assim desaparecer; e que choque não deveria ter sentido um de nossos oficiais ao fazer questão de sepultar, ele próprio, o irmão mais moço, Bueno, voluntário paulista!
Cumprido este dever, recomeçamos a marcha, desta vez seguindo a ordem recentemente adotada.
Dera-se uma peça ao corpo de caçadores, que ainda formava a vanguarda; o 17.° batalhão, dos voluntários de Minas, que também tinha um canhão, compunha a retaguarda. No centro, o 20.° batalhão e o 21.º, cada qual com a sua boca de fogo, escoltavam, à direita e à esquerda, a bagagem flanqueada de duas filas de carretas puxadas por bois. O conjunto desta massa movediça parecia um grande quadrado que, em cada face, tinha um menor diante de si; judiciosa formatura para nos proteger das cargas de cavalaria; porquanto podiam as quatro frentes ser varridas pelo fogo cruzado de nossa infantaria. Enfim, para maior segurança, linhas de atiradores circulavam em torno do corpo de Exército. Desde este primeiro dia verificou-se quão vantajosa era tal disposição porquanto estava a cavalaria inimiga, por toda a parte, em torno de nós: à frente, sobre os flancos; atrás, ora longe, ora quase a nos tocar. Nossos soldados, marchando sempre, afastavam-na por meio de descargas, freqüentes, e tanto mais profícuas quanto ao resultado quanto mais se aproximavam os paraguaios. Algumas de suas balas também atravessavam as nossas fileiras, mas sem grande dano pela incerteza do tiro disparado a galope. Entretanto, acabaram as balas de artilharia por visitar-nos.
Atravessávamos, então, o terreno lamacento, fundo, de planície cortada de estreitas esplanadas, paralelos umas às outras, e uma peça paraguaia de 3, sucessivamente assestada nestes pontos, abriu fogo contra nós; mas, ou porque a sorte neste particular ao menos nos favorecesse, ou graças à inexperiência dos artilheiros inimigos, iam-lhe os projetis enterrar-se na lama que nos rodeava; ou, então, os menos inofensivos caíam no meio do nosso gado com mais estrépito do que prejuízo.
Os nossos soldados, cuja primeira impressão fora bastante viva, não tardaram a rir do que viam e até as próprias mulheres acharam nisto assunto de mofa comparando estas balas, que faziam repuxar a água, aos limões-de-cheiro do velho carnaval brasileiro. Demais tínhamos boa réplica à "palavra do bronze"; da linguagem imaginosa do velho Lopes.
Ainda neste dia não desmentiu a nossa artilharia sua superioridade. As nossas peças raiadas de calibre 4, La Hitte, bem assentes, perfeitamente sólidas, eram manobradas, com a maior regularidade, por suas guarnições que, desde o Taboco, com elas se exercitavam. Havia entre elas bons artilheiros. É preciso acrescentar que os nossos oficiais da arma de artilharia, tão hábeis quanto bravos, todos dignos êmulos uns dos outros, cada qual se esforçava por melhor manobrá-las: João Tomás da Cantuária, Marques da Cruz, Napoleão freire e Nobre de Gusmão. Tal porfia sobremodo interessava aos nossos soldados, incutindo-lhes ardor novo cada tiro que atribuíam ao seu artilheiro predileto. Assim caminhamos dia todo num caos de fumaça e poeira, com grande estrépito, e no meio das aclamações dos nossos, de gritos agudos e ferozes do inimigo, mugidos do gado, explosões da pólvora, desordem dos homens e das coisas.
Declinava o sol quando percebemos distintamente o Morro da Margarida, o mesmo que já de outro ponto observáramos do forte de Bela Vista, marco de reconhecimento que desta vez nos brilhou aos olhos com um raio de esperança. Fizéramos duas e meia léguas sob o fogo contínuo e cansativo, muito embora pouco mortífero.
A mata da margem do Apa-Mi nós a escolhêramos para o pouso daquela noite. Íamos atingi-la quando verificamos que a bateria montada dos paraguaios desde muito se adiantara pela esquerda, achando-se agora postada em frente à nossa vanguarda. Varriam suas balas a margem onde íamos ficar encurralados, pois havia pouco fora destruída a ponte ali existente. Era tempo que os nossos canhões, penosamente arrastados até o alto da eminência aposta à que o inimigo ocupava, começassem a fazer-se ouvir. Não tardaram a obrigar que os paraguaios, cuja peça de 3 foi até desmontada, calassem o fogo.
Este combate, que pôs termo ás refregas do dia, não durou menos de uma hora. Não foram consideráveis as nossas perdas, um morto apenas e alguns feridos. Podíamos, pois, considerar como vantagem as provas que de sua firmeza, a proteger a bateria, nos dera o 20.° batalhão. Pareceu-nos o fogo paraguaio melhor dirigido do que até então, mas nossa gente não arredou pé. Eram, entretanto, simples recrutas valetudinários, saidos de Goiás, verdade é que comandados por valente oficial, o capitão Ferreira de Paiva. Ficamos sabendo o que podíamos esperar da coragem e da abnegação de todos para o resto da retirada. Neste ínterim, os membros da comissão de engenheiros estabeleciam a ponte. Trabalharam rapidamente, sob as vistas do comandante. Cumprimentou-os pelo serviço e foi o primeiro a passar. Todo o resto da coluna o acompanhou sem maior detença e veio acampar à margem direita do Apa-Mi. Mas já patrulhas de cavalaria paraguaia, que haviam atravessado o rio, a jusante de nós, estavam a observar-nos.
Caíra a noite, profundamente escura. Estávamos estrompados de cansaço, a vista escura e o espírito abalado por tantas e tão variadas impressões cujas imagens acabavam por se confundir. Não houve quem armasse tenda ou barraca. Dormimos em grupos, formados quase ao acaso, de três, quatro ou mais, conchegados uns aos outros, cobertos em comum por capotes, ponchos, mantas, com quanto encontráramos; cada qual com o fuzil, o revólver ou a espada ao alcance da mão e o chapéu desabado sobre os olhos, para se resguardar do orvalho, tão copioso que tudo encharcava.