A Valla
Trazei mortos á valla; a hydra está com fome
E deve ser-lhe longa a hora em que não come!
Olhae como ella mostra aquelles que a vão ver,
Inerte, sem pudor, de fauce escancarada,
A amargura cruel da bocca desdentada
Que pede de comer!
Lançae ao monstro informe algum repasto novo!
Trazei-lhe carne humana; arremeçae-lhe o povo.
Tranzido pelo frio ou morto pelo sol!
E visto haver na fera abysmos insondaveis
Mandae-lhe as legiões dos grandes miseraveis
Que morrem sem lençol!
Eu quero vel-a farta, a lugubre panthera,
Que, na sombra agachada, olhando em roda, espera
A preza que lhe inveja a gula dos chacaes.
Começa a ouvir-se ao longe a marcha vagarosa
Da triste procissão cruel e dolorosa
Que vem dos hospitaes.
Um velho esquife chega: em duas taboas toscas
Um pobre semi-nú coberto já de moscas,
N'um riso deixa ver não sei que tons crueis!
Emquanto nos sorria a luz das noites bellas,
Talvez que elle varresse a lama das viellas
E o lixo dos bordeis!...
E poude, em fim, dormir no seio bom da morte!
Apoz, como se fôra a livida consorte
D'aquelle vil despojo, ás mesmas horas vem,
Trazendo por sudario os seus vestidos rotos,
Uma triste mulher caída nos esgotos
Sem bençãos de ninguem!
Devora-os ambos fera! Engole-os juntamente:
Reune-os em consorcio e dá-os de presente
Á larva que partilha as ancias do teu ser!
Aguça o teu desejo!—A garra infecta lança
Ao corpo tenro e nú d'uma gentil criança
Que a mãe te vem trazer!
Redobra d'appetite! Alonga-se a teu lado
A fila tenebrosa! O espectro do soldado
A par do que vergou cançado de cavar:
E o mineiro sem luz, o martyr legendario;
E amparando-se a custo ao velho proletario
A flôr do lupanar!
Mastiga a turba vil e alonga essa guela!
Bem vês que vem chegando um corpo de donzella
Que pela candidez recorda uma vestal!
Voou-lhe, n'um sorriso, o derradeiro arranco
E traz viçoso ainda um grande lyrio branco
No seio virginal!
Ó monstro sensual na sombra tripudia!
Celebra no silencio a tenebrosa orgia,
Que as Deusas vem chegando ao lubrico festim!
N'um beijo os labios colla á frigida epiderme
E o D. Juan da morte, o cavalheiro Verme,
Que viva e gose emfim!
Eu quero ver-te farta, em halitos profundos,
Dormindo o somno vil dos animaes imundos,
De ventre para o ar; serpente infecta e má!
E ámanhã, na estação dos candidos amores,
Veremos rebentar n'um tapete de flôres
O lixo que em ti ha!
E a santa mocidade; as languidas mulheres;
Virão depois colher os gratos malmequeres,
Pizando-te sem medo e cheias de desdem,
Em danças sensuaes; o fato em desalinho;
Compondo-te canções; regando-te de vinho;
Sem pena de ninguem!
E tu que és monstruosa, infame, vil, medonha;
Que não mostras pudor; que não sentes vergonha;
Que és a campa-monturo e não pódes ser mais;
Cingida em fim, tambem, de rosas orvalhadas,
Terás dado um perfume ás almas namoradas,
E pasto aos animaes!