A Viúva Simões/XIII

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A ama Josefa rematava uma costura quando sentiu um farfalhar de sedas pelo corredor.

- Um gente? como Iaiá vem bonita!

- Escute, Josefa, atalhou Ernestina, eu hoje espero uma visita aqui, em sua casa! Preciso da sala, ouviu?

- A casa toda é sua!...

- Que horas serão?

- São duas...

- Não pode tardar!...

Josefa correu à sala, para tirar de cima do sofá e das cadeiras, camisas engomadas, dos fregueses, que lá tinha estendido, cobertas com uma tarlatana cor de rosa... E nesse trabalho ia pensando que a Ernestina era uma tonta, mesmo uma criatura muito sem juízo, e concluía:

- Por que diabo não se casará ela de uma vez?!

Quando voltou para dentro, encontrou a viúva Simões em frente do espelho, compondo os anéis do cabelo.

Mirou-a toda. Nem um vestígio de luto no seu traje!

Ernestina levava um vestido de seda mole, que lhe caía rente ao corpo, mostrando-lhe as formas delicadas da cinta, do seio e das pernas. Tinha nas orelhas duas safiras, a pedra da felicidade, que sorriam nas suas cintilações como dois olhos de anjo rebelde. Por toda ela escorria um aroma quente.

- Esse vestido é novo? perguntou a ama.

- É; não vê que tem a cor da moda?

- Azul... ou cinzento...?

- Azul elétrico.

- Ah!.. não sei que mais hão de inventar! Iaiá agora anda muito chic !...

Ernestina sorriu; mas depressa as sobrancelhas contraíram-se, formando-lhe uma ligeira ruga acima do nariz; esteve um momento silenciosa, pensativa e imóvel; tornou, porém, depressa a alisar com a mão a seda do corpinho. Tirou do bolso uma caixinha redonda, pouco maior do que uma noz, abriu-a, puxou por um pom-pom quase microscópico e agitou sobre o rosto com toda a sutileza, espalhando uma nuvenzinha de pó de arroz.

- Iaiá sempre dizia que não haverá de usá nunca essas coisas!... - observou a ama.

- Eu era moça! E hoje...

Houve um relâmpago de ódio a fuzilar-lhe nos olhos...

- É velha?! perguntou a outra rindo.

Ernestina não respondeu; limpava com a ponta da toalha umedecida na água as pestanas e as sobrancelhas, que se desenhavam negras e finas numa leve curva harmoniosa. Depois, sacudiu os ombros com o lenço, examinou os dentes, as unhas... e prestou o ouvido atenta; sentira passos.. mas os passos passaram e ela então disse com um sorriso irônico:

- Uma mulher apaixonada não deveria nunca envelhecer.

Bateram. Josefa correu a abrir a porta da sala; Ernestina relanceou a vista para o espelho e murmurou num desafio quase triunfante:

- Sara! Vamos a ver qual de nós duas vence!

Dois minutos depois, ela entrava na sala. Luciano foi ao seu encontro com um modo embaraçado, conquanto afável. Ernestina fixava-o com altivez.

- Chamou-me e aqui me tem, disse ele procurando sorrir.

- Compreende porque não lhe pedi que fosse antes a minha casa.

- Não...

- Não?!

- Não.

- Deveras? E riu-se. Depois, num tom ora precipitado, ora lento:

- Pois vai compreender. Trata-se de minha filha.

Luciano não pôde reprimir um movimento de surpresa. A viúva observou-o um instante e continuou:

- O senhor tem tido várias vezes a bárbara franqueza de me dizer que a não pode suportar! Ela, além de todos os defeitos da má educação, tem a enorme desvantagem de ser o retrato do pai!... Ora, refletindo em tudo isso e de acordo com uma idéia sua, já mais de uma vez manifestada, resolvi uma coisa: - casá-la!

Luciano estremeceu, mas continuou silencioso e sério. Ernestina tinha o olhar cravado nele, procurando estudar-lhe os gestos e penetrar-lhe no pensamento. Aquele olhar cheio de fogo e de paixão perturbava-o tanto como as palavras que ia ouvindo.

- É já tempo de lhe declararmos o nosso amor e os nossos projetos. Para que o casamento se realize, é forçoso separar-me dela... assim o senhor me tem dito... Aconselhe-me agora.

Luciano quis falar, mas deteve-se. Ernestina esperou um segundo.

- Porque não responde? O senhor nunca teve cuidado em esconder de mim o mal que lhe queria. Disse-me muitíssimas vezes que a achava intolerável, mal educada, autoritária, feia e antipática. Foi por sua causa que eu a mandei para Friburgo; foi por inexplicáveis pedidos seus que escondi até hoje as nossas intenções, como se elas fossem criminosas.

"Não me tem custado pouco o mentir à minha filha, acredite! Se ela não tivesse por mim a veneração, o amor absoluto que me faz parecer a seus olhos a mais pura e a melhor das mulheres, que julgaria de mim?!

"Muitas vezes o senhor me tem dito que pareço indiferente ao seu amor, e fria!... Entretanto fique certo de que a minha frieza e indiferentismo têm-me custado um grande esforço, porque bem sabe que o amo com veemência, que o amo com paixão!

A voz de Ernestina tinha urna sonoridade nova, ondeando, entre a censura e a queixa, e a maneira acentuada e firme porque falava revestia-a de um encanto singular.

Houve uma pausa; a viúva Simões cortou-a com azedume:

- Devemos casar Sara quanto antes.

- Casá-la... - balbuciou Luciano como um eco.

- Sim! Eugênio Ribas ama-a, e como é seu amigo lembrei-me de uma coisa...

- É verdade?!

- É certo; e o que o senhor tem a fazer é o seguinte: - Vá ter com o Eugênio, prontifique-se a pedir a mão de minha filha, depois....

- Depois?

- Vá à minha casa e consulte a opinião de Sara; elogie o rapaz, que é na verdade digno. Em seguida poderemos declarar-lhe as nossas intenções.

Ernestina falava com uma linguagem estudada, reprimindo os sentimentos, domados por um esforço de vontade que já não podia sustentar.

Contemplaram-se por algum tempo silenciosos. Luciano com espanto. Ernestina com altivez: por fim, ele disse baixo, num tom magoado:

- É impossível!

- Impossível! Por que?! Não tem sido o senhor mesmo a insinuar, a aconselhar, a exigir mesmo, que eu case minha filha?! Além de tudo, ela ama o Eugênio...

- Ah!

- Adora-o!

- Confessou-lhe isso já? perguntou Luciano.

A viúva não teve coragem de sobrecarregar sua impiedosa mentira e, corando um pouco, acrescentou:

- Sei que ela o ama... vive a falar nele a propósito de tudo... basta ouvir-lhe o nome para embaraçar-se... surpreendi-a pedindo á Georgina notícias dele... É natural, são ambos moços... são ambos bonitos...

- Sim... são ambos moços... Luciano baixou a cabeça entristecido por aquela confidência, pensando na felicidade do outro. Ernestina compreendeu-o talvez e agarrou-lhe na mão com doçura, falando-lhe baixinho e tratando-o por tu, pela primeira vez.

- Oh! meu Luciano, como te amo! Como eu te quero bem! Havemos de ser felizes... Há tantos anos já que nós sonhávamos com essa felicidade!... Lembras-te? Eu era ainda menina! Quando vesti o meu primeiro vestido de mulher, eu já te amava! Foste tu que despertaste o meu primeiro sonho... serás tu quem me feche caridosamente os olhos quando eu morrer, beijando-te! Meu marido! Meu marido! Luciano! Lembro-me ainda de todas as palavras que me dizias há vinte anos!... Dize-me outra vez que me amas... Estás triste!... Eu daria todo o meu sangue para que fosses feliz! Amo-te assim.

Luciano ia sentindo reviver pouco a pouco o amor. Sara amava outro? Que amasse! Era tempo de acabar com aquilo; que se casassem depressa e lhe fugissem dos olhos.

Ernestina falava agora, falava sempre, já sem calma, feliz, desatando frases de queixa, de censura, de desespero e de amor, deslumbrando Luciano com a sua voz quente, a sua formosura miraculosamente rejuvenescida nessa hora de enlevo e de paixão ardente e concentrada.

Ele já não a observa com reserva, mas com admiração.

A pouco e pouco a palidez mate, o luminoso olhar da viúva, toda aquela febre em que ela se revolvia, iam-lhe acendendo desejos de a apertar nos braços. Ela percebeu isso e postou-se defronte dele, com o corpo arfando sob a seda mole do vestido e a cabeça inclinada como a pedir beijos.

Luciano ergueu-se desvairado e quis beijá-la, ela furtou-se a isso nuns movimentos arredondados e lânguidos, e, baixando a cabeça muito risonha e feliz, disse-lhe quase num murmúrio:

- Depois...

Foi então Luciano quem prometeu ir falar ao Eugênio e combinou a maneira de o fazer sem indiscrição. A viúva envolvia-o num longo olhar voluptuoso e perturbante, ele ia prometendo tudo quanto ela queria e mandava.

- Amanhã ficará tudo acabado? perguntou-lhe por fim Ernestina.

- Assim o espero.

- Adeus.

Nessa tarde, Ernestina ao tirar no seu quarto o lindo vestido de seda, parou em frente ao espelho, olhando para os braços e o colo nus, de um moreno delicado que a luz tingia de um reflexo dourado. Contemplou-se por muito tempo e concluiu triunfante:

- Sara é moça, mas eu sou mais bonita!

Luciano saíra tonto! As palavras de Ernestina, o seu corpo esbelto, as atitudes provocantes, o aroma forte que a envolvia, e aquela cena de paixão e de enleio, tinham-no alvoroçado. Ele acostumara-se à serenidade um tanto fria da moça; o seu amor por ela já se ia tornando num hábito mais digno do nome de amizade. Agora, porém, as coisas mudavam e ele sentia que iam mudando a tempo.

Durante todo o resto do dia, vibraram nos seus ouvidos as expressões queixosas de Ernestina, e as narinas dilatavam-se-lhe, sentindo como que impregnada a essência dela no seu fato, na sua própria pele!

À tarde deveria procurar o Eugênio, mas às primeiras horas da noite ainda o encontraram em casa, e em casa ficou sem resolução, atado. A verdade era que, com o correr das horas, Ernestina ia cedendo lugar à filha, e ele sofria querendo e não podendo cumprir a extravagante missão que lhe dera a Simões.

Luciano mesmo estranhava aquela indecisão. Sara não lhe era nada, havia poucos dias apenas que percebera que ela não era feia e que tinha espírito. Procurava abster-se de pensar nela, mas o pensamento teimoso voltava a reproduzi-la num deleite amargo. À proporção que o tempo avançava, ele enfraquecia no propósito de obedecer a viúva. Não compreendia agora o amor de Sara por Eugênio Ribas.

Supunha a confidência de Ernestina um estratagema.

Ele tinha julgado ler nos olhos de Sara, essas estranhas pupilas ora castanhas ora azuis, alguma coisa de infinitamente doce, uma promessa, um sonho, um vôo de pensamento que parecia dirigir-se a ele.

Com a ausência, o vulto de Ernestina ia-se esfumando no seu espírito, e numa irradiação de luz ele via Sara, dizendo-lhe na sua grande franqueza:

- Amo-a!

E era toda essa graça, lealdade e candura, toda essa mocidade e alegria que ele ia oferecer a outro, a um estranho, que a não compreenderia nunca talvez! Esposa...

Ele também a preferiria para esposa, quereria ser ele a conduzi-la ao altar a chamá-la - minha!

Em toda a sua vida era a primeira vez que essa palavra simples assumia no seu pensamento proporções tão belas! E Sara haveria de sagrar essas três silabas divinas com as suas qualidades perfeitas, seria esposa amorável e honesta a quem a mentira repugnasse e o sacrifício aprouvesse!

Não se resignando a falar ao Eugênio Ribas nesse mesmo dia, Luciano sentou-se à mesa e escreveu longamente à viúva Simões. Alegou necessidade urgente de partir nessa madrugada para Minas, para onde o chamava, por telegrama, um velho parente moribundo...

Adiava tudo para a volta.

Luciano escreveu aquilo com a convicção de poder mais tarde vencer a sua vontade e apressar o casamento de Sara. Entretanto, percebia bem: se Ernestina era para ele a mulher de fogo que lhe queimava a carne, a filha era a mulher de luz benéfica que lhe iluminava o futuro, e ele amava a ambas, a uma com os sentidos, a outra com o coração.