A Viúva Simões/XIV

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Fazia um calor abafadiço e medonho.

Pelas janelas abertas da sala via-se a cidade coberta por um pesado véu cinzento da atmosfera enfumaçada e densa.

As plantas enlanguesciam no jardim e a areia faiscava na sua alvura brilhante.

Ernestina estava na sala, onde o retrato do marido reassumira o seu antigo posto. Caíra num grande abatimento.

A carta de Luciano tinha-a amargurado. Era evidente que ele fugira à entrevista com o Eugênio Ribas: Amaria então muito a filha? Era isso o que a desesperava.

Compreendia finalmente que não soubera inspirar a Luciano mais do que uma paixão carnal. O coração e o espírito tinham vivido alheios. Ele quisera um galanteio e ela dera-lhe todo o seu amor.

Envergonhava-se de ter sido tão crédula; se o tivesse tratado com desdém, ele adorá-la-ia talvez! pensava ela.

Tomou a ler a carta, e amarrotou-a com desespero. Vendo fugir o noivo sentia recrudescer a sua paixão. Amava-o como nunca!

A rivalidade com a filha exacerbava isso. A mocidade de Sara era a sua tortura. Invejava aqueles dezoito anos, aquela alma primaveril, aquele rosto fresco e tranqüilo. Estremecia, com medo da velhice, da sua fatal e terrível decadência que sentia já perto, muito perto.

Suprimir Sara, pelo casamento, era o seu sonho de ouro! Na sua imaginação doente surgiam idéias extravagantes. Pensou em ir ela mesma, procurar o Eugênio Ribas, ou fazer-lhe constar pelo Nunes, que daria um grande dote à filha...

Ernestina era delicada e repeliu depressa essa lembrança. Seria expor a filha a comentários, isso nunca! Como sair daquele embaraço? Queria vencer, custasse o que custasse. Seria abominável que Luciano lhe fugisse uma segunda vez! A sua esperança era de que a filha não retribuiria nunca o amor dele!

Ernestina imaginara que haveria de ser cada vez mais amada, exatamente por não ter cedido aos desejos e solicitações do noivo e eis que via agora desmoronarem-se todos os seus cálculos e aspirações.

Enraivecia-se contra Luciano! Imaginava os mais estranhos e esquisitos meios de prendê-lo a si. Já não importava tanto que ele amasse a outra, contanto que se casasse com ela!... Ser abandonada sendo formosa e livre, era uma monstruosidade! Depois, Ernestina já se humilhava a que o Luciano se deixasse amar, unicamente desde que pudesse dizer alto à vista de toda a gente, a verdade que sepultava na alma havia tanto tempo! Ser feliz com ele, por ele, dedicar-se-lhe completa, absolutamente, era o seu sonho.

Tinha fé que todo o seu carinho, todo o seu amor e cuidado cativariam o marido mais do que haviam cativado o amante!

No meio destes pensamentos, que se atropelavam desordenadamente no seu cérebro, a viúva foi interrompida por Sara que entrando na sala foi direita a ela.

Mãe e filha olharam-se, como adivinhando-se.

Subitamente a moça, que era como fora o pai, de uma franqueza arrojada, disse num tom sacudido e firme:

- Tenho que lhe dizer.

- Ah!...

- Deu-me ontem a entender que o Eugênio Ribas quer casar comigo...

- Sim, quer.

- Pois eu não quero.

- Oh! Ele é um moço excelente, muito bem educado.

- Seja o que for; não gosto dele.

- Minha filha! repara que ele faria a tua felicidade...

- Não. Enfim mamãe eu só lhe peço uma coisa...

Ernestina ouvia-a, suspensa.

- Se ele vier pedir a minha mão, não me consulte; diga-lhe logo que eu amo outro.

- Amas outro?!

- Sim.

- Quem é esse outro? perguntou Ernestina com medo, com uma voz abafada, segurando-se ao braço da filha.

- Luciano.

- É mentira! exclamou Ernestina já de pé e com raiva, é mentira!

Sara olhava-a com pasmo; a viúva deteve-se um minuto, depois puxou-a para si, beijou-lhe a tranças, as faces, os olhos e murmurou quase numa súplica:

- Ah... dize-me que é mentira!

Sara não respondeu: olhava-a sempre com o mesmo olhar espantado e mudo.

A mãe levou-a até o sofá, fê-la sentar-se, sentou-se ela também e segurando-lhe nas mãos deixou-se resvalar até ficar quase de joelhos aos pés da filha. E foi assim, com os olhos empanados de lágrimas que ela disse:

- Eu também o amo, Sara, eu também o adoro!

A moça teve um gesto de horror e de susto a mãe prosseguiu:

- Escutai para ti ele é um amor que começa, um capricho de criança talvez, que se apagará depressa; e para mim ele é a vida, toda a minha mocidade! Eu era ainda mais nova do que tu e já o amava!

Abandona essa idéia! Tens um futuro tamanho!.. amarás depois outro homem, mais novo, mais belo, mais digno de ti! Eu é que estou no fim... eu e que já não tenho esperança e que morrerei se ele me desprezar!

Sara, com o rosto voltado para fora, não respondia. Ernestina suplicava-lhe:

- Olha para mim! Não imaginas o sacrifício que tenho feito para te esconder este amor! E ele é tão velho em meu coração! Quando eu te gerei, quando te sentia nas minhas entranhas ou que te suspendia no meu seio, ele já palpitava em mim, com o mesmo fogo, com a mesma violência!

Sara voltou os olhos para o retrato do pai e duas lágrimas grossas deslizaram-lhe devagar pelas faces.

Surpreendendo a dolorosa piedade que aquele gesto exprimia, Ernestina murmurou:

- Respeitei sempre teu pai e procurei por todos os modos fazê-lo feliz... Se o meu coração era de outro...

A filha sufocou-lhe a frase tapando-lhe a boca com a mão, fria e nervosa. Houve uma pausa, ouvia-se a cansada respiração de ambas. Sara a retirou mão com um movimento brusco, Ernestina soluçou baixo:

- Dize-me que lhe fugirás!

Sara não respondeu.

- E hás de ser tu, minha filha! quem me roube a ventura com que desde menina sonho! Sara eu sou uma louca! Ah! Na minha idade as paixões são assim, levam a estes desatinos! Como é cruel a velhice!... como tu és feliz, minha Sara!

Ernestina cobrindo de beijos a mão gelada da filha foi-lhe contando tudo baixo e precipitadamente.

Revelou assim numa doidice indiscreta, as promessas e exigências de Luciano, os seus conselhos e até os seus ditos ferinos contra a filha!

Já exausta, Ernestina deixou-se cair sentada na alcatifa. Sara então levantou-se, atravessou a sala sem olhar para trás e saiu. A mãe ficou só com o rosto sumido no estofo de um fauteuil, soluçando alto como uma doida!