A Viúva Simões/XV
Sara encerrou-se no seu quarto. Sentia-se atordoada e opressa. Esteve longo tempo à janela com os olhos parados no azul acinzentado do mar.
A pouco e pouco via esclarecidas muitas passagens de outrora: frases irônicas e secas de Luciano, atitudes constrangidas da mãe e mesmo certos ditos levemente maliciosos da Georgina, que tinha sido, como sempre, muito mais perspicaz do que ela...
Isso tudo vinha-lhe à memória demoradamente, como se umas coisas arrastassem outras.
Mas afinal, o que tangia com mais dor no seu coração, eram aquelas pungentíssimas palavras da mãe, referindo-se à antiguidade do seu afeto: "Quando eu te gerei, quando te sentia nas minhas entranhas ou que te suspendia no meu seio, ele já palpitara em mim com o mesmo fogo, com a mesma violência!"
Eram essas expressões nervosas e apaixonadas que soavam mais repetidamente aos ouvidos da moça.
Por que se teria casado a mãe! Por que teria mentido àquele santo, que se não fosse a filha estaria completamente esquecido na terra? Envergonhava-se como se, por ter sido concebida sob a influência desse amor, tivesse comparticipação no crime da mentira. Votava tal adoração à memória do seu querido morto, que, mais pequena ainda que tivesse sido a falta, lhe pareceria uma monstruosidade! Amar um homem e casar com outro era, aos seus olhos castos, uma ignomínia! Que mistério haveria em tudo aquilo? Por que não se teriam eles declarado e unido se eram ambos livres?! Começava a duvidar da honestidade da mãe; queria-a toda voltada para aquele que a amara, leal, exclusivamente!
A confissão de Ernestina fora até a brutalidade. Para que desvendar-lhe as queixas e antipatias de Luciano? Não precisava disso para compreender agora tudo: a retirada do luto antes do tempo... a história do retrato... o seu afastamento para Friburgo... os gestos e conversas com que procuravam livrar-se dela... Lamentava ter vazado a sua alma no coração de Luciano naquela terrível noite do baile. O seu amor transformara-se subitamente em ódio: Execrava Luciano, não compreendia mesmo como o tivesse amado! E amara-o talvez por tanto ouvir falar dele; à força de vê-lo na intimidade da casa, de respirar aquela atmosfera em que o nome dele, o gosto dele, a ida dele pareciam impregnar-se; fora talvez por ter sido tratada por ele com pouca atenção... Nascera esse amor do ressentimento, morria na raiva!
Sara começou depois a passear pelo quarto, mordendo as mãos, sacudindo os ombros em movimentos fortes, sobressaltada, coberta de vergonha só com a idéia de que Luciano adivinhara o seu primeiro amor! Que a vira chorar, que demorara nas suas pupilas enternecidas os olhos pérfidos, que lhe apertara as mãos com modo enamorado, sentindo-a dele... toda dele! Revia tudo: as vozes... as luzes... o mar... as flores... o seu nome suspirado por ele num enlevo... aquele perfume, aqueles batimentos de coração... aquele despertar no amor, que a comovera tanto!
Enganada, enganada! Pensava ela com asco de si mesma, como se tivesse sido um crime a sua credulidade. A mãe tinha-lhe mentido. Tinham-lhe mentido todos que a rodeavam!
Começava a odiar toda a gente.
De repente estacou; a visita do Rosas ocorreu-lhe como a lembrança da maior ignomínia de toda a sua vida. E a mãe, que a tinha deixado sofrer tanto.
Pensou logo que Ernestina já não a amasse. Cuidou mesmo que ela talvez desejasse a sua morte...
O calor sufocava-a. Sentia um novelo na garganta, que lhe tapava o ar. Foi ao lavatório, encharcou a toalha de rosto na água do jarro e envolveu-se nela.
Nisso a Simplícia passou rente à janela cantando, em um disfarce, para ver o que se passava lá dentro do quarto da moça. Sara retraiu-se, envergonhada, lembrando-se de frases da mulata, percebendo a sua curiosidade.
Toda a gente sabia do amor da viúva por Luciano, só ela ignorara tudo! Simplícia, voltou, ondulando o seu corpo de cobra em movimentos preguiçosos, cantarolando entre dentes.
Era demais! Sara fechou violentamente as venezianas e recomeçou agitadíssima a passear de um lado para outro.
Até as negras de casa queriam vigiá-la!
Supôs que tivesse sido aquilo mandado pela mãe, e rasgou-lhe o retrato num ímpeto, arrancando-o da sua cabeceira onde ele sorria junto do retrato do esposo!... Depois atirou ao chão a fotografia despedaçada, e voltou-se religiosamente para o retrato do pai.
Amava-o mais do que nunca! Beijou-o, disse-lhe baixinho tudo que ia voando pela sua imaginação...
Queria vingar-se e vingá-lo, remir os beijos que a mal lhe dera, pensando no outro; fazê-los amargar aquele crime; aniquilá-los entre as suas mãos frágeis. A vergonha de ter amado Luciano, de lhe ter demonstrado o seu amor nascente, punha-a vermelha trêmula, excitada. Como podia isso ter sido, santo Deus? Agora chamava-lhe miserável, cão, cão!
Teve vontade de socorrer-se em alguém, e achava-se só no mundo, completamente só!
Sara pestanejava, sentindo nas pupilas secas uma impressão dolorosa, como se as tivessem polvilhado de areia quente. O sangue tingia-lhe todo o rosto de um rosado vivíssimo e ela apertava com as mãos geladas as fontes palpitante. A toalha resvalara-lhe dos ombros para o chão, e através do vestido molhado, via-se-lhe tremer a carne das costas em convulsões repetidas. O pai olhava-a com o mesmo olhar mudo e frio. A moça deitou-se abatida por uma vertigem que a sossegou momentaneamente. Depois abriu os olhos para o teto nu. Voltou-lhe o conhecimento das coisas. As lágrimas não vieram, mas veio a febre.