A Viúva Simões/XVI

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Eram 11 horas da noite; no quarto de Sara havia um rumor baixo do vozes e um forte cheiro de mostarda com que sinapizavam a doente. A lamparina espalhava uma claridade morna e discreta. No papel branco da parede o cortinado da cama desenhava em sombras movediças as suas rosas, pâmpanos e fetos. Sara estava ali deitada de costas no seu leito de virgem, com os olhos cerrados, imóvel como a imagem de um túmulo. A mãe mudava-lhe os sinapismos, ajoelhada no chão, com as mãos sumidas em baixo dos lençóis, os olhos vermelhos, maltratados pelo choro.

O médico examinava com atenção o remédio acabado de chegar da botica.

- Dêem-me uma luz pediu ele, impaciente, revirando entre os dedos magros o frasco do xarope.

A Ana chegou uma vela, fazendo com a mão anteparo, para que a claridade não batesse no rosto da doente.

- Erraram a fórmula! Erraram como burros! gritou o doutor lendo com atenção o rótulo e mirando a cor opalizada do remédio,

Ernestina voltou-se; o médico abrira o frasco lambia a ponta do dedo molhada no xarope.

- Peço remédio e mandam-me veneno, resmungou o médico zangado, pousando o vidro sobre a cômoda.

- E agora? perguntou-lhe Ernestina.

- Agora é preciso mandar buscar outro.

- Chamem o João! Gritou a viúva para dentro.

O médico escreveu, exigindo que fossem a outra farmácia.

- Eu não quero que minha filha morra! gemeu Ernestina

- Não morrerá, descanse...

- Não me engana, doutor?!

- Estas doenças cerebrais são graves, gravíssimas... mas espero que havemos de triunfar.

- Oh! O senhor não tem certeza!

- Sua filha tem um temperamento sangüíneo, muito forte... mas, Senhor, que determinaria isto?!

Era a vigésima vez que ele fazia aquela pergunta. Ernestina suspirou, muito opressa.

- Daqui a uma hora dê-lhe uma colher de xarope. Depois só o calmante.

A viúva acompanhou o médico até a porta repetindo a pergunta:

- Há perigo... há muito perigo?!

- Não posso dizer nada... por enquanto... respondeu o médico embaraçado

Ernestina juntou as mãos, aflita.

- Amanhã deve apresentar melhoras... murmurou ele, procurando consolá-la. Ele saiu, Ernestina voltou cambaleante para o quarto da filha.

Aproximou-se do leito; Sara tinha os olhos abertos, mas fixos, mudos.

- Meu amor... como estás?

Sara não se moveu. Ernestina recuou, chorando, para um recanto mais sombrio do quarto.

Havia já muitos dias que aquilo era assim; dias e noites passadas naquele canto, com as mãos nos joelhos e olhos na filha. De vez em quando levantava-se; Sara gemia, ela ia arranjar-lhe a roupa, beijá-la, pedir-lhe perdão, baixinho, com toda a humildade e ternura; sem obter nenhum olhar em resposta, voltava para o seu canto, lugubremente. Rezava então de um modo desordenado e aflito, encolhendo-se na cadeira, com verdadeiro pavor do retrato do marido que continuava suspenso sobre a cabeceira da cama, e que parecia estar ali para proteger a filha e argüir terrivelmente a esposa. A viúva via incessantemente esta pergunta atroz nos olhos dele:

- Que fizeste de nossa filha?

Sara balançava-se entre a vida e a morte. A mãe não sabia de mais nada; estava sempre ali sem dormir, sem se despir, quase sem comer, com o rosto transformado, o cabelo em desalinho, os lábios a murmurarem preces e promessas:

- "Meu Deus! se salvares minha filha eu vestirei dez órfãos pobres e dar-lhes-ei educação...

Virgem Maria! se deres saúde à minha filha eu irei descalça, como a mais humilde e pobre das criaturas, angariar esmolas para os velhinhos fracos e aleijados!..."

Ao médico ela suplicava, de joelhos; que lhe salvasse a filha, prometendo-lhe fortunas e coisas impossíveis!

Quando a noite chegava, era horrível! Via-se sozinha; a filha parecia-lhe, às vezes, moribunda, outras vezes morta.

Então tinha medo de se chegar à cama, arrastava-se de joelhos e rezava ao retrato do marido como rezaria a uma imagem sagrada. Ela era a culpada e tudo!

O remorso juntava-se à dor. Agora a sua felicidade seria ver Sara feliz.

O seu amor era um crime! Pedia perdão a Deus, prometendo-lhe altares de ouro se ele salvasse Sara!

Naquela noite Ernestina estava mais agitada do que nunca. O cansaço físico juntava-se à fadiga e tortura moral. Ela revoltava-se contra o corpo, sentindo por vezes vacilar-lhe a vista e a razão.

No silêncio profundo da noite, a badalada da uma hora soou como um grande suspiro de agonia. Ernestina levantou-se e foi direita à cômoda.

O médico tinha recomendado vigilância e extrema pontualidade nas horas do remédio... Ela tomou o vidro por onde o remédio coava uma boa cor opalina e aproximou-se do leito. Sara tinha os olhos abertos, mas como se não vissem; a mãe agitou-a, ela moveu a cabeça com um gemido... Ernestina chegou lhe a colher à boca, a moça cerrou apertadamente os lábios. Foi então uma luta até que a mãe forçou-a, batendo-lhe com a colher nos dentes, a tomar o remédio; chegava a ser brutal, mas queria a todo o custo a salvação da filha! Sara não pôde engolir o xarope, gorgolejou-lhe na boca e saiu espumante, escorrendo-lhe pelo queixo. Desesperada, Ernestina deu-lhe outra colher e tapou-lhe depois rapidamente a boca, com a mão espalmada. A doente engoliu com ruído, e ficou-se, como dantes, imóvel. A viúva beijou-a devagar, como a pedir perdão por aquela violência, e levantou-se; mas ao voltar-se estremeceu! Sobre a mesa de cabeceira estava o outro vidro de xarope.

De repente lembrou-se de tudo e viu o seu erro. Enganara-se nos remédios. Comparou os dois frascos, eram iguais no tamanho, eram quase iguais na cor... mas num estaria talvez a salvação, no outro estava com certeza a morte!

E fora a morte que ela levava à sua amada, à sua idolatrada filha!

Ernestina correu para fora, gritando pelos criados: tornou depois a entrar no quarto, e pareceu-lhe que as pupilas de Sara se tinham dilatado muito e que na sua pele branca e pálida desabrochavam manchas violáceas. Tornou a sair e foi bater com ambas as mãos na porta do quarto das criadas, que já se vestiam estremunhadas e aflitas. Quis tornar para o lado de Sara, não teve coragem e atirou-se para o jardim.

A casa do hortelão era ao fundo, meio encoberta pelos pés de murta, ao lado da horta. Ernestina correu para lá, pisando nos canteiros, colérica contra os espinhos das roseiras que a obrigavam a parar, prendendo-lhe o vestido que ela estraçalhava.

O João acordou assustado, ouvindo a voz da patroa que lhe ordenava de ir chamar o médico depressa, muito depressa. Ele respondeu que sim, com a voz empastada, cheia de sono.

- Chame também um padre! Minha filha morre!

Ernestina voltou para dentro mais uma vez. Seguiu pelo corredor com as mãos no ar, o peito arfante. Esbarrou na porta do quarto de Sara, sem forças para entrar, com medo da morte. Esteve algum tempo inerte, encostada no umbral, repetindo baixo, num tremor nervoso, matei rainha filha... matei minha filha... matei minha filha... Espreitou de longe, por fim; criadas rodeavam a cama de Sara. Lembrou-se de repente de ir buscar Luciano; Sara amava-o, só ele a poderia salvar!

Seria o amor o Cristo que ressuscitasse aquele corpo exânime e que fizesse erguerem-se, na miraculosa paz das almas satisfeitas, aquelas pálpebras imóveis e aquela pálida cabeça de moribunda! Só a amor teria o poder mágico de acordar aquela carne que nem os seus beijos, nem as suas lágrimas faziam estremecer?

Ernestina saiu para a rua e correu pelo morro abaixo, num atordoamento. Ia para buscar Luciano, o seu amado, o seu sonhado esposo, e dizer-lhe: confesse o seu amor à minha filha e salve-a!

O caminho estava negro, a viúva sentia o vestido embaraçar-se-lhe debaixo dos pés; tropeçava a miúdo, caiu uma vez; ergueu-se; e foi seguindo.

Não levava nem chapéu nem xale, e o vestido leve, caseiro, mal a resguardava da chuva que principiava a cair.

Uma patrulha cortou-lhe o caminho; ela disse-lhe, entre soluços: - Vou buscar Luciano, minha filha morre! E com tal dor disse aquilo que a policia deixou-a passar, através da noite, sozinha na sua angústia!

A chuva caía do céu enegrecido; as casas estavam fechadas e mudas, as ruas solitárias; os lampiões de gás pareciam tochas fúnebres, acesas de longe em longe e os passos da viúva Simões soavam no meio daquilo tudo de uma maneira irregular, nervosa, triste.

Chegou quase morta à rua do Riachuelo; encostou-se à parede dum prédio, tateou a campainha elétrica e vibrou-a sem interrupção até que lhe abriram a porta. Era a casa de Luciano; o criado reconheceu-a logo e não pôde conter um murmúrio de espanto.

- A senhora aqui!... a estas horas! balbuciou ele.

Ernestina não respondeu; galgou os degraus e seguiu esbarrando nos móveis e nas paredes até perto do quarto de Luciano, para onde gritou com toda a sua alma, num último esforço:

- Luciano! Luciano! Matei minha filha! Salve minha filha!

Ernestina não pôde suster-se por mais tempo em pé. A vista escureceu-se-lhe, os joelhos vergaram-se-lhe e ela caiu desmaiada.

Quando Luciano entrou na sala ela ainda estava estendida no chão.

O criado iluminava a cena, com os olhos espantados. Vendo o amo, perguntou indeciso:

- Ela diz que matou a filha... quer o senhor que vá avisar a polícia?

- Quero que vás chamar um carro, oh burro! Pois não vês que ela morre?

Luciano tinha chegado nesse dia da viagem a Minas, arranjada como pretexto para adiar as explicações com o Eugênio Ribas. Nada sabia acerca de Sara, temia escrever a Ernestina em quem pensava, quando longe, como numa doce amiga de infância, e quando perto, no alvoroço dos sentidos, como na mais desejável das amantes! Aquela mulher era um enigma!

Desde os tempos antigos da sua primeira paixão, que ele lhe fugira por medo!...

A beleza de Ernestina ela então de uma singularidade atormentadora! Vira sempre nela a tentação da carne, chamando-a por isso de: - virgem inconscientemente pecaminosa! Nunca lhe ocorrera dar-lhe uma flor. Se pensava em presenteá-la, vinham-lhe à idéia pedrarias caras, engastadas em metais rijos e vistosos.

A não ser como amante, lasciva e ardente, ele só podia conceber Ernestina casar-se com um príncipe poderoso ou um desses homens fantásticos, das lendas, que a vestisse de roupas suntuosíssimas e a fizesse servir em baixela de ouro. Era a mulher destinada, pela sua formosura emocionadora, ao luxo, à grandeza e ao amor!

Não que o seu rosto fosse de linhas puras, nem que as suas palavras denunciassem a volúpia; aquele ardor, aquele domínio, vinham da sua pele, do seu olhar, do seu porte e do seu sorriso.

Decorreram anos depois de tudo isso; agora ele sabia-a boa e honesta; a sua vida de casada fora doce, invejável, simples, reta! Inda assim, era sempre a mesma impressão esquisita, meramente sensual, que essa mulher produzia nele!

Lamentava-se disso agora que, pela convivência, conhecia as maneiras e idéias severas de Ernestina, sempre tão correta e tão fria.

Aquela cena em casa da ama Josefa encheu-o de assombro e de piedade. Calculava o sacrifício que teria custado à viúva o seu coquetismo quase canalha.

Ernestina aí estava agora a seus pés, com o vestido sujo de lama, o cabelo solto, os olhos dentro de um círculo negro.

Luciano, atônito, curvou-se para vê-la bem de perto.

O criado repetiu:

- O senhor fará o que entender... mas eu sempre achava bom avisar a policia...

- Um carro, já disse! gritou Luciano com raiva; e enquanto o outro saía a procurar um carro, ele fixava com susto a fisionomia da viúva.

- Que se teria passado? As hipóteses voavamlhe doidamente pelo espírito. Suspendeu a viúva, pô-la no sofá agitando-lhe a cabeça numa almofada.

Julgava-a vítima de uma febre. Era delírio tudo aquilo: a sua vinda e aquelas palavras horríveis que o tinham despertado de um modo tão cruel.

- "Matei minha filha; salve minha filha!"

Luciano vestira um robe de chambre ao conhecer a voz de Ernestina, apressando-se em vê-la: agora fazia rapidamente a sua toilette, com o ouvido à escuta e o coração aos saltos.

Sara... Sara! Meu Deus! Que haveria de verdade em tudo isso? A ser delírio, não teriam deixado a doente sair aquela hora... sozinha... Loucura? Quem sabe?... Mas como? Por que teria enlouquecido Ernestina?... E no fundo do seu espírito debatia-se o medo de que realmente a viúva tivesse estrangulado a filha em um momento de ciúme...

Ao mesmo tempo a razão lembrava-lhe o amor daquela mãe, para quem a filha era o símbolo da perfeição na terra, o inexaurível manancial de todos os bens! Impressionado e perplexo, ele procurava às vezes interrogar a viúva, mas curvava-se para ela, sem ânimo de a despertar, abandonando-a naquela vertigem que a imobilizara completamente.

A chuva tinha engrossado e batia agora com força nos vidros da janela.

Luciano ia e vinha do quarto para a sala, esperando a todos os momentos o carro, ansioso por sair e saber a verdade!

Mas o carro tardava e, acabada a sua toilette, ele iluminou a sala e sentou-se em frente da viúva Simões. Que diferença. Ela parecia-lhe muito mais morena; os cabelos caídos para os ombros davam-lhe um aspecto de louca, e a sua boca, deliciosamente pequenina e vermelha, estava então desbotada, entreaberta numa expressão de agonia.

Luciano, não tendo em casa éter, recorreu às essências, mas vacilava se deveria ou não chamar a viúva à realidade da vida. Julgou mais acertado levá-la assim, receando que lhe sobreviesse uma crise violenta.

Pobre mulher! pensava Luciano com infinita tristeza. E sentia uma dor incompreensível, que seria talvez o remorso, imaginando que no fundo a causa de tudo aquilo... eraele!