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A Viuvinha/II

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Alguns instantes depois Jorge subia a ladeira e entrava na igreja.

A modesta simplicidade do templo impôs-lhe respeito; ajoelhou; não rezou, porque não sabia, mas lembrou-se de Deus e elevou o seu espírito desde a miséria do homem até a grandeza do Criador.

Quando se ergueu, parecia-lhe que se tinha libertado de uma opressão que o fatigava; sentia um bem-estar, uma tranqüilidade de espírito indefinível.

Nesse momento viu ajoelhada ao pé da grade que separa a capela, uma menina de quinze anos, quando muito: o perfil suave e delicado, os longos cílios que vendavam seus olhos negros e brilhantes, as tranças que realçavam a sua fronte pura, o impressionaram.

Começou a contemplar aquela menina como se fosse uma santa; e, quando ela se levantou para retirar-se com sua mãe, seguiu-a insensivelmente até a casa que já lhe descrevi porque esta moça era a mesma de que lhe falei, e sua mãe D. Maria. Escuso contar-lhe o que se passou depois. Quem não sabe a história simples e eterna de um amor inocente, que começa por um olhar, passa ao sorriso, chega ao aperto de mão às escondidas e acaba afinal por um beijo e por um sim, palavras sinônimas no dicionário do coração? Dois meses depois desse dia começou aquela visita ao cair da tarde, aquela conversa à sombra das árvores, aquele serão de família, aquela doce intimidade de um amor puro e tranqüilo.

Jorge esperava apenas esquecer de todo a sua vida passada, apagar completamente os vestígios desses tempos de loucura, para casar-se com aquela menina e dar-lhe a sua alma pura e sem mancha.

Já não era o mesmo homem: simples nos seus hábitos e na sua existência, ninguém diria que algum tempo ele tinha gozado de todas as voluptuosidades do luxo; parecia um moço pobre e modesto, vivendo do seu trabalho e ignorando inteiramente os cômodos da riqueza.

Como o amor purifica! Como dá forças para vencer instintos e vícios contra os quais a razão, a amizade e os seus conselhos severos foram impotentes e fracos!

Creia que se algum dia me metesse a estudar as altas questões sociais que preocupam os grandes políticos, havia de cogitar alguma coisa sobre essa força invencível do mais nobre dos sentimentos humanos.

Não há aí um sistema engenhoso que pretende regenerar o homem pervertido, fazendo-lhe germinar o arrependimento por meio da pena e despertando-lhe os bons instintos pelo isolamento e pelo silêncio?

Por que razão há de procurar-se aquilo que é contra a natureza e desprezar-se o germe que Deus deu ao coração do homem para regenerá-lo e purificá-lo?

Perdão, minha prima; não zombe das minhas utopias sociais; desculpe-me esta distração; volto ao que sou — simples e fiel narrador de uma pequena história.

Em amor, dois meses depressa se passam; os dias são momentos agradáveis e as horas flores que os amantes desfolham sorrindo.

Por fim chegou a véspera do casamento que se devia fazer simplesmente em casa, na presença de um ou dois amigos; o moço, fatigado dos prazeres ruidosos, fazia agora de sua felicidade um mistério.

Nenhum dos seus conhecidos sabia de seus projetos; ocultava o seu tesouro, com medo que lho roubassem; escondia a flor do sentimento que tinha dentro d'alma, receando que o bafejo do mundo onde vivera a viesse crestar.

A noite passou-se simplesmente como as outras; apenas notava-se em D. Maria uma atividade que não lhe era habitual. A boa senhora, que exigira como condição que seus dois filhos ficassem morando com ela para alegrarem a sua solidão e a sua viuvez, temia que alguma coisa faltasse à festa simples e íntima que devia ter lugar no dia seguinte.

De vez em quando erguia-se e ia ver se tudo estava em ordem, se não havia esquecido alguma coisa; e parecia-lhe que voltava aos primeiros anos da sua infância, repassando na memória esse dia, que uma mulher não esquece nunca.

Nele se passa o maior acontecimento de sua vida; ou realiza-se um sonho de ventura, ou murcha para sempre uma esperança querida que se guarda no fundo do coração; pode ser o dia da felicidade ou da desgraça, mas é sempre uma data notável no livro da vida.

No momento da partida, quando Jorge se levantou, D. Maria, que compreendia o que essas duas almas tinham necessidade de dizer-se mutuamente, retirou-se.

Os dois amantes apertaram-se as mãos e olharam-se com um desses olhares longos, fixos e ardentes que parecem embeber a alma nos seus raios límpidos e brilhantes.

Tinham tanta coisa a dizer e não proferiram uma palavra; foi só depois de um comprido silêncio que Jorge murmurou quase imperceptivelmente:

— Amanhã.

Carolina sorriu, enrubescendo; aquele amanhã exprimia a felicidade, a realização desse belo sonho cor-de-rosa que havia durado dois meses; a linda e inocente menina, que amava com toda a pureza de sua alma, não tinha outra resposta.

Sorriu e corou.

Jorge desceu lentamente a ladeira e, ao quebrar a rua, voltou-se ainda uma vez para lançar um olhar à casa.

Uma luz brilhava nas trevas entre as cortinas do quarto de sua noiva; era a estrela do seu amor, que brevemente devia transformar-se em Lua-de-mel.