A Viuvinha/III
Deve fazer uma idéia, minha prima, do que será a véspera do casamento para um homem que ama.
A alma, a vida, pousa no umbral dessa nova existência que se abre e daí lança um volver para o passado e procura devassar o futuro.
Aquém a liberdade, a isenção, a tranqüilidade de espírito, que se despedem do homem; além a família, os gozos íntimos, o lar doméstico, esse santuário das verdadeiras felicidades do mundo que acenam de longe.
No meio de tudo isto, a dúvida e a incerteza, essas inimigas dos prazeres humanos, vêm agitar o espírito e toldar o céu brilhante das esperanças que sorriem.
O futuro valerá o passado?
E nessa questão louca e insensata debate-se o pensamento, como se a prudência e sabedoria humana pudessem dar-lhe uma solução, como se os cálculos da providência fossem capazes de resolver o problema.
É isto pouco mais ou menos o que se passava no espírito de Jorge, quando caminhava pela praia da Glória, seguindo o caminho de sua casa.
Davam dez horas no momento em que o moço chegava à rua de Matacavalos, à porta de um pequeno sobrado, onde habitava, depois da sua retirada do mundo.
Ao entrar, o escravo preveniu-lhe que uma pessoa o esperava no seu gabinete; o moço subiu apressadamente e dirigiu—se ao lugar indicado.
A pessoa que lhe fazia essa visita fora de horas era seu antigo tutor, o amigo de seu pai, a quem por algum tempo substituiu com a sua amizade sincera e verdadeira.
O sr. Almeida era um velho de têmpera antiga, como se dizia há algum tempo a esta parte; os anos haviam aumentado a gravidade natural de sua fisionomia.
Conservava ainda toda a energia do caráter, que se revelava na vivacidade do olhar e no porte firme de sua cabeça calva.
— A sua visita a estas horas... disse o moço, entrando.
— Admira-o? perguntou o sr. Almeida.
— Certamente; não porque isto não me dê prazer; mas acho extraordinário.
— E com efeito o é; o que me trouxe aqui não foi o simples desejo de fazer-lhe uma visita.
— Então houve um motivo imperioso?
— Bem imperioso.
— Neste caso, disse o moço, diga-me de que se trata, sr. Almeida; estou pronto a ouvi-lo.
O velho tomou uma cadeira, sentou-se à mesa que havia no centro do gabinete e, aproximando um pouco de si o candeeiro que esclarecia o aposento, tirou do bolso uma dessas grandes carteiras de couro da Rússia, que colocou defronte de si.
O moço, preocupado por este ar grave e solene, sentou-se em face e esperou com inquietação a decifração do enigma.
— Chegando a casa há pouco, entregaram-me uma carta sua, em que me participava o seu casamento.
— Não o aprova? perguntou o moço inquieto.
— Ao contrário, julgo que dá um passo acertado; e é com prazer que aceito o convite que me fez de assistir a ele.
— Obrigado, sr. Almeida.
— Não é isto, porém, que me trouxe aqui; escute-me.
O velho recostou-se na cadeira e, fitando os olhos no moço, considerou-o um momento, como quem procurava a palavra por que devia continuar a conversa.
— Meu amigo, disse o sr. Almeida, há cinco anos que seu pai faleceu.
— Trata-se de mim então? perguntou Jorge, cada vez mais inquieto.
— Do senhor e só do senhor.
— Mas o que sucedeu?
— Deixe-me continuar. Há cinco anos que seu pai faleceu; e há três que, tendo o senhor completado a sua maioridade, eu, a quem o meu melhor amigo havia, confiado a sorte de seu filho, entreguei-lhe toda a sua herança, que administrei durante dois anos com o zelo que me foi possível.
— Diga antes com uma inteligência e uma nobreza bem raras nos tempos de hoje.
Não houve nada de louvável no que pratiquei; cumpri apenas o meu dever de homem honesto e a promessa que fiz a um amigo.
— A sua modéstia pode ser dessa opinião; porém a minha amizade e o meu reconhecimento pensam diversamente.
— Perdão; não percamos tempo em cumprimentos. A fortuna que lhe deixara seu pai e que ele ajuntara durante trinta anos de trabalho e de privações, consistia em cem apólices e na sua casa comercial, que representava um capital igual, ainda mesmo depois de pagas as dívidas.
— Sim, senhor, graças à sua inteligente administração, achava-me possuidor de duzentos contos de réis, a que dei bem mau emprego, confesso.
— Não desejo fazer-lhe exprobrações; o senhor não é mais meu pupilo, é um homem; já não lhe posso falar com autoridade de um segundo pai, mas simplesmente com a confiança de um velho amigo.
— Mas um amigo que me merecerá sempre o maior respeito.
— Infelizmente o senhor não tem dado provas disto; durante perto de um ano acompanhei-o como uma, sombra, importunei-o com os meus conselhos, abusei dos meus direitos de amigo de seu pai e tudo isto foi debalde.
— É verdade, disse o moço, abaixando tristemente a cabeça, para vergonha minha é verdade!
— A vida elegante o atraía, a ociosidade o fascinava; o senhor lançava pela janela às mãos cheias o ouro que seu pai havia ajuntado real a real.
— Basta; não me lembre esse tempo de loucura que eu desejava riscar da minha vida.
— Conheço que o incomodo; mas é preciso. Durante este primeiro ano, em que ainda tive esperanças de o fazer voltar à razão, não houve meio que não empregasse, não houve estratagema de que não lançasse mão. Responda-me, não é exato?
— Alguma vez o neguei?
— Diga-me do fundo da sua consciência: julga que um pai no desespero podia fazer mais por um filho do que eu fiz pelo senhor?
— Juro que não! disse Jorge, estendendo a mão.
— Pois bem, agora é preciso que lhe diga tudo.
— Tudo?
— Sim; ainda não concluí. Os seus desvarios de três anos arruinaram a sua fortuna.
— Eu o sei.
— As suas apólices voaram umas após outras e foram consumidas em jantares, prazeres e jogos.
— Resta-me, porém, a minha casa comercial.
— Resta-lhe, continuou o velho, carregando sobre esta palavra, a sua casa comercial, mas três anos de má administração deviam naturalmente ter influído no estado dessa casa.
— Parece-me que não.
— Sou negociante e sei o que é o comércio. Depois que o vi finalmente voltar à vida regrada, quis ocupar-me de novo dos seus negócios; indaguei, informei-me e ontem terminei o exame da sua escrituração, que obtive de seus caixeiros quase que por um abuso de confiança. O resultado tenho-o aqui.
O velho pousou a mão sobre a carteira.
— E então? perguntou Jorge com ansiedade.
O sr. Almeida, fitando no moço um olhar severo, respondeu lentamente à sua pergunta inquieta:
— O senhor está pobre!