A Viuvinha/XVI

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O coração de Carolina sucumbira, mas não a sua vontade. Amava e combatia esse amor, que julgava perfídia. Uma esposa virtuosa, presa de alguma paixão adúltera, não sustenta uma luta mais heróica do que a dessa menina contra o impulso ardente do seu coração.

Esgotou todos os recursos. Às vezes procurava convencer-se da extravagância dessa afeição. Dizia a si mesma que ela não conhecia daquele homem senão o vulto. Sabia ao menos se era digno dos sentimentos que inspirava?

Essa desconfiança a alimentava quinze dias, um mês; depois dissipava-se como por encanto para voltar de novo.

Assim passou mais de um ano. Carolina tinha gasto e consumido toda a sua força de resolução; combatia ainda, mas já não esperava, nem desejava vencer.

Nestas disposições, uma noite se recostara à penumbra da janela, para esperar, como de costume, a sombra que vinha depor a muda homenagem do seu amor. O ar estava abafado; ergueu a vidraça, contando fechá-la logo depois.

Mas o seu espírito enleou-se em uma das cismas em que agora vivia de novo engolfada e nas quais muita vez por uma bizarria de sua imaginação o vulto desconhecido lhe aparecia com o rosto de Jorge.

Quando deu fé, o vulto estava defronte dela, parado na sombra. Vendo-se, ambos fizeram o mesmo movimento para retirar-se e ambos ficaram imóveis, olhando-se nas trevas. Passado um longo instante, Carolina afastou-se lentamente da janela; o desconhecido deixou a flor e desapareceu.

Essas entrevistas mudas continuaram por muito tempo, até que em uma delas o vulto saiu de sua imóvel contemplação, chegou-se por baixo da janela, tomou a mão da moça e beijou-a. Carolina estremeceu ao toque daquele beijo de fogo; quando lhe passou a vertigem que a tomara de súbito, nada mais viu.

Decorreram muitas noites sem que o desconhecido aparecesse.

Foi então que Carolina reconheceu a força desse amor misterioso. Recostada à janela, ansiosa, esperava pela hora da entrevista e, muitas vezes, a estrela d'alva, luzindo no horizonte, achou-a na mesma posição. O primeiro raio da manhã apagava-lhe o último raio de esperança.

Partilhada entre a idéia de que seu amante a houvesse esquecido, ou de que lhe tivesse sucedido alguma desgraça, sentia todas essas inquietações que requintam a força da paixão.

Enfim o vulto apareceu de novo. Foi na véspera.

Carolina não pôde reprimir um grito do coração; mas o desconhecido, insensível à sua demonstração, contemplou-a por muito tempo; e beijando-lhe a mão como na primeira vez deixou-lhe a flor envolta na carta.

Sentiu ele ou não a doce pressão da mão da moça? O que sei é que voltou sem proferir uma palavra.

Abrindo a carta, Carolina viu pela primeira vez algumas frases escritas, que seus olhos devoraram com avidez.

Dizia:

Amanhã à meia-noite no jardim. É a primeira ou a última prece de um imenso amor.

Mais nada; nem data, nem assinatura.

O que pensou Carolina durante as vinte e quatro horas que sucederam à leitura dessa carta, não o posso exprimir, minha prima; adivinhe. A luta renasceu no seu espírito entre o respeito profundo pela memória de seu marido e o amor que a dominava.

Essa luta violenta durava ainda no momento em que a encontramos; depois do combate renhido, o coração tinha transigido com a razão, o amor cedera ao dever. Carolina resolvera que a entrevista pedida seria a primeira, mas também a última. Quebraria o fio dourado dessa afeição, para não entrelaçá-lo à teia negra do seu passado.

Cumpriria o seu voto?

Ela mesma não o sabia; tinha medo que lhe faltassem as forças; e para ganhar coragem relia nesse momento a carta em que seu marido, na mesma noite do casamento, se despedira dela para sempre.

Não transcrevo aqui essa longa carta para não entristecê-la, D..., porque nunca li coisa que me cortasse tanto o coração. Jorge explicava à sua mulher a fatalidade que o obrigava, ele, votado à morte, a consumar esse casamento, que a devia fazer desgraçada, mas que ao menos a deixava pura e sem mácula.

Pela primeira vez, depois de cinco anos, C arolina trajava de branco; mas as fitas dos laços, as pulseiras, o colar, eram pretos ainda. Até no seu vestuário se revelava a luta que se passava em sua alma: o branco era a aspiração, o sonho do futuro; o preto era a saudade do passado.

Quando acabou de ler aquela carta, que sempre lhe arrancava lágrimas, sentiu-se com forças de resistir aos impulsos do coração; sentiu-se quase santificada pela evocação daquele martírio; e, ainda inquieta, esperou.

Pouco depois a pêndula vibrou uma pancada.

Carolina assustou-se e levou os olhos ao mostrador. A agulha marcava onze e meia horas.

A moça fez um esforço, ergueu-se rapidamente, entrou na sala e desceu ao jardim, ligeira e sutil como uma sombra. A alguma distância havia um berço feito de cedros, onde a treva era mais densa. Ai sentou-se.

À meia-noite em ponto o vulto apareceu e, guiado pelo vestido branco de Carolina, aproximou-se dela e sentou-se no mesmo banco de relva. Seguiu-se um longo momento de silêncio; o desconhecido não falava; o pudor emudecia a menina cândida e inocente.

Mas não era possível que esse silêncio e essa imobilidade continuassem; o desconhecido tomou as mãos de Carolina e apertou-as; as suas estavam tão frias que a moça sentiu gelar-se-lhe o sangue ao seu contato.

— A senhora me ama?

A voz do moço pronunciando essas palavras se tornara tão surda que perdera o metal para tornar-se apenas um sopro.

A menina não respondeu.

— É o meu destino que eu lhe pergunto! murmurou ele. Carolina venceu a intimidem.

— Não sabe a minha história? disse ela.

— Sei.

— Então compreende que não posso, que não devo amar a ninguém mais neste mundo!

A moça sentiu que seu amante lhe cerrava as mãos com uma emoção extraordinária; teve pena dele e conheceu que não teria forças para consumar o sacrifício. — Não me pode... não me deve amar... E por que razão me deixou conhecer uma esperança vã?

— Por quê?... balbuciou a menina.

— Sim, por quê?... Zombava de mim!

— Oh! não! Não pensava no que fazia. Era mais forte do que a minha vontade!

— Mas então me ama?... É verdade?... perguntou o desconhecido, com ansiedade.

— Não sei.

— Para que negá-lo?

— Pois sim! É verdade! Mas é impossível!

— Não compreendo.

— Escute: não estranhe o que lhe vou dizer, não me crimine pelo passo que dei. Fiz mal em vir aqui, em esperá-lo; mas tenho eu culpa?... Faltou-me o ânimo de recusar-lhe o que me pedira... E vim somente para suplicar-lhe... — Suplicar-me?... o quê?

— Que se esqueça de mim, que me abandone!

— Importuno-a com a minha afeição?

— Não diga isso!

— Seja indiferente a ela.

— Se eu pudesse...

— Não pode?... Então dê-me a felicidade.

— Se estivesse em mim! Porém já lhe confessei; é impossível.

— Por que motivo?

— Eu devo... eu sinto que amo a meu marido.

— Morto?

— Sim.

Houve uma pausa.

— Pare

— Eu devo... eu sinto que amo a meu marido.

— Morto?

— Sim.

— Eu devo... eu sinto que amo a meu marido....

— Morto?...

— Sim.

Houve uma pausa.

Parece-lhe ridículo esse sentimento; não e assim? Mas foi o primeiro, cuidei que seria o último. Deus não permitiu!... E por isso às vezes julgo que cometo um crime, aceitando uma outra afeição... Devo ser fiel à sua memória!... Quem me diz que esse remorso não envenenará a minha existência, que a imagem dele não virá, constantemente colocar-se entre mim e aquele que me amar ainda neste mundo?... Seríamos ambos desgraçados!

Um beijo cortou a palavra nos lábios de Carolina. Momentos depois duas sombras resvalaram-se por entre as moitas do jardim e perderam-se no interior da casa. Tudo entrou de novo no silêncio.

Na manhã seguinte, às 9 horas, D. Maria e o sr. Almeida conversavam amigavelmente na sala de jantar, onde acabavam de servir o almoço.

O velho negociante, depois da entrevista com o filho de seu amigo, não se cabia de contente e viera preparar a mãe e a filha para mais tarde receberem a noticia inesperada, que era ainda um segredo, só conhecido de duas pessoas.

O assunto era melindroso e a sua habilidade comercial nada adiantava em negócios de coração; não sabia por onde começar.

Nisto, D. Maria chamou sua filha.

Vem almoçar, Carolina.

— Já vou, mamãe, respondeu a menina, do seu quarto, estou à espera de Jorge.

A pobre mãe julgou que sua filha tinha enlouquecido e ergueu-se precipitadamente para correr a ela.

Mas a porta abriu-se e Carolina entrou pelo braço de seu marido.

Desmaio, espanto, surpresa e alegria, passo por tudo isto, que a senhora imagina melhor do que eu posso descrever. Depois do almoço, Jorge e sua mulher, passeando no jardim, pararam junto ao lugar onde haviam estado na véspera.

— Aqui! disse a menina, sorrindo entre o rubor.

— Foi o meu segundo berço! replicou Jorge.

— Por que dizes berço?

— Porque nasci aqui para esta vida nova. Oh! tu não sabes!... Depois que reabilitei o nome de meu pai e o meu, ainda me faltava uma condição para voltar ao mundo.

— Qual era?

— A tua felicidade, o teu desejo. Se tivesses esquecido teu marido para amar-me sem remorso e sem escrúpulo, eu estava resolvido... a fugir-te para sempre!

— Mau! se eu te deixasse de amar, não era para amar-te ainda? Ah! Não terias ânimo de fugir-me.

— Também creio.

Jorge e sua mulher são hoje nossos vizinhos; têm uma fazenda perfeitamente montada. Para evitar a curiosidade importuna e indiscreta, haviam imediatamente abandonado a corte.

A boa D.Maria já está bastante velha. O sr. Almeida partiu há seis meses para a Europa, tendo feito o seu testamento, em que instituiu herdeiros os filhos de Jorge.

Carlota é amiga íntima de Carolina. Elas acham ambas um ponto de semelhança na sua vida; é a felicidade depois de cruéis e terríveis provanças. As nossas famílias se visitam com muita freqüência; e posso dizer-lhe que somos uns para os outros a única sociedade.

Isto lhe explica, D..., como soube todos os incidentes desta história.