A alma do outro mundo/IX

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Eram quatro horas da madrugada quando tornou a si. As meigas aragens, precursoras da manhã, entravam pelas frestas, em serenos bafejos. A afilhada da milionária a custo moveu o corpo alquebrado de fadiga, de comoções e de febre, arrastando-se à janela e abrindo-a com uma rispidez nervosa e frenética. Na barra do horizonte as frouxas emanações do dia estendiam-se como um véu diáfano. As árvores meneavam a copa orvalhada, e os grilos amiudavam o cristalino canto, à proporção que a luz do céu ia anunciando a presença da alvorada. A atmosfera estava transparente e calma. Uma ou outra ave noturna, retardada, singrava com a asa silenciosa a onda etérea do crepúsculo matutino.

Rosinha apoiou os cotovelos nus na janela, e respirou com o desespero do moribundo os consoladores ares da natureza virgem. Pálida e angustiada, sorriu a todos os primores que seus olhos viam, exatamente como essas crianças desamparadas, que pela última vez saboreiam os encantos de um mundo esperançoso quase perdido para as suas ilusões, para os seus amores e para a sua existência inconsolável.

Batiam-lhe tumultuosamente as fontes e os seus olhos secos vagavam de um ponto a outro sem consciência, inquietos, assustados, abrasadores e fatais.

Depois, como se duvidasse do que se passara durante a noite, correu os dedos frios pelo peitoril da janela; o bilhete havia desaparecido. Cravou a vista no chão, supondo que o vento arrebatara o papel; na terra gretada e nua amontoavam-se apenas algumas folhas amarelas, que o sol e as brisas desprendiam das árvores.

A menina apertou ao peito agitado as mãos febricitantes e desatou a chorar. De longe em longe os galos correspondiam-se, saudando os róseos vapores da manhã, que esgarçavam-se no oriente.

Pobre criança. Para ela tudo estava já perdido, e nenhuma das santas harmonias da natureza achava eco em seu coração dilacerado! No meio das angústias, das lágrimas e do terror que a perseguiam, ela reportava-se ao passado e arrependia-se, embora tarde! De ter abandonado, atraída por um destino insensato, o verde ramo das palmeiras natais, onde estremecia vazio o seu ninho ainda perfumado e quente!

As adoradas visões da infância enchiam-lhe a alma desvairada e um fresco aroma de boninas e madressilvas, que desceu na asa do vento, despertou-lhe a lembrança de um mundo cheio de folguedos e castas aspirações, submergido no naufrágio de todas as suas esperanças!

As velhas árvores que a conheciam, e a cuja sombra em criança ela tantas vezes adormecera, pareciam apiedar-se das suas dores e diziam-lhe, murmurando com os bafejos da manhã:

“— Foi tua a culpa, Rosinha. Vivias tão bem aqui ao pé de nós, à nossa sombra, ouvindo o doce rumor que a aragem acorda entre as nossas folhas orvalhadas e verdes! Que foste fazer nesse outro mundo, pérfido e traiçoeiro, onde tudo é perigoso, o riso da criança, o olhar da inocência e as lágrimas incompletas? Abre de novo, abre o teu coração às místicas exalações da natureza que te viu nascer!
Chora, Rosinha! Chora! E consola-te também! Nunca é tarde para o arrependimento, e os remorsos são as escadas de espinhos por onde a alma sobe até os pés misericordiosos da Virgem!”

Do cálice das flores e do regaço das plantas começaram a sair, em caprichosos bandos, as borboletas, doidas pelo primeiro raio do dia!

A alada caravana roçava os cabelos desatados da menina, exclamando talvez na sua linguagem caprichosa e pura:

“— Também nós corremos sempre à procura do melhor mel e do melhor perfume, Rosinha! Mas sabemos distinguir a corola em que brilha a gota de ambrosia e o cálice onde dorme o veneno amaldiçoado! E tu, borboleta, borboleta! Por que tão depressa rasgaste as tuas asas e bebeste a longos tragos a loucura e a morte? Vem conosco, se queres, oh! chorosa irmã! Mostrar-te-emos os campos de esmeralda onde cantam os passarinhos felizes, e as encantadas grutas em que o vento suspira com mais doçura do que o orvalho quando escorre do leque dos coqueiros!”

O sino afastado chamava os fiéis à missa da madrugada. Despertavam os ninhos, e uma larga harmonia povoava a atmosfera transparente.

Rosinha levantou a cabeça e afastou do rosto, em um gesto arrebatado, os cabelos negros que se lhe colavam à pele enregelada.

Aquela noite valera um ano de sofrimentos para sua alma; estava lívida como um defunto, e em seus olhos já não brilhava a réstia aveludada mas sim um clarão negro e sinistro.

Voltou tremendo ao interior do quarto e ajoelhou-se; caiu ajoelhada à cabeceira da cama.

Entrelaçou as mãos, embebida na avidez dolorosa de uma oração intima, a oração do náufrago, quando vê partindo pelas ondas o destroçado lenho a que se agarra nos paroxismos da morte!

José Paz veio deitar-lhe a bênção, pronto para sair. Ia a negócio e só voltava tarde.

A menina escondeu a cabeça desorientada no seio do pai, e todo o seu corpo estremecia como ao contato das pilhas elétricas.

O matuto esbugalhou os olhos.

— Que é isto?

— Nada, não é nada, meu paizinho! — acudiu ela de pronto, tentando sorrir no meio de sua palidez mortal.

José Paz abanou melancolicamente a cabeça.

— Pois não saio mais — disse ele.

Mas Rosinha com um ímpeto nervoso tomou entre as suas as mãos calosas do velho:

— Saia! Vá, vá aos seus negócios, meu paizinho! Tinha que ver! Por minha causa, perder alguma coisa! O dia está bom, está fresco; repare. Há muito tempo que não faz um dia como o de hoje!

— Tu tens alguma, Rosinha, que não me queres contar!

Uma nuvem de rubor roçou as faces da menina.

— Eu? Nada sinto: já lhe disse. E o que foi, passou!

— O que é que passou?

— Um sonho mau — continuou ela com o olhar sombrio -, um sonho mau de fazer arrepiar as carnes!

— Ora, conta-me o sonho mau.

— Não, não! Para quê? Só em lembrar-me dele, cuido morrer!

— Ah! Rosinha! Rosinha! Parece que Nossa Senhora não tem mais pena da gente!

Cresceu uma lágrima nas pálpebras do velho que ele enrugou com a palma rugosa da mão.

Por um esforço heróico, a menina compôs o semblante e derramou em torno de si a alegria e a felicidade, pela luz dos seus sorrisos.

— Vá ao seu negócio, vá. Já me sinto inteiramente sossegada! E depois os sonhos mentem, meu paizinho. Se acontecesse tudo quanto se sonha!...

Quando ecoaram na estrada os passos lentos e pesados do matuto, Rosinha levou freneticamente à boca um bentinho que se lhe enroscava no seio, articulando com a voz sufocada em soluços:

— Minha Nossa Senhora das Dores! Protegei esta desgraçada!

E repetia cobrindo de beijos o adorado talismã:

— Pelo bendito sangue de vosso filho! Pelo bendito sangue de Jesus!

A velha dindinha Paula entrou no quarto já de rosário empunhado e os grossos beiços em ebulição beatífica.

— Muito bom dia, santinha!

— Bom dia, dindinha Paula! Bom dia!

— Que cara é essa, menina? Passou mal a noite?

— Muito, muito!

— Hein? O que foi?

— O que foi o quê?

— Que é que teve de noite?

— Nada. Dormi de um sono só até romper o dia!

Nem ela sabia o que dizer! A velha acocorou-se em um canto, apalpando a conta de um novo padre-nosso com uma nova ave-maria.

O sol apontava no horizonte e as aves selvagens em longos esquadrões voavam, pairando sobre as árvore cerradas da mata. Os curiós desafiavam nos sapotizeiros, e a rola gemia entre os troncos a sua eterna melopéia do amor e da saudade.

Os da banda de Pedro Cambraia relembravam na tasca da Maricas Guandu os pavorosos sucessos da véspera.

— Então? Agora é certa a coisa ou não é? — perguntou triunfalmente Pedro Cambraia.

— Tão certo — interrompeu a tendeira — como estar eu aqui olhando para vocês! Aquilo é desgraça que está para acontecer.

O valentão Tibúrcio entrou na tasca.

— Olá, Tibúrcio? Aposto em como não pregaste olho o resto da noite?!

— Já fui à Boa-Viagem e já vim — disse o recém-chegado.

— Fazer o quê?

— Convidar o Mariano para entrar com a gente logo de noite no rolo!

— Que rolo é esse? — perguntou a Maricas Guandu, contemplando em êxtase os seus enormes pulsos.

— A coisa há de se fazer de combinação — prosseguiu o Tibúrcio, abaixando a voz. — Vamos eu, Mariano, Pedro Cambraia, Teto, Basílio, que também vem logo, e...

— E eu! — exclamou a tendeira.

— Mau! Mulher sempre entorna o caldo!

— Ai, ai, que graça, meu sinhô moço! Se você quisesse fazer uma aposta!

— Vá lá!

— Eu fecho na palma da mão um vintenzínho xenxém, e se alguém for capaz de abrir...

— Ganha o vintém? Ora faça-me favor!

— Ganha cinco mil-réis! — bradou a tendeira, empregando na mesa um murro prodigioso.

— Safa! Estamos satisfeitos com a amostra! — observou o Brás arredando-se para a porta.

— Vou ou não vou? — perguntou a Maricas Guandu, cravando os olhos de jacaré na freguesia assustada.

— Vai sim, mulher, vão todos, vai o mundo inteiro que é melhor! Ora! Já não se viram!

— Você pensou em tudo como deve ser, Tibúrcio?

— Que dúvida! Eu, o Chico valente e qualquer outro, leva espingarda carregada de sal. Não há de ser preciso fazer fogo com toda a certeza, porque o patusco arreia de susto, assim que nós gritarmos.

— E se não se importar com os gritos, faz-se fogo?

— Pudera! Uma feridinha de sal é coisa que tem chupado muito menino bonito.

— E o inspetor?

— Conta-se tudo ao inspetor. Há testemunhas! Nós estamos no nosso direito!

— Lá isso é verdade! — disse Pedro Cambraia sentenciosamente.

— Dá licença para uma palavra? — indagou o valentão Tibúrcio.

— Tem toda.

— Eu acho melhor o seguinte: sa Maricas e um ou dois dos nossos ficam aqui na venda...

— Não, senhor; não, senhor!

— Ouçam, minha gente! Faz lua hoje, mas afinal de contas a noite é escura, quase sempre como fundo de cacimba. Arranja-se archotes com casca de cana e azeite, para, quando filar-se o meco, virem com luz e ver-se direito a cara dele.

— Assim como assim — observou a tendeira -, não é mal pensado, não. Pois está dito! Eu fico: eu, o Brás e o José Paz! Nada! O José Paz não serve!

— José Paz é home corajoso! — acudiu o Tibúrcio, com o orgulho do general que louva os atos de bravura de um subalterno.

— Esse há de vir com a gente tocaiar o bicho.

— Ele não acredita! Ainda onte, disse aqui que o Cambraia andava girando!

— Logo eu lhe amostro o que é gira, deixa estar! Ele é que parece não ter a cachola no seu lugar!

— Se o Paz souber da verdade, não põe dúvida em entrar na festa!

— Há de entrar com a ajuda de Deus!

— Sempre se vai ver quem é o diabo da alma!

— Credo! Não fala assim, Chico! Eu até achava melhor ir primeiro ao vigário antes de fazer nada. Pode ser o espírito de um pecador que faz penitência!

— Pois que vá fazê-la no inferno! — exclamou o valentão Tibúrcio esvaziando uma excelente quantidade de cana.

Brás, encolhido na soleira, seguia automaticamente os movimentos dos outros.

— E tu, Brás? Vens também de noite?

— Vote! Mais me valia cair de cabeça para baixo na estrada quando passasse o carro de ferro!

O Brás fica comigo para levarmos os archotes.

— Lá isso, bem. No fim da trapalhada toda, estou pronto!

— Mofino!

— É meu proveito se sou mofino! O Rodrigo ficou mal-assombrado e foi para o hospício de Olinda! Cá por mim inda quero comer muita farinha!

A capela dos Prazeres estava aberta na hora em que José Paz passava pela freguesia. O matuto entrou, ajoelhou-se e, com os olhos molhados fixos no altar da Santa, murmurou o nome da filha. O vigário vinha saindo da sacristia quando José Paz levantava-se e dirigia-se à porta da igreja.

— Oh! sr. José!

— Muito boa tarde, sr. vigário! — respondeu o matuto curvando-se até o chão. — Não quis ir-me embora sem pedir A Senhora Mãe de Deus pela minha Rosinha.

— Como vai ela? — perguntou o padre carinhosamente.

E ambos saíram para o adro da capela, cheio de fresco e de sombra. O sol derramava ondas de fogo, e a carroça de um engenho, atopetada de canas e mangas, rangia atravessando a estrada.

José Paz ergueu os olhos para o céu e suspirou duas vezes.

— Não vai bem, não, sr. vigário!

— Conta-me isso, homem!

— Alguns dias depois que queimei-lhe os livros e os vestidos, ela ria-se alegre, cosia cantando e não falava na madrinha.

— Bom, bom. Foste um pouco exagerado, meu velho, mas não faz mal!

— Depois começou a ficar outra vez aborrecida e triste como dantes! Ali anda mau-olhado!

— Ah! A propósito de mau-olhado, que história é essa de almas do outro mundo, não me dirás?

— São bestidades do Pedro Cambraia. Parece que o dinheiro da loteria tem lhe dado muito de beber, e o pobre home já não sabe nem o que vê, nem o que conta! Vosmicê acredita em almas do outro mundo?

O vigário sorriu paternalmente, e batendo no ombro do matuto:

— As almas não morrem, sr. José, mas também não voltam. Deus reserva-lhes na vida futura uma outra existência completamente diversa da que tiveram, quando arrastavam o corpo entre as misérias da vida.

— É o que eu digo; não voltam.

— Se algum mau espírito humano, José, usa desses meios fantásticos para amedrontar os ingênuos e praticar atos menos cristãos, merece um castigo tremendo!

— Então o sr. vigário cuida que...

— Não cuido nada, que nada vi. Homo sum. Ouvi estarem por aí a falar de uma figura branca que aparece no Jordão todas as noites, e que tem espalhado o pânico entre os pacíficos habitantes do lugar! Isso é um crime monstruoso e que não deve ficar impune.

— Pois cá no meu juízo, sr. vigário, tudo não passa de doidices do Pedro Cambraia!

— Vamos ao que serve. Por que não mudas de terra? A menina estimaria bastante talvez, e aquelas tristezas fugiriam com o sol de outros climas.

— No Jordão nasci eu; no Jordão nasceu ela, sr. vigário. Só para o cemitério é que a gente se mudará um dia!

— Deus os proteja então. Olha cá: traze-a domingo à missa aos Prazeres. É missa cantada que a baronesa manda dizer por promessa, e vem muita gente do Recife. Rosinha se distrairá um pouco.

— Até domingo, sr. vigário.

— Vens?

— Que dúvida! É preciso que Nossa Senhora veja aquela pobrezinha de quem se está esquecendo!

— Não blasfemes, José!

— Ah! sr. vigário! — exclamou o matuto com a expressão de um amor profundo. — Se vosmicê fosse pai!...

E engoliu um soluço que partiu-se-lhe na garganta agitada.

O padre estendeu-lhe a mão:

— Até a vista. Tenho uma caminhada agora e não posso demorar-me que se faz tarde. Adeus, e esperança na Mãe de Deus, bálsamo para todas as aflições.

— Olhe, sr. vigário — volveu José Paz com um sentimento de convicção inabalável -, alguma grande desgraça vai-me acontecer!

— Estás louco, homem!

— Enfim, a Deus me entrego. Se for assim, ele que tenha misericórdia de minha alma no outro mundo!

José Paz encontrou à entrada do Jordão três dos perseguidores do fantasma: Tibúrcio, Pedro Cambraia e Chico valente.

— Já lhe fomos procurar em casa, so Paz, mas a menina disse que você tinha ido não sei aonde.

— É nova festa, Pedro? Tiraste mais dinheiro na loteria? — perguntou José Paz gracejando.

— A coisa é mais séria do que um samba, so Paz — acudiu o valentão Tibúrcio. — Esta noite ...

— Ah! Ah! Temos histórias de almas?

Os quatro foram andando devagar, enquanto o Chico valente tomava a palavra:

— Não caçoe, so José. Agora não é só o Cambraia quem fala. Eu vi, viu o Tibúrcio, viu a Maricas Guandu.

— Mas o quê? O quê? que é que vocês viram?

José Paz estacou de repente, e aguardou a resposta dos outros.

Vimos pela volta da meia-noite uma sombra muito grande sair da mata e caminhar com os braços estendidos para a frente.

— Ora!

— Andou um pedaço, parou, olhou em redor assim a modo de quem vê se há gente no caminho, e...

José Paz desprendeu uma gostosa gargalhada.

— Acaba o resto! — disse ele ao Tibúrcio. — Quero me rir à vontade dessas asneiras! Pelo que vejo, tudo anda maluco por cá!

— A alma caminhou, caminhou e enfiou os passos para sua casa, so José!

José Paz deu um salto violento, como se pisasse as brasas de uma fogueira.

— Que é lá isso? — exclamou ele rubro e pálido, ao mesmo tempo com as pernas trêmulas e os punhos cerrados. — Olhe, so Tibúrcio, pela alma de minha mãe, que, se você não disse a verdade, meto-lhe no couro duas libras de chumbo grosso!

— Está dito, so José. Venha em nossa companhia hoje de noite, que vamos desencovar o bicho.

— Vou — respondeu José Paz, com a voz surda e vacilante; — leva-se alguma arma?

— Espingardas com carga de sal. Matar é crime grande, e, depois, se a alma é mesmo de defunto...

— As almas não voltam — interrompeu José Paz, lembrando as palavras do vigário. E murmurou entre os dentes contraídos:

— Eu levo a minha faca.

Rosinha tremeu reparando na fisionomia do pai quando ele entrou em casa.

— Estás melhor? perguntou-lhe o velho com uma duvidosa expressão de ternura e de cólera.

— Estou.

O matuto não buliu no jantar, e, ao sair da mesa, saiu também de casa. A menina correu ao seu quarto e deixou-se cair na cama, com os olhos desvairados e as mãos crispadas no travesseiro.

— Meu Deus! — gemeu ela — hoje é o último dia de minha vida!

Correu à janela, examinou de novo o peitoril, o chão do lado de fora, estendeu a vista mais além. Nada vendo do que procurava, respirou sofregamente e limpou o suor gelado que lhe escorria entre os cabelos soltos.

Não havia notícias da milionária, nem o criado viera, já há três dias, ao Jordão, de forma que aquela angustiosa carta, escrita na véspera, ainda não tinha seguido a seu destino.

Eram cinco horas da tarde. A porta da tasca dialogavam vivamente José Paz, Tibúrcio, Pedro Cambraia, a tendeira, e mais dois ou três sujeitos.

Um deles, um rapaz de 18 anos, robusto e cândido como um novilho, encostava-se negligentemente ao cano meio enferrujado de uma clavina. Chamava-se Mariano, e era o tal caçador da Boa-Viagem de quem falara pela manhã o valentão Tibúrcio.

— Às 11 horas — dizia José Paz -, estamos todos reunidos aqui para irmos tocaiar perto de minha casa.

— Quer a minha espingarda, so José? — perguntou o Brás.

Dois relâmpagos sanguinolentos cruzaram-se nos olhos de José Paz.

— Obrigado, rapaz. Eu tenho faca. E bateu no quadril.

— Cuidado com os tiros, se houver tiros, meu povo — observou a Maricas Guandu. — é bom a gente não ir parar na cadeia por uma coisa à-toa!

— Não há novidade — exclamou Pedro Cambraia. Tudo corre pelo melhor, sa Maricas. E você o que diz Mariano?

O rapaz da clavina, descansando a coronha da arma no chão:

— Eu vim só para ver — respondeu ele. — Se trouxe a Chica — era o nome da clavina -, é porque nunca ando sem ela. Mas para hoje não serve!

— Está carregada?

— E com chumbo de veado. Já tem mês e meio a carga, foi para a caçada do tal doutor, que gorou. Mas não faz mal; se for preciso trabalhar com o coice da arma, cá está o degas!

José Paz contemplava sua casa, através das árvores que a envolviam, com o olhar profundo e agoureiro.

Rosinha recebeu a bênção do pai à hora de se recolher; a mão do matuto estava gelada como uma lousa de mármore.

A menina não se despiu; começou a passear pelo quarto, ora rápida, ora vagarosa e trôpega, amparando-se às paredes e encostando o ouvido aterrorizado à tábua gretada da janela.

Estava quase a bater meia-noite. A lua, em toda a sua esplêndida doçura e majestade, contemplava, cercada de estrelas, a terra silenciosa. Um surdo ruído produzido de encontro à janela fez vacilar Rosinha; fora a asa de um morcego, animal sinistro que sempre anuncia desgraças, e que vinha talvez despertá-la para algum perigo iminente.

A infeliz teve ímpetos de abrir a janela, mas recuou defronte dessa ruim idéia. Novo ruído dentro do quarto chamou-lhe a atenção, e ela viu uma grande borboleta negra pairando sobre a sua cama.

Com os braços, as mãos e os cabelos inundados de suor, as pernas trôpegas e a boca enregelada, a afilhada da milionária seguia tudo o que a cercava, muda e sombria como as figuras que ornam os túmulos adorados.

Estavam de emboscada José Paz, Tibúrcio, Pedro Cambraia, Mariano, Chico valente e mais outro espião.

Tibúrcio, de joelhos na frente do grupo, com a espingarda entre os joelhos, alongava a vista pelos confins da estrada.

Soou a fatídica meia-noite, lentamente, na asa lúgubre do vento, que murmurava entre as árvores obscuras.

— Não façam bulha — murmurou Tibúrcio. — Ela não tarda.

José Paz tinha a boca entreaberta e a testa úmida, que reluzia ao clarão misterioso da lua. Chico valente, apesar do seu título de bravura, rezava consigo uma oração própria para conjurar duendes e fantasmas.

A um sinal rápido de Tibúrcio, todos prestaram mais atenção, arregalando os olhos enevoados pelo supersticioso terror que os acometia. Vinha descendo da mata a longa figura branca, de braços estirados e o porte sinistro como o de um espectro evocado entre os horrores dos túmulos.

José Paz apertou com a mão oscilante o cabo da faca, e seus olhos faiscaram tempestuosamente.

A sombra caminhava solene, silenciosa, assustadora, no meio da estrada. Tibúrcio examinou o gatilho da espingarda que estremecia entre os seus joelhos bambos.

— Vamos dar um grito para assustá-la, so Paz -questionou o Chico valente, doido por safar-se da meada.

José Paz fitou-o com um furor indescritível.

— Se alguém gritar aqui — disse ele surdamente -, cravo-lhe a faca na goela!

O fantasma pouco distava da casa de José Paz.

Tibúrcio voltou-se para o pai de Rosinha, e amedrontou mais do que a alma do outro mundo a cara hedionda do matuto, ruivo de cólera e de horror.

O peito arfava-lhe sibilando; as narinas zuniam-lhe vivamente e, de sua boca pálida, saia a respiração como o silvo das cascavéis no meio do fogo.

O fantasma aproximava-se cada vez mais, e José Paz abafou um grito na garganta abrasada.

— Não era possível duvidar! A sombra, depois de uma pequena pausa em que ficou parada como a examinar o que havia em redor, adiantou-se para a janela do quarto de Rosinha.

Tibúrcio levantou os braços e tentou gritar; a voz ficou-lhe estrangulada entre os dentes.

José Paz, alucinado, louco, terrível, deu um arranco de fera para trás, desembainhou a faca, lançou-a ao chão, e antes que se lhe pudesse impedir o movimento, arrebatou das mãos de Mariano a clavina, engatilhou-a e fez rogo, uivando como uma onça ferida.

A sombra moveu os braços longos e caiu estendida por baixo da janela. Quase ao mesmo tempo um grito de dor imensa atravessou o espaço, e uma outra sombra atirou-se da janela de Rosinha, caindo ao pé do ferido.

A Maricas Guandu e o Brás acudiram ao rumor do tiro com archotes que espalhavam uma luz penetrante e clara. Correram todos ao lugar do sinistro, e um brado geral desprendeu-se de todas as bocas. Rosinha de joelhos procurava estancar o sangue com as mãos agonizantes, o sangue que jorrava do peito do ferido, inundando a vasta mortalha em que estrebuchava o corpo.

Era Adriano. O chumbo penetra-lhe no lado esquerdo por baixo do ombro, fazendo uma ferida larga e mortal. As sombras finais coroavam a pálida cabeça do moribundo como de uma auréola sagrada. Seus olhos enublados fitavam o semblante da menina, e um sorriso doloroso e meigo voava nos seus lábios extáticos como a última irradiação da mocidade.

José Paz cambaleava e não tinha uma palavra a pronunciar naquela desolação horrenda.

A Maricas Guandu benzia-se, o Brás desatou a chorar, e o Mariano ajoelhou-se junto ao corpo do ferido:

— Perdoe-me, perdoe-me, meu senhor! — articulava o pobre rapaz, torcendo as mãos desesperado. — A clavina é minha, foi so Paz quem ma arrancou das mãos, mas se eu soubesse disto, antes queria rachar a cabeça de encontro a uma pedra!

Adriano voltou os olhos para o rapaz que soluçava contraindo-se em cãibras dolorosas.

— Não foste tu, meu amigo — disse ele a custo e com uma voz suave e triste -, foi a mão de Deus quem carregou a tua clavina. Pobre criança! — continuou contemplando Rosinha que, de joelhos, o observava sem proferir uma palavra e sem derramar uma lágrima — Pobre criança! O céu não quis que eu recebesse de tuas mãos a felicidade na Terra. Fica o teu véu de noivado, Rosinha, enodoado eternamente de sangue!

Ela não pestanejou sequer; parecia petrificada pela dor.

— Sr. José Paz — prosseguiu Adriano, procurando com os olhos quase apagados o vulto do assassino -, eu lhe perdôo e o lamento; não foi a mim que o senhor matou, meu velho, foi a alma de sua filha!

José Paz cambaleou de novo e segurou-se a uma árvore afastando-se do grupo.

— Não haverá um padre por aqui? — perguntou o ferido.

— Há nos Prazeres, e eu vou o buscar voando! — exclamou Mariano.

O ferido sorriu.

— Quando voltasses já eu estaria morto. Não vás, não; e ouçam-me vocês todos, meus amigos.

Aproximaram-se trêmulos, descobrindo-se um por um.

— Esta menina — acrescentou o moribundo – é pura como a hóstia do altar, e como as flores de Deus. O culpado fui eu que quis por força ir de encontro ao meu destino. E tu me havias prevenido, Rosinha! Mas estava escrito que este louco havia de morrer a teus pés!

A luz clara e brilhante, que por momentos se escondera entre nuvens, fulgurou no céu, de novo límpido e sereno. Um sabiá trinou no meio do mato, cuidando que era dia.

Adriano prosseguiu, abaixando a voz pouco a pouco, e à semelhança de uma luz que bruxuleia e apaga-se na lanterna seca de óleo.

— Adeus, Rosinha, pensa algumas vezes em mim...

Respirou com força como a despedir-se para sempre das aragens da terra, e:

— Guarda o meu nome no teu coração, oh! Meu doce e desgraçado amor!... Reza para que o céu tenha piedade de minha alma lá em cima!

Rosinha, sempre muda, cruzou as mãos molhadas de sangue no seio que estalava ofegante.

Adriano Carvalhal foi, pouco a pouco, deixando cair a cabeça, estirou os pés gelados sob a mortalha roçagante, e tentou por um esforço sobrenatural apertar na sua a mão da virgem.

Mas as forças abandonaram-no, e a mão pesada caiu sobre o corpo ensangüentado.

Seus olhos, sem irradiações e sem chamas, embeberam-se no céu.

— Quantas estrelas. — suspiraram os lábios extáticos e deslumbrados.

E, entreabrindo a boca, o moribundo exalou o derradeiro sopro, a derradeira exalação o derradeiro vestígio de sua mocidade. Para o céu festivo ascendeu aquela pobre alma enamorada, ferida no melhor banquete de suas esperanças e de suas ilusões de amor.

Rosinha desprendeu um grito rouco e cavo, entre o som produzido pela voz humana e o bramido da fera baleada. Ergueu-se de ímpeto, atirou para trás os cabelos negros, curvou-se junto ao cadáver, sacudiu-lhe a cabeça inanimada e, desferindo um círculo com os pés velozes, saltou sobre o corpo de Adriano e partiu a correr pela estrada deserta.

A Maricas Guandu e o Brás voaram-lhe no encalço e a prenderam nos braços quase à beira do rio. Ela olhou-os com uma feição de idiota, escondendo os dedos vermelhos de sangue, e desatou a soluçar, a chorar e a rir vibrantemente, ameaçando o céu com as mãos fechadas e convulsas.

José Paz foi entregue à justiça como assassino de Adriano Carvalhal.

A milionária envelheceu em uma semana, e metade de suas alegrias foi dentro do esquife do sobrinho. Pouco safa; apenas de dois em dois dias ia a Olinda, e visitava alguém no hospital dos alienados.

Esse alguém era a Rosinha do Jordão.

Contava a irmã de caridade que a loucura da menina era das mais dóceis — de que há notícias entre os desgraçados, órfãos de razão e de luz.

A menina gastava o dia inteiro em trançar coroas com flores, com papel e com tudo que lhe caia às mãos, para no dia seguinte desmanchar a obra e começá-la de novo.

Não pronunciava uma palavra, e olhava para a madrinha de vez em quando, como se nunca a tivesse visto neste mundo.

A meia-noite erguia-se da cama, e pé ante pé, com o dedo na boca, a reclamar silêncio, metia-se no vão da janela, ouvindo em santo recolhimento as 12 pancadas do sino confundidas com o sussurro eterno do mar.

Era essa a hora em que ela costumava esperar o pobre do Adriano.