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A ilha maldita/IV

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Por esse tempo já essa ilha malsinada, que tanto te dá que pensar, era o terror e o duende dos pescadores por toda a extensão destas costas. Corriam desde tempos imemoriais entre o vulgo lendas sinistras e aterradoras a respeito dessa ilhota, que se apresentava como um rochedo medonho e inacessível, erguendo-se cinco ou seis braças acima das ondas, liso e escarpado à maneira de barbacã denegrida e inexpugnável de um castelo roqueiro. As vagas se despedaçavam furiosas em torno dele bramindo e refervendo em perpetua agitação, e ninguém até então tinha podido lobrigar-lhe por qualquer dos lados uma pequena enseada, uma ponta de rochedo, uma aspereza, por onde se pudesse firmar o pé na maldita penedia. Uma tempestade eterna roncava-lhe em torno cingindo-a de alvos escarcéus de espuma, que incessantemente se arrojavam e recuavam em perpétua escalada contra as titânicas e inabaláveis muralhas, indo lamber-lhe até o alto das ameias. Era avistada ora em um ponto, ora em outro do horizonte, algumas vezes mais próxima à costa, outras em remotíssimas distâncias, ora formosa e risonha descoberta a todos os raios do sol, ora negrejando em volta em carregados nevoeiros, como sombria e tétrica masmorra. Às vezes também desaparecia inteiramente destes mares para tornar a aparecer depois de alguns meses, e havia notícia de que se apresentava em frente de outras terras situadas a enorme distância daqui. Alguns pretendiam fazer crer que era um monstro marinho de espantosas dimensões, mas o que é certo, e o em que todos acreditavam e acreditam até hoje, é que aquela penedia é uma ilha, que anda solta a boiar sobre os mares, e que é nada menos que o palácio flutuante de uma sereia, feiticeira ou fada marinha, a qual, com o poder de seu condão e de seus conjuros diabólicos, a faz mover-se de um ponto a outro, e submergir-se ou surgir à tona da água conforme o seu capricho. Contavam mais, que essa sereia ou fada com a magia de seus cantares e artifícios satânicos costumava atrair para lá alguns pescadores dos mais jovens e formosos, e que lá os guardava para sempre encerrados em suas impenetráveis espeluncas. Alguns também, que tinham tido a rara fortuna de avizinhar-se da ilha sem lá ficarem para sempre detidos, referiam que pelas penedias que a cercam ressoavam harmonias e cantares suavíssimos, e asseguravam mesmo terem visto sobre a crista dos penedos uma donzela de estranha formosura dedilhando uma harpa de ouro engastada de pérolas, e entoando canções tão tristes e maviosas que faziam gemer de saudade os próprios rochedos. Sabia-se até o número e os nomes das desventuradas vítimas que tinham caído nas ciladas da maléfica e perigosa feiticeira dos mares.

Todos os barcos de pescaria ou cabotagem que cruzavam por estas costas evitavam com cuidado aproximar-se do rochedo maldito, e os barqueiros ao avistarem-no, por mais distantes que estivessem, o esconjuravam rezando o credo e benzendo-se três vezes.

Havia, entretanto, uma pessoa a quem a ilha encantada, longe de inspirar terror, excitava a mais viva curiosidade e o mais ardente desejo de vê-la de perto, de tocá-la com suas mãos, de pisá-la com suas plantas. Era Regina. Essa ilha, que para os outros era um fantasma sinistro, um covil de duendes e seres malfazejos, para ela se afigurava um regaço de mãe carinhosa, um berço de amores, um ninho de delícias. Era filha do mar, talvez de alguma sereia, e à vista das maravilhosas histórias, que desde a mais tenra infância ouvira contar a respeito dessa ilha misteriosa, não hesitava em acreditar que esta não era defeito mais que o palácio encantado de sua mãe, que ela ali havia nascido, e que um desastre ou outro qualquer incidente roubando-a a seus pais e a sua pátria, a tinha arrojado nas praias dessa terra, onde vivia como exilada e em que não podia achar encanto algum.

Por isso aquela ilha tinha para seus olhos e para sua alma um misterioso e irresistível atrativo; por isso a viam muitas vezes solitária e triste sentada sobre um rochedo da praia contemplando aquele objeto de seus fantásticos amores e entoando endechas repassadas de saudade e melancolia. Dir-se-ia que tinha uma lembrança vaga de um mundo estranho, em que passara dias mais felizes e lamentava no exílio a perda de uma pátria querida.

Nestes cismas passava horas e horas excogitando um meio de avizinhar-se e de aportar mesmo a essa ilha que, inóspita para os outros, estava persuadida que para ela abriria seu seio acessível e franco, como se batesse ao limiar do lar paterno.

— Eu sei nadar e bracejar muito bem — refletia consigo a menina — para romper as ondas com denodo e vigor, não tenho inveja a ninguém, mas não há de ser a nado que jamais poderei vencer tamanha distância. Oh! Se eu pudesse ter um barquinho com vela e remo…! Um barquinho que fosse só meu, e em que eu sozinha pudesse me aventurar por esses mares, à hora que eu quisesse…! E por que não hei de tê-lo…? Vou pedir à mamãe, e hei de pedir-lhe tanto, tanto hei de importuná-la, que ela por força há de me dar um barquinho. Então, sim, hei de ver aquela ilha, hei de pôr o pé nela, custe o que custar.

Contente com a lembrança que tivera, e firme em sua resolução, Regina correu imediatamente a fazer o seu pedido. Felisbina a princípio arrepiou-se com tal ideia, e já com as armas da brandura, já com tom severo e imperioso, tentou demover a menina de semelhante propósito e impedir a realização dessa extravagante veleidade.

— Abrenuncio, minha filha! — exclamou ela. — Nem me fales em tal…! Eu dar-te um barco…! E deixar-te sozinha sair nele por esse mar afora…! Nem que eu fosse mais doida do que tu…! Se mesmo sem barco com tuas travessuras me trazes em contínuos cuidados e aflições, que diremos se te pilhas em um barco por esse mar além!

“Não, minha sereiazinha de meus pecados, varre isso da ideia; não serei eu quem te há de dar asas para voares a tua perdição.”

— Qual perdição, mamãe! — replicava a menina. — Eu sou do mar; o mar para mim não tem riscos; e mamãe pensa que eu não sou capaz de manejar um remo, içar uma vela, e manobrar um barquinho por esse mar em fora…? Demais eu preciso desde já ir-me exercitando neste ofício.

“Se um dia mamãe me faltar, eu que ficarei sozinha no mundo, de que hei de viver senão de pescaria…?”

Enfim Regina tanto rogou, instou, suplicou, tais promessas e seguranças deu, de que não se desmandaria nem se deixaria perder, que forçoso foi ceder-lhe, e ela teve o seu batelzinho novo, esguio, lindo e ligeiro, digno enfim da mimosa e gentil ondina, que tinha de governá-lo. Apesar de seus cuidados e apreensões, Felisbina não pôde deixar de extasiar-se ao ver com que vigor e destreza Regina logo desde o primeiro ensaio sabia dirigir seu pequeno e lindo batel.