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A ilha maldita/III

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Agora vamos saber quem era essa Regina, essa moça misteriosa que não tinha pátria, nem pais, nem parentes, donde veio e como aqui apareceu.

Felisbina era uma viúva já idosa, que morava em um pobre ranchinho aqui à beira-mar; seu marido, valente pescador, que nunca conhecera outra profissão, morreu de um desastre no mar ainda no vigor dos anos, sem deixar à sua viúva nem mesmo um filho para lhe servir de arrimo e consolação na velhice. Vendo-se tão sozinha no mundo, nem por isso desaminou a boa mulher. Vivia do fiar, tecer redes de pescaria, gorros e outros objetos que vendia aos marinheiros. Toda esta aldeia tornou-se então sua família, porque era ela uma santa mulher, que a ninguém fazia mal; ao contrário, era em extremo prestativa, benfazeja e carinhosa para com todos. Amiga do trabalho, não lhe faltava o necessário, e como era muito caritativa, do seu pouco sempre lhe sobrava para socorrer aos pobres e acudir aos enfermos. Posto que sozinha em sua cabana isolada, vivia tranquila e satisfeita, pois nada ambicionava e nada tinha que recear no seu pequeno mundo, onde era tão benquista e respeitada de todos.

Um dia pela manhã, Felisbina, tendo-se levantado muito cedo como era seu costume, saiu a percorrer as praias vizinhas. O dia amanhecera limpo e sereno, e o mar bonançoso; à noite, porém, fora de tormenta e mar encapelado. Grossos vagalhões rebentando com fúria tinham vindo quebrar-se junto à soleira da cabana.

Ao abrir a porta o primeiro objeto em que Felisbina deu com os olhos foi uma criança estirada na praia, fria exânime e hirta por tal forma, que parecia estar morta sem remissão.

Era uma menina que poderia ter de três a quatro anos de idade, alva, linda e mimosa, que mais parecia ser uma figura de jaspe.

— Virgem Maria! — exclamou a viúva, lançando-se à criança e levantando-a do chão. — Que será isto, meu bom Jesus…?! Uma criança…! Uma menina…! Assim atirada na praia…! De quem será esta pobrezinha…?!

Assim falando tomava a menina nos braços, procurava aquecê-la aos seios descarnados, afastava os finos e macios cabelos molhados, que se colavam ao rosto como algas marinhas pegadas a um crustáceo engastado de pérolas e corais; e soprando-lhe nas narinas e na boquinha, que entreabria com os dedos, procurava insinuar-lhe nos pulmões o alento vital.

— Coitadinha! — continuava a boa velha. — Tão mimosa, tão galante…! Se está morta, que golpe para seus pobres pais…! Louvado seja Deus! — exclamou por fim, levantando os olhos ao céu. — Está viva…! E pode escapar. Benza-a, Deus, como é mimosa e bonitinha…! Mas de quem será esta menina, e como veio amanhecer aqui atirada na praia por este modo lastimoso…?! Não é de ninguém que eu conheça e, entretanto, nesta redondeza conheço todo mundo, velhos e crianças. Será a da comadre Joaninha…? Não, essa tem cabelos pretos, e os desta são cor de castanha. A da comadre Ponciana é mais crescida e é morena, e esta é alva como as conchinhas da praia. Também não pode ser a da vizinha Gertrudes, que fez um ano outro dia, e esta já tem todos os dentes… e que lindos dentinhos, meu Deus…! Que pérolas…!

Continuando sempre nestas e outras exclamações, a boa velha apertava ao peito com maternal carinho a pobre criança asfixiada, e procurava chamá-la à vida como querendo comunicar-lhe o calor de seu peito, o alento de seus pulmões, o sangue de suas veias, ao mesmo tempo que prorrompia em gritos de entusiasmo e admiração, ao passo que a examinava e descobria nela novas graças e perfeições.

— Está visto — continuou ela —, não é de gente daqui. Há de ser de algum navio que deu à costa nesta noite de tanta tormenta. Este mar! Este mar…! Tenho vivido sempre perto dele, e mesmo assim tenho-lhe medo…! Mas Deus, que é de misericórdia, não quis que se perdesse nas ondas este tesouro de inocência e formosura, e enviou-o para mim. E foi o mar, esse mar, que me roubou meu bom marido, que agora teve dó de mim e deu-me uma filha. Sim, foi Deus que me a enviou, ó minha filha.

Dito isso, a boa velha, delirante de júbilo, recolheu-se apressadamente à cabana, levando nos braços o seu precioso achado, e graças a seus socorros e solícitos cuidados, a menina em breve recobrou os sentidos e voltou à vida. Ninguém pode avaliar o íntimo e pleno contentamento que ela sentiu quando viu irem se descerrando languidamente os lindos olhos da menina, e refletirem a luz do céu e da vida. Foi uma interminável explosão de exclamações delirantes de entusiasmo e alegria. Eram, com efeito, dois peregrinos e encantadores olhos verde-mar, tendo o centro das pupilas de um negro de azeviche.

— Que olhos, meu Deus! — exclamava ela. — Nunca meus olhos viram olhos assim…! Parecem duas estrelas a se espelharem no regaço cristalino de um mar de leite…! Mas também como são vivos…! Que esperteza! Que fogo…! Agora parece que despedem coriscos…! Santo Deus! Que menina encantadora…! Uma criaturinha assim só nasceu para dar gostos.

É quase escusado dizer que Felisbina, apenas a menina se restabeleceu, andou com ela de casa em casa mostrando o inapreciável tesouro que o céu lhe tinha dado, mais contente e ufana do que se tivera pescado a mais graúda e brilhante pérola do oceano. Todos em geral, homens e mulheres, velhos e meninos, ficaram embasbacados e boquiabertos ao contemplarem a rara perfeição e formosura da interessante menina.

Se bem que revelasse vigor e vivacidade superior à sua idade, a filha do mar apenas balbuciava algumas palavras que ninguém compreendia, pelo que nunca mais se pôde saber, quem era ela, nem por que fatalidade fora arrojada a essas praias. Acreditou-se, como era natural, que seria filha de pais estrangeiros, e por isso nada sabia da língua portuguesa.

Fosse como fosse, Felisbina adotou-a como filha, e propôs-se a criá-la e educar com todo o amor, carinho e solicitude de uma verdadeira mãe. Ignorando se era ou não cristã, fê-la batizar pelo cura do lugar, serviu-lhe de madrinha e deu-lhe o nome de Regina, santa do dia em que a menina aparecera exposta na praia junto à sua cabana.

Começou logo a desenvolver-se extraordinariamente a pequena Regina, quer no tamanho, gentileza e agilidade do corpo, quer na formosura do semblante e nas graças e prendas do espírito. Era o mimo da velha e o enlevo e assombro de toda a gente destes arredores. À medida que ia crescendo, cada vez mais formosa e interessante, ia-se tornando esperta, inquieta e trêfega que nem uma sílfide; era isto próprio da idade, mas Regina tinha caprichos tão singulares, dava-se a travessuras tão livres e audaciosas, que traziam a boa viúva em contínuos sustos e inquietações. Aos dez anos nenhum rapaz de sua idade poderia competir com ela em viveza, audácia e agilidade. Galgava os píncaros dos mais altos rochedos, percorria as praias, rompia os mangues e matagais do litoral nas maiores distâncias. O mar não lhe inspirava o menor terror, parecia o seu elemento natural; nadava e brincava sobre as ondas, as mais agitadas, risonha e tranquila como se estivesse sobre um berço de flores. A madrinha afligia-se sumamente com tais loucuras; ralhava, esbravejava, pedia, suplicava embalde; não era possível vencer a índole indomável da rapariga.

Quando a maré enchia roncando por esses areais, e vinha como uma montanha esbarrar na praia em altos escarcéus, era seu divertimento correr como doida pela praia avante ao encontro do vagalhão. Então o mar a tomava em seu dorso, como a mãe carinhosa toma o filho no regaço, e a menina lá ia boiando como alva conchinha suspensa na crista marulhosa, e voltava a pousar na praia confundida com as espumas da ressaca. E enquanto a boa madrinha, toda sustos levando as mãos à cabeça, soltava gritos de terror e aflição, Regina, imperturbável e risonha, brincava e cantava, balouçando-se sobre as águas como a garça do mar.

— Mamãe não costuma dizer que eu sou filha do mar…? — objetava ela às queixas e repreensões da velha. — Pois sou mesmo, e se o mar é meu pai, dele não pode me vir mal.

— Quem sabe, menina…?! Nunca é bom facilitar, o mar é traiçoeiro; não te fies muito nele. Meu bom marido, que Deus haja, também gostava muito dele, e nele perdeu a vida e, entretanto, era um homem possante e valente como poucos, e tu, uma fraca menina, queres zombar dele…?

— Eu não zombo dele, mamãe; quero-lhe bem, ele também me quer. Eu acho que sou sereia, mamãe; com minhas cantigas, eu sei amansar ou embravecer as ondas do mar, conforme me parece. Quer ouvir como eu canto? Vá escutando:

Viver aqui não desejo
Nem no vale, nem na serra;
Eu não sou filha da terra,
Eu sou sereia do mar.
   Correi, ondas mansamente,
   Correi, vinde me buscar.

Nasci no seio das vagas
Numa gruta de cristal;
Em colunas de coral
O meu berço se embalou.
   Ondas, levai-me convosco,
   Que eu desta terra não sou.

O mar criou-me entre pérolas
Sobre fúlgidas areias;
Mago canto de sereias
Meus sonos acalentou.
   Ondas, levai-me convosco,
   Que eu também sereia sou.

Eu não sou filha da terra,
Vivo triste nestas plagas;

Embalada pelas vagas
Só no mar quero viver.
   Correi, correi, mansas ondas,
   A meus pés vinde gemer.

No regaço cristalino
Brandamente me tomai;
Aos palácios de meu pai
Vinde, vinde me levar.
   Correi, ondas pressurosas,
   Levai a filha do mar.

E se alguém na terra ingrata
Sentindo loucos amores
Meus encantos e favores
Insensato desejar,
   Em torno a mim, bravas ondas,
   Vinde em fúria rebentar.

Em solitário rochedo
Batido, pelas tormentas
Ide, ó ondas turbulentas,
Ide longe me ocultar.
   Rugindo ali noite e dia
   Guardai a filha do mar.

Enlevada com os acentos daquela voz a mais suave, fresca e argentina que jamais ouviram ouvidos humanos, Felisbina depunha inteiramente suas cóleras passageiras, e seu rosto reassumia a risonha serenidade de costume.

— Que quer dizer essa cantiga, menina? — dizia-lhe entre risonha e enfadada. — Quem te ensinou essas desastradas trovas…? Até já queres passar por sereia…! Doidinha…! Melhor seria que cantasses o bendito e a ave-maria, para que Nossa Senhora do Amparo te livre das ondas do mar.

— E dos perigos da terra, mamãe, que ainda são piores — retrucou a menina.

E os pescadores que, em distância, observavam as proezas de Regina e ouviam-lhe a voz vibrante e harmoniosa, esconjuravam-se murmurando entre si:

— Cruz…! Que menina, santo Deus…! Não ouviram o que ela estava cantando…? Aquilo ou não é filha de gente batizada ou tem partes com o diabo…! Se eu duvido que ela é mesmo filha de sereia, ou feiticeira do mar…! Queira Deus, tia Felisbina, queira Deus não te arrependas de ter-lhe dado criação e gasalhado…!