A ilha maldita/II

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Enquanto se celebrava o casamento, o povo, cuja atenção estava toda absorvida na contemplação dos noivos, não havia reparado em três vultos, que de um canto da igreja assistiam também ao mesmo espetáculo, não com aquela curiosidade folgazã e descuidosa, de que os outros se achavam animados, mas com certo ar sinistro, com certo olhar torvo e inquieto, que parecia relancear chispas de ódio e vingança. O crepúsculo, que começava, e a penumbra, em que se achavam envolvidos, fizeram que não se prestasse atenção a esses três personagens, que vistos à plena luz teriam excitado vivos receios e desconfianças. Eram três mancebos da mais gentil presença, de bem delineadas feições, e de altivo e garboso porte, mas ressumbrava-lhes da fronte torvada e do olhar ardente e tresvariado um não sei quê de sombrio e feroz, faria estremecer a quem os encarasse com atenção. Eram muito semelhantes e quase iguais na idade; via-se logo que deviam ser irmãos. O mais velho teria a rigor 25 anos; ao mais moço despontava apenas o buço da juventude.

Enquanto durou a cerimônia, permaneceram mudos e imóveis a um canto da nave, procurando isolar-se da multidão, que se acotovelava em roda do interessante e formoso par; mas se alguém de perto os observasse com alguma atenção, sentiria o ofegar ansioso que lhes empolava os largos peitos, o ranger de dentes e o lampejo sombrio e feroz das pupilas, que pareciam dardejar fogo e sangue. Quando, porém, os dois esposos pronunciaram com voz clara e firme o sim, que iam enlaçar para sempre seus destinos, um calafrio percorreu-lhes todo o corpo. Com a boca entreaberta, a respiração suspensa, o pescoço estendido, à maneira de serpentes, que com o olhar ardente e fixo queriam atrair e devorar o feliz e descuidoso par, ouviram sem pestanejar aquela palavra tão simples, e que entretanto parecia queimar-lhes o sangue, e envenenar-lhes a existência. O mais velho, principalmente, cuidou de morrer naquele instante fatal. O coração batia-lhe violenta e desordenadamente; faltava-lhe o ar, e teria baqueado por terra, se não se arrimasse ao braço de seu irmão imediato. Era-lhe preciso desabafar para não estourar de angústia e desespero.

— Ah! Meu irmão…! Meu irmão! — murmurou ao ouvido deste com voz surda e convulsa, enquanto uma lágrima ardente despontava-lhe na pálpebra, e secava-se imediatamente queimada pelo fogo da paixão — não sei que será de mim! Se esse forasteiro logra gozar um instante aqueles mimos, por que tanto em vão suspirei, eu morro, e morro desesperado como o preceito em condenação eterna. Não, não há de ser assim, maldito! — continuou volvendo-se para o noivo de punho cerrado e gesto ameaçador. — Esta noite deve ser a derradeira para ti, ou para mim…!

— Para ele só, Rodrigo — replicou Roberto, o irmão imediato, com o mesmo tom de voz sinistra e abafada —, pobre irmão…! Quanto sofres…! Mas juro-te por minha alma; antes que as mãos daquele aventureiro possam locar em um só dos encantos dela, hão de cair hirtas e frias…

— E antes que aquela boca — interrompeu Ricardo, o mais moço dos três — possa dizer-lhe uma só palavra de amor, tem de morder a terra, donde nunca mais se levantará senão para cair mais baixo ainda.

A cerimônia estava terminada. O rumor e remoinhar da multidão interromperam os terríveis desabafos e tremendas juras dos três irmãos, que, vendo-se envolvidos no turbilhão do povo, saíram da igreja, e de volta com os outros, foram também acompanhando os noivos. Não era, porém, um sentimento de vã curiosidade, e muito menos de regozijo, que os impelia a fazer parte do séquito. O ciúme e o ódio, que lhes devorava o coração, os levava com instintiva e irresistível atração a não perderem de vista o par afortunado que, tranquilo e descuidoso, ia descendo a colina acompanhado de grande número de velhos, mulheres e meninos, que os felicitavam e bendiziam.

— Este casamento é uma grande felicidade para eles, e sossego para nós, que temos filhos — diziam as velhas.

— E para nós, que temos ou queremos ter maridos — diziam as moças.

— Abençoado seja esse moço, que nos leva a filha do mar para sossego desta terra.

Deus os favoreça a ambos, diziam todos.

Entretanto, o numeroso grupo que os acompanhava foi-se escasseando pouco e pouco. Como na pequena cabana dos noivos não os esperava festa nem folguedo algum, muitos foram se ficando em meio caminho. Os três irmãos, porém, continuaram a acompanhá-los e, deixando-se ficar um pouco atrás sem serem persentidos, esconderam-se entre os rochedos, que ficavam próximos à casa de Regina.

Já a noite ia avançada quando os dois felizes esposos, despedindo-se agradecidos da boa companhia, abriram a porta da cabana e entraram sozinhos no estreito aposento, onde o mais afortunado dos esposos ia com mão trêmula de ventura e de emoção desatar a grinalda virginal da fronte pudibunda da mais sedutora e peregrina beleza, que o sol alumiava. Ficaram, pois, na mais completa solidão, solidão para eles bem propícia e agradável, pois tinham naquela estreita alcova e em si mesmos um mundo infinito de amor e de delícias. Como nada tinham a recear, deixaram aberta uma pequena janela, que dava para o mar, e por onde entrava a luz de um esplêndido luar, única lâmpada, que alumiava sua câmara nupcial. Câmara não digo bem; essa palavra traz à ideia luxo e fidalguia, etiqueta e frieza. Ei-las em seu berço de amor as duas aves do mar, que, por algum tempo tendo esvoaçado a esmo sobre as ondas, encontraram-se por fim em seu adejo sem rumo, e voando de par a par vieram pousar entre os rochedos da praia para aqui tecerem seu ninho de primavera.

Deixemo-los aqui, meu filho, entregues às delicias do presente e aos sonhos do futuro, sem saberem que bem junto deles vela o ciúme feroz estorcendo-se nos estertores da inveja e do desespero, e planejando horrores. Deixemo-los aqui, e vamos saber quem era essa Regina e esses três irmãos, que com tão maus olhos encaram seu casamento. Estás ouvindo com atenção, menino…?

— Estou, sim, senhor — respondeu o rapazote bocejando.

— Parece que já estás a cochilar…?! Quando quiseres dormir, fala-me, pois não estou para contar histórias às ondas e aos ventos.

Aqui o pescador fez uma pausa como para recordar o muito que ainda tinha por contar desta intrincada e maravilhosa história. O coitado nem sabia por onde devia começar para tornar bem clara a sua narração; mas enfim, depois de ter acendido o cachimbo e puxado algumas fumaças, continuou a contar o que se verá nos capítulos seguintes.