A ilha maldita/VI
Regina era de fato uma criatura incompreensível; se não fosse um ente extranatural, seria um enigma. Ou fosse pela auréola sinistra, que circundava-lhe o nome, ou porque fosse ela realmente um misto estranho de qualidades opostas, ao mesmo tempo que inspirava simpatia e amor, causava terror e repulsão.
No físico não havia a notar-se o menor senão; era uma beleza ideal. Somente a natureza caprichara em formar dela um tipo das mais estranhas combinações. Era de esbelto e garboso porte, de ademanes singelos, mas nobres e graciosos por natureza. Às vezes com os olhos úmidos e fagueiros, com um meigo sorriso na boca entreaberta, dava ao seu talhe de fada as lânguidas e suaves inflexões de uma bayadère; outras vezes alçando a fronte altiva sobre o colo firme e ereto, cerrado o lábio severo, o olhar fixo e cintilante parecia pitonisa inspirada a devassar com a mente os arcanos do porvir. Não poucas vezes também as pálpebras lhe descaíam lânguidas e melancólicas sobre a pupila desmaiada, e então era um anjo exilado chorando sobre a terra saudades do paraíso.
Os cabelos escuros eram bastos e macios como a seda, e ela os deixava debruçarem-se à vontade em redor dos alvos ombros em graciosas volutas, que se enleavam como arabescos de ébano em relevo sobre um vaso de alabastro. Quando se erguia em pé sobre a popa do lindo batel a balouçar-se sobre as vagas, ombros e braços nus, e a ligeira roupagem ondulando ao sopro das aragens, juraríeis ter visto Vênus surgindo das espumas do mar.
Mas era sobretudo nos olhos — nesses olhos verde-escuros de pupila negra —, que se concentrava como em um foco ardente todo o poder e magia da perigosa beldade. Se às vezes banhados em suaves eflúvios quebravam-se nos langores de vago devaneio, e astros de meiga luz faziam cismar de amor a quantos os viam, outras vezes revestindo-se de singular expressão de altivez e império despediam lampejos magnéticos capazes de subjugar e abater as mais orgulhosas frontes. Por isso ao lado do amor, que inspirava, incutia também certo terror vago, certa repulsão inexplicável. A força atrativa, porém, prevalecia e os mancebos que uma vez a viam, fitavam nela os olhos deslumbrados e não os retiravam, senão quando se ausentava. Ficava-lhes, porém, aquela imagem sedutora para sempre gravada na alma em traços ardentes, como se fossem burilados com estilete de fogo.
— Foi um flagelo — diziam os antigos — essa moça, que aqui apareceu e criou-se entre nós. Foi um monstro, que o mar arrancou dos abismos do inferno e arrojou nestas praias. Foi como uma epidemia que lavrou nestas paragens e nos roubou nossos mais belos e bem dispostos rapazes. Não sei que grande falta cometemos para merecermos do céu tão duro castigo!
As mães, que tinham filhos adultos, diziam-lhes de contínuo:
— Foge, meu filho, foge dessa mulher maldita…! Foge da filha do mar. A pobre Felisbina não soube que víbora acolheu em sua casa e aqui deixou entre nós para desgraça nossa e de nossos filhos! Antes a tivesse levado consigo! Não creias que aquilo é criatura de Deus; não, meu filho, aquilo é filha do demônio com alguma bruxa do mar; não está vendo as proezas e artes diabólicas que faz…? Quem é que jamais pôs o pé na ilha maldita, naqueles penedos excomungados, que lá não ficasse para sempre…? Entretanto ela vai e volta, quando lhe parece, e o certo é que essa ilha que de antes andava a boiar por toda a extensão dos mares, não se arreda mais de acolá, depois que essa víbora daninha aqui apareceu, e nem se arredará, enquanto ela aqui existir praticando malefícios; é o seu navio que ali está ancorado. Foge dele e dela, meu filho, como quem foge de Satanás. Ai de ti, se ela te põe os olhos malditos…!
Depois as velhas, para gravar bem fundo no espírito de seus filhos e netos o horror que queriam inspirar-lhes por essa mulher e esse lugar de maldição, começavam a contar-lhes histórias intermináveis da ilha nefanda, dos duendes, sereias e outros monstros e espíritos maléficos que nela habitavam desde tempos imemoriais. Não era, porém, de grande eficácia esse expediente; os temerosos contos não produziam senão passageira impressão no ânimo desses denodados e ardentes mancebos, criados no fragueiro ofício de pescadores em uma costa bravia, e avessados a todos os perigos e horrores do mar. Essa mesma proibição que lhes impunham era um estímulo demais para incitá-los a ver a fada incompreensível, cujas admiráveis prendas e maravilhosa beleza era assunto de inesgotável conversação em todos os serões. Ainda que tomados de certo receio e vagas apreensões, todos ansiavam por vê-la e, por mais que ela se esquivasse, procuravam todos os meios de encontrá-la, e uma vez postos os olhos naquela prodigiosa formosura, que deslumbrava como um sol e fascinava como serpente, lá se lhes ia a razão e a liberdade.
Quase todos os mancebos, os mais gentis e bem dispostos que por aquele tempo aqui existiam, caíram loucos de amor aos pés da peregrina e funesta beldade. Ela, porém, os repelia a todos ora com um gesto frio e desdenhoso, ora com motejos e sarcasmos, e sempre com o mais terminante inexorável desengano. Da chusma de seus adoradores, quase todos tiveram o mais lastimoso e miserando fim. Uns ficaram doidos varridos; alguns mais pacientes e resignados, procurando na ausência remédio a seus males, fugiram para bem longe e nunca mais apareceram; outros, sucumbindo aos pesares, se extinguiram lentamente nas garras do desalento e da melancolia. Não poucos se despedaçaram nas pontas dos rochedos, ou apagaram para sempre no seio das ondas o fogo que lhes devorava o coração.
E apesar de tantas catástrofes, que sem interrupção se sucediam umas às outras, a turba dos amantes não cessava de adejar em derredor da fatídica beleza, como um bando de mariposas doidejando em volta do lume fatal que tem de devorá-las.
Houve todavia um que, mais pertinaz e audacioso que todos os outros, porfiou longo tempo envidando os últimos esforços para ganhar aquele coração tão livre e indomável como o oceano, tão inacessível como as rochas da ilha maldita.
— Estás ouvindo, meu filho…? — perguntou o velho pescador ao seu jovem ouvinte, que dava mostras de não estar ouvindo coisa alguma.
Foi debalde chamá-lo; o bom velho teve de sacudi-lo fortemente para despertá-lo.
O rapaz, já aborrecido e fatigado de escutar uma tão longa e fastidiosa história, que até ali nenhum episódio, nenhuma peripécia interessante apresentara, dormia profundamente, e fazia muito bem.
E agora vejo que eu também já me ia esquecendo do tal pescador que contava história e de seu filho que a não escutava, e creio que o mesmo terá acontecido ao leitor. Portanto proponho e julgo melhor que daqui em diante nos esqueçamos inteiramente deles, e dispensemos a sua companhia para não termos o trabalho de estar a todo momento despertando o dorminhoco rapaz.
Ficaremos, pois, a sós eu e o leitor. Quando este tiver sono, o que não raras vezes lhe terá de acontecer no decurso desta nefasta e prolixa história, feche o livro, durma a seu gosto, e depois continue a leitura, se quiser, e quando quiser. Isto é mais simples e razoável.