A ilha maldita/VII

Wikisource, a biblioteca livre


Poucos anos depois que Regina arrojada à praia em uma noite de tormenta fora recolhida semimorta à cabana de Felisbina, os azares do mar trouxeram também às mesmas praias quatro novos hóspedes em condições não menos desfavoráveis.

Um grande navio, vindo da Espanha, trazia a seu bordo um velho fidalgo, que por crimes políticos fora exautorado de seus foros e condenado a desterro perpétuo nas possessões espanholas. Trazia consigo três filhos, três belos e vigorosos adolescentes, únicos restos de toda a sua família. Um tremendo temporal assaltou o navio, o qual depois de ter lutado em vão contra a fúria dos elementos soçobrou e foi a pique não longe da costa, em que se dão os acontecimentos desta história. O velho dotado de mais resolução e presença de espírito que o resto da tripulação, que se abandonara inteiramente ao pavor e ao desalento, lançou mão de um machado, e ajudado pelos três filhos que animava com as palavras e o exemplo, cortou o mastro grande e mais algumas pranchas, que lhes servissem de remos, e sobre este frágil refúgio atiraram-se os quatro à mercê das ondas, enquanto o navio desaparecia para sempre nos sorvedouros do oceano.

Depois de terem boiado longo tempo sem rumo e quase sem esperança, exaustos de fome, de sede e de fadiga, os náufragos conseguiram, enfim, arribar a essas praias, onde foram acolhidos pelos habitantes com a caridade e espírito hospitaleiro que lhes era usual. Convinha ao velho que tão cedo não se soubesse que ele e seus filhos tinham escapado ao naufrágio. Se os julgasse mortos, ficavam livres da vigilância e suspeitas na metrópole, e poderiam viver com liberdade e independência em qualquer parte do mundo. Demais esperava que para o futuro senão ele, que já ia muito avançado em anos, ao menos seus filhos poderiam voltar à pátria e reclamar seus títulos e foros perdidos e seus bens confiscados. Portanto julgou prudente ocultar seus nomes e títulos, assim como o nome e a procedência do navio em que viera, e todas as mais circunstâncias que pudessem revelar quem ele era, e qual o seu destino.

Instalados naquela costa, pai e filhos viram-se forçados a entregar-se à rude vida de pescadores — única indústria compatível com os recursos do lugar —, não só para terem de que subsistir, como para adquirirem algum pecúlio, com que pudessem se transportar para melhores lugares, quando se lhes oferecesse favorável ensejo. O pai acabrunhado mais pelos trabalhos e desgostos do que pela idade, faleceu poucos anos depois. Ao sentir próximo o termo de seus dias, deu longos conselhos e instruções a seus filhos, indicando-lhes qual devia ser o seu procedimento no futuro para reaverem a herança paterna, e, antes de cerrar para sempre os olhos, fê-los jurar sobre suas mãos frias e descarnadas que não descansariam um momento enquanto não se restabelecessem com todos os seus títulos, honras e haveres no antigo solar de seus maiores.

Os três filhos, jovens, inteligentes e ativos, graças ao seu vigor e trabalho incessante, prosperaram rapidamente e granjearam importância e consideração entre os habitantes do lugar. Decorreram alguns anos e já os três mancebos cheios de esperança e resolução se preparavam a partirem saudosos da praia hospitaleira, a que deviam como uma segunda existência, em demanda de outras plagas onde pudessem dar começo à execução dos projetos, que seu pai moribundo lhes insinuara quando a fatal beldade, o monstro encantador que infestava estas paragens, veio atravessar-se em seu caminho.

Como inevitavelmente teria de suceder, Rodrigo, o mais velho dos três irmãos, encontrou-se um dia com a formosa filha do mar, essa gentil barqueira, que inflamava todos os corações, essa facha fatal e consumidora, que fazia arder o juízo a todos os mancebos, queimando as asas a todas as esperanças. Já bastante prevenido contra as seduções da perigosa fatia, Rodrigo confiava demasiadamente em si, e estava intimamente convencido de que não havia mulher alguma, fada nem anjo, que pudesse lhe inspirar um amor capaz de distraí-lo de suas preocupações e desígnios no futuro. A cruel experiência bem cedo mostrou-lhe quanto se enganava. O ardente mancebo não pôde resistir ao mágico poder dos olhos fascinadores de Regina, e teve de pagar o comum tributo de adoração à cruel e encantadora tirana dos corações. Desde então o seu viver alterou-se profunda e completamente. A tela do futuro, onde seu audaz e ambicioso espírito havia delineado com largos e esplêndidos traços os mais brilhantes projetos, apagou-se inteiramente ante seus olhos, e até varreu-se-lhe da memória o sagrado e solene juramento que prestara sobre as mãos hirtas e geladas de seu pai agonizante. Desde então no mundo inteiro para ele só existia Regina, só nela pensava, só a ela procurava.

Seu barco balouçava ocioso amarrado à praia, enquanto ele vagava à toa pelos areais e rochedos da costa seguindo a pista da feiticeira que o fascinara. Seus irmãos em vão o esperavam, em vão o procuravam para se entregarem às ocupações cotidianas. Escondido entre rochas em algum recesso escuso, Rodrigo passava horas e horas a espiar a piroga de Regina, que vogava pelos mares ou a seguia em distância ao longo das praias, reputando-se feliz quando podia contemplá-la mesmo de longe; ou escondido ora nas moitas do matagal, ora no pino de um rochedo procurava ocasião de vê-la passar para poder por um instante pascer as vistas inflamadas e sequiosas nos inefáveis encantos de tão peregrina formosura.

— Que tens, Rodrigo, que há dias andas assim triste, esquivo e taciturno? — perguntou-lhe Roberto, seu irmão imediato. — Ah! Meu pobre irmão…! Está me parecendo que a maldita sereia já deitou-te seu mau-olhado.

— Não gracejes, meu bom irmão — retorquiu-lhe Rodrigo em tom grave e melancólico. — Disseste a pura e cruel verdade. Chegou a minha vez de ser sacrificado…! Estou louco de amores por essa fatal beleza, o que quer dizer: estou para sempre e irremediavelmente desgraçado…!

— Desgraçado…! Não digas tal…! Desgraçado por quê? Tu deliras, meu pobre irmão; isso não passa de uma fraqueza momentânea, um alucinação passageira, que em breve se dissipará…

— Não, meu irmão; provera a Deus, que assim o fosse…! É uma paixão profunda, ardente, inextinguível como todas, que essa mulher fatal costuma inspirar. Tu bem sabes que amar essa mulher é presságio infalível de desgraça e perdição; não ignoras a miseranda sorte de todos aqueles que têm tido a desventura de apaixonar-se por ela.

— Nesse caso, se essa paixão é inextinguível, se não podes bani-la de teu coração, trata de satisfazê-la. Uma vez satisfeita, ela se extinguirá por si mesma em vez de extinguir-te a ti, que nos és tão necessário para levarmos avante os planos que nosso pai nos traçou…

— Falas em satisfazê-la…?! Acaso não sabes quem é Regina… ?! Esse coração duro e inacessível como os rochedos da ilha maldita…! Não sabes quantas vítimas têm sido imoladas à sua bárbara indiferença…?

— Bem o sei; mas quem têm sido essas vítimas…? Por certo ainda não pensaste nisso.

Uns pobres e toscos pescadores, desasados e grosseiros no trato, mal-amanhados nas feições, no corpo e no trajo, uns amantes aparvalhados e em tudo próprios para fazerem recuar de tédio e de desdém uma linda e mimosa donzela, rica de encantos e prendas naturais, como dizem ser essa Regina.

— Então tu nunca a viste…?

— Eu nunca.

— Ah! É o que te vale, e pede ao céu que nunca a vejas. Já não me admiro de que fales dela com essa indiferença e sangue frio, como quem fala de uma moça qualquer.

— E o que mais pode ser ela…? Uma moça um tanto mais bonita que as outras, e que sabe cantar e remar admiravelmente, e nada mais. Mas como ia te dizendo, esses rudes barqueiros estão longe de possuir as tuas prendas, gentileza e galhardia; portanto não admira que ela do alto de sua formosura nem se dignasse de lançar um olhar de compaixão para a turba desses estultos adoradores que não sabiam amar e nem eram dignos de serem amados. Mas tu, meu irmão, tu, um gentil-homem com todos os encantos próprios para seduzir nobres damas da mais alta fidalguia, tu perdes a esperança de conquistar o coração de uma simples barqueira?!

— Como te enganas, Roberto…? Tanto caso faz ela de gentileza como de fidalguia, e esses pobres pescadores, que tanto deprimes, ao menos alguns deles não eram tão indignos, como pensas, do amor dessa mulher. Acredita-me, meu irmão, Regina ou é um anjo, que devemos adorar de longe e de joelhos ou um demônio de quem devemos fugir às léguas.

— Não creias nisso; é uma simples mulher de carne e osso como qualquer outra. Só faltava agora também que as ridículas historietas e crendices dessa gente rude e boçal viessem transtornar-te o entendimento…! Dize-me cá, meu irmão; já lhe falaste…? Já lhe declaraste teu amor…?

— Ainda não.

— Então de que te queixas…? Por que esmoreces tão depressa?

— Tem razão — respondeu Rodrigo reanimando-se depois de um momento de reflexão —; não tenho motivo ainda para desesperar.