A ilha maldita/VIII
Roberto bem via que jamais lhe seria possível extirpar do coração de seu irmão a fatal paixão que lhe inspirará a fada dos mares, e, portanto, longe de procurar dissipá-la com ponderações e conselhos sempre inúteis e descabidos em tais circunstâncias, julgou mais acertado empenhá-lo a prosseguir com novos esforços a conquista da cobiçada beleza; em seu orgulho e altivez de fidalgo pensava ser isso não só possível, como até de suma facilidade. Vendo seu irmão em risco de esquecer seus compromissos e faltar a um juramento sagrado, sentia cruéis angústias e inquietações.
— Uma paixão desgraçada e sem esperanças — pensava ele com muita razão — nos acabrunha e aniquila, nos inutiliza para tudo; mas um amor feliz e retribuído, quando não se extingue, ao menos arrefece, e nos deixa o espírito tranquilo e livre para cuidarmos de outros interesses.
Eis aqui com que intuito Roberto usou para com seu irmão da linguagem, que vimos no precedente capítulo. De feito, Rodrigo alentado de novas esperanças e cônscio de quanto se avantajava em prendas do espírito e do corpo a quantos até ali tinham requestado a formosa e insensível donzela, resolveu empregar novos e pertinazes esforços para ganhar-lhe o coração.
Vagando pelas praias arenosas dias inteiros, seguia as pegadas da fugitiva beldade, a qual adivinhando-lhe o intento o evitava cautelosa, como a tímida cerva se esquiva à perseguição do jaguar. Mas era embalde, o ardente e apaixonado mancebo achava sempre ensejo de atravessar-se em seu caminho, arrojava-se a seus pés e, com a eloquência animada e quente do fogo do coração, declarava-lhe todo o ardor da paixão que o consumia, e em vão lhe pedia uma palavra, um gesto, uma tênue esperança. A filha do mar parecia possuir um talismã que a preservava de toda e qualquer paixão; seu coração resistia ao embate das mais provocadoras seduções, como as rochas da ilha encantada resistiam ao choque perene das ondas enfurecidas.
Às palavras inflamadas do mancebo respondia ela sempre fria e severa, mas sem enfado, nem desdém:
— Perde seu tempo, moço; eu não sei e nunca hei de saber o que é amor. Meu único amor ali está — e com gesto altivo apontava para o oceano —; sou filha do mar; não tenho outro pai, nem outra mãe, e nunca hei de ter outro amor. O mar ó livre; meu coração também é e há de ser sempre livre como ele.
Ditas essas palavras, esquivava-se ligeira como um silfo aéreo deixando o mísero amante com o coração despedaçado de angústias, o orgulho esmagado, mordendo as mãos e arrancando os cabelos em contorções de desespero.
— Não! — pensou ele por fim depois de reiteradas tentativas, em que baldou súplicas e lágrimas, juras e protestos. — Não, não há de ser com palavras, mas sim com ações que devo mostrar-lhe que este amor que me devora é imenso, como esse mar que ela adora tanto, ardente como esse sol que nos queima.
Uma tarde, como era seu costume, Regina fez resvalar sua esguia e ligeira piroga sobre as vagas douradas pelos fulgores do sol no ocaso e ganhou o largo. Sentada à popa, abriu a branca vela ao sopro do terral, que a impelia com rapidez através das campinas ligeiramente encrespadas do oceano.
O vento brincava-lhe com os cabelos soltos, que refulgiam aos raios do sol poente, como serpentes de matizes cambiantes. Reclinada à popa, arrimava o braço nu e perfeitamente modelado à borda do barquinho, tendo a face encostada a uma das mãos, cujos dedos se embebiam como um pente de marfim entre os anéis escuros da opulenta madeixa, enquanto com a outra manejava o leme com admirável destreza e segurança. Os róseos reflexos do ocidente davam-lhe ao rosto, ao colo e aos braços descobertos uma transparência e matiz ideal. Se a vissem os gregos de outras eras, jurariam ter visto Anfitrite percorrendo os domínios de Netuno em sua concha de ouro e nácar arrastada por delfins.
Rodrigo, que escondido em distância tinha seu barco amarrado em um recesso da praia, e a contemplava, ou antes a devorava com a vista ansiosa, não pôde conter-se; soltou também o seu barco, e à força de remo e velas em breve se pôs no esteiro da gentil barqueira, que se atirava doidamente através das vagas encrespadas. A viração fresca que soprara de terra a impelia rapidamente para o largo, e as vagas, retouçando marulhosas em volta do pequeno batel, o cingiam de um velo de espumas, no meio das quais apenas se via o busto admirável de Regina à semelhança de gentil nereida brincando e saltitando à flor das ondas.
O audaz e resoluto mancebo por seu lado também impelia com todo o vigor o seu esguio e veleiro batel, que galgava as ondas umas após outras como poldro bravio vencendo aos saltos os rochedos de alpestre serrania.
— Quero falar-lhe de amor no meio das ondas — ia ele pensando consigo. — Esse mar, de quem ela se diz filha, talvez seja mais propício que a terra a meus amores. Minhas queixas, meus suspiros amorosos misturados ao ruído destas vagas, que tão grata harmonia tem a seus ouvidos, talvez despertem-lhe nos seios da alma benignos ecos, e lhe influam sentimentos de ternura e compaixão. O mar, que ela tanto ama, o mar deve ser o único confidente dos ardores, que me consomem.
Lançando os olhos pelo oceano, Rodrigo logo compreendeu que a temerária barqueira demandava resolutamente o rumo da ilha maldita; mas nem por isso se acovardou, nem arrepiou carreira, antes com mais ardor e denodo ainda prosseguiu sua derrota no encalço da fugitiva ondina.
— Que importa onde ela vai! — dizia ele consigo. — Segui-la-ei por toda parte… A sereia tem o seu ninho no mar; só quem ousar acompanhá-la até lá poderá ser digno dela. Segui-laei ainda que vá até os confins dos mares.
A piroga de Regina, porém, resvalando ligeira como a asa da gaivota, que apenas roça pela superfície das águas, conservava-se sempre à mesma distância e não se deixava apanhar. Rodrigo redobrou de esforços, e no fim de algum tempo conseguiu avizinhar-se do barco de Regina a ponto de poder ser ouvido.
— Regina…! Regina! — bradava ele com toda a força de seus pulmões. — Espera-me…! Escuta-me…! — Seus clamores perdiam-se sem resposta entre o frêmito das vagas, como os gritos do náufrago por mares ermos, implorando em vão socorro.