A ilha maldita/IX

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Rodrigo, jovem de alma sensível e romanesca, gostava de música e sabia muitas lindas e maviosas canções e barcarolas, que desde a infância aprendera com os barqueiros de Cádiz, sua terra natal. Lembrou-se, pois, de cantar e ver se por esse meio conseguiria atrair a atenção da esquiva ondina. Ela, que tanto se aprazia em encantar os ecos com os acentos de sua voz incomparável, não se dedignaria também de prestar ouvidos aos cantares dos outros, e talvez que, levados nas asas da harmonia as lástimas e queixumes de um amor desventurado, conseguissem ameigar-lhe algum tanto o frio e insensível coração. Portanto, com um timbre de voz valente e maviosa a um tempo, dominando o frêmito das vagas, começou a cantar as seguintes coplas:

Por que foges, branca fada
De formosura sem par?
Por que me escondes teu brilho
Formosa estrela do mar?
   Ronca em torno a tempestade,
   Meu barco vai soçobrar.

Só tu podes no meu peito
Uma esperança plantar;
E as tormentas que me cercam,
Com tua luz aplacar.
   Nestes medonhos abismos
   Não me deixes soçobrar.

Ferve o mar, o céu em chamas
Vem abismos aclarar;
Nestas águas desastrosas
Vai meu barco soçobrar,
   Vem salvar-me por piedade
   Formosa estrela do mar…!

Calou-se o mancebo, e após instantes ouviu os ecos de uma voz de mulher, voz pura, argentina, suavíssima, mas ao mesmo tempo de tão sonora vibração, que se fazia ouvir distintamente por entre o marulhar das ondas agitadas, e as brisas do mar levavam aos ouvidos de Rodrigo, moduladas com inefável melodia, as seguintes endechas:

Eu sou pérola das vagas,
Que não sei, nem quero amar;
O meu peito é como a rocha,
Onde em vão esbarra o mar.
   Mancebo, vai noutra parte
   Teus amores suspirar.

Do que existe sobre a terra,
Nada me pode encantar;
Só amo a Deus nas alturas,
E a liberdade no mar.
   Mancebo, vai noutra parte
   Teus amores suspirar.

E a voz da sereia, ondulando em puras e suaves modulações, enchia o espaço de indefinível encanto; as ondas pareciam bolear-se mais mansas, e as brisas como que amainavam seu sopro para não dispersarem os acentos de tão maviosa e enlevadora canção.

Rodrigo, deixando escapar o remo das mãos, escutava absorto os acentos desse inefável e estranho cantar, do qual cada nota lhe varava o coração como uma lâmina envenenada. Ao passo que o encanto dessa voz tão pura e suave parecia querê-lo arrebatar ao céu, as cruéis palavras que cantava lhe vertiam na alma todas as torturas do inferno. Nas asas de ouro da mais encantadora melodia, a fada implacável lhe mandava o fel do mais acerbo desengano.

E a piroga de Regina resvalava ligeira pela superfície dos mares, e o canto maviosíssimo se perdia ao longe entre o bramido das vagas, como os arrulhos da alcíone, que sobre o ninho flutuante diz adeus às praias, que abandona.

Rodrigo só despertou do cruel delíquio que o esmagava quando as ondas, balançando-se com violência, começaram a sacudir-lhe o batel em movimentos desencontrados. Procurou com os olhos a piroga de Regina, e a custo pode avistá-la balouçando-se horrivelmente entre os escarcéus medonhos, que rugem de contínuo, em torno dos cachopos da ilha maldita. Apenas por momentos divisava a branca vela, que se alçava tremendo sobre a crista de um vagalhão, como a grimpa de uma torre, para imediatamente sumir-se de chofre como engolida por um sorvedouro. Diante de seus olhos, a poucas amarras de distância, erguia-se a prumo a lisa e pavorosa penedia que circunda a ilha sinistra. Ali as ondas rebentando furiosas de encontro aos rochedos escarpados, que a cingem por todos os lados, se despedaçam e fervem entre horríssonos bramidos, como um bando de monstros marinhos, que porfiam por devorá-la.

Entretanto, a frágil e leviana piroga de Regina lá se ia costeando a pouca distância a horrenda penedia, e violentamente sacudida pelas vagas revoltas desse mar horrivelmente cavado, parecia a cada momento em risco de submergir-se nos abismos, ou despedaçar-se de encontro aos rígidos penedos.

Rodrigo estremeceu, e o coração gelou-se-lhe de susto ao encarar o eminente e tremendo perigo que ameaçava a fada de seus amores. Era para ele evidente que naqueles broncos e inacessíveis cachopos seria impossível um desembarque, e não podia compreender por que fatal loucura a temerária moça se afoitava a arrojar seu batel por tão temerosas e desastradas paragens, e persuadia-se que sua morte seria inevitável se alguém não corresse a socorrê-la.

“Salvá-la, ou morrer!”, foi o pensamento único do mancebo, a irrevogável resolução que tomou naquele instante supremo. Largou a todo pano, travou do remo e, com indomável vigor e resolução, atirou seu barco através dos escarcéus. Nunca mais, porém, pôde avistar nem vela, nem barco, nem Regina; tudo havia desaparecido no eterno e tempestuoso turbilhão que circundava a ilha. Desesperado e louco de raiva, Rodrigo tentou ainda esforços supremos para avizinhar-se dos penedos em direção ao lugar, onde havia perdido das vistas a piroga da fada inflexível. Queria ir também quebrar o seu batel de encontro aos penedos malditos e sepultar-se para sempre nas mesmas águas, que serviam de túmulo à Regina. Mas a despeito de vento favorável, que lhe enfunava rijamente o pano, a despeito do infatigável vigor e celeridade com que manobrava o remo, depois de algum tempo de inútil porfia, percebeu que não tinha avançado nem uma braça. Parecia que ou o seu barco se conservava imóvel, ou que a ilha fugia constantemente diante dele. Entretanto, coisa estupenda! Não obstante o pavoroso estampido da ressaca abalroando nas penedias, cuidou ouvir ainda os ecos maviosos de uma voz de mulher repetindo o mote execrável da odiosa canção:

Mancebo, vai noutras partes
Teus amores suspirar.

Por fim, exausto de forças e quase desfalecido, Rodrigo, entregue ao mais profundo e sombrio desalento, deixou-se cair no fundo do barco, que deixou ir à mercê dos ventos e das ondas… Assim vogou por longo tempo aturdido e aniquilado pela fadiga e pelo embate de tão dolorosas e pungentes impressões, e só deu acordo de si quando a proa de seu batel esbarrou encalhada nos areais da costa. A maré, que enchia, e os ventos, que sopravam ponteiros de sul a leste, o tinham trazido, sem que ele o sentisse, quase ao mesmo ponto, donde algumas horas antes havia partido no encalço da fatal beleza que o trazia fascinado!