A ilha maldita/X

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Já a noite ia avançada; Rodrigo saltou automaticamente fora da barca e, a passos indecisos, cambaleando como um ébrio, dirigiu-se para a casa. Seus irmãos, afeitos à suas longas e continuadas ausências, já dormiam; não quis despertá-los, e passou noite febril entre sonhos sinistros e angustiosas vigílias. Tinha como certa a morte de Regina; essa gentil inimiga, a quem tanto adorava, havia sucumbido a seus olhos devorada por esse traidor oceano, que ela amava tanto, e ele não pudera salvá-la, nem oferecer-lhe o mínimo socorro…! Entretanto era ele o único responsável por tamanha desgraça, ele, que com suas loucas e importunas perseguições, a tinha forçado a arrojar-se desatinadamente por aqueles mares revoltos, onde em cada vaga a morte rugia ameaçadora. Este horrível pensamento escaldava o cérebro ao mancebo, e ralhava-lhe o coração, até que a fadiga lhe vinha cerrar os olhos em um sono febril e agitado. Então Regina lhe aparecia náufraga lutando sobre as ondas em ânsias de desespero, e estendendo-lhe os braços convulsos a pedir socorro; mas ele, pregado em seu barco imóvel, fazia em vão desesperados esforços para correr a salvá-la; seus membros inertes e pesados como chumbo não queriam mover-se e parecia terem-se petrificado. Depois a ia encontrar morta estendida sobre a praia, hirta e gelada, extinta a luz nos olhos vidrados, lívidos e mudos para sempre aqueles lábios formosos, donde se desprendiam tão doces canções e sorrisos fascinadores. Afrontado então de horrível pesadelo, acordava, saltava do leito hirto e a tremer, os cabelos a pino, a fronte banhada em suor gélido. Ah! A realidade surgia então em seu espírito, tão medonho como esse sonho, que não fora mais que um reflexo da verdade. Só faltava ter diante dos olhos o cadáver de Regina, o qual estava certo que ao romper do dia iria encontrar estirado na praia tal qual o tinha visto em sonho, e novas e mais pungentes angústias vinham ralhar-lhe o coração.

De novo adormecia em um febril letargo, e sonhava que havia salvado das ondas a moça semimorta, e a recolhera em seu barco, donde ela, recobrando os sentidos com um meigo sorriso, o apertava nos braços e, entre carícias e beijos, lhe protestava eterno amor. Acordava, e caía precípite do ápice do mais delicioso sonho aos abismos da mais cruel realidade, como os anjos rebeldes fulminados pela cólera de Deus outrora haviam caído de chofre dos esplendores do empíreo no reino da dor e da escuridão eterna.

Apenas os primeiros clarões da nascente aurora penetraram pelas fendas de sua habitação, Rodrigo saiu para a praia e começou a percorrê-la. Esperava deparar com o cadáver de Regina arrojado à praia, ou pelo menos os destroços de seu batel boiando sobre os mares. Nem uma, nem outra coisa avistou. A manhã estava esplêndida e serena; o mar bonançoso arfava em lânguidos balanços pelas alvas areias do litoral, e ao longe no horizonte luminoso surdia de entre um anel de brilhantes espumas a massa escura da ilha malsinada, como ametista encravada entre folhados de prata.

Rodrigo esteve por longo tempo a pairar as vistas inquietas já pelos longos areais da praia, já pelas solitárias e infindas planícies do oceano, sem avistar coisa alguma que pusesse termo a suas incertezas e ansiedades. Enfim divisou uma branca velinha, que mal bruxuleava no horizonte e que, fronteando com a ilha maldita, singrava rapidamente com direção à costa; o coração pulou-lhe sobressaltado. Daquele lado e a tais horas qual outro batel poderia partir senão o de Regina…? Cravou nele os olhos e esperou longo tempo; antes, porém, que pudesse reconhecê-lo, Rodrigo ouviu distintamente com surpresa e assombro uma argentina e sonorosa voz de mulher, que entoava ainda aquele estribilho fatídico tão odioso a seus ouvidos:

Mancebo, vai noutra parte
Teus amores suspirar.

Já não podia haver dúvida; era Regina; era a inconcebível fada dos mares que lá vinha viva e ilesa em seu barquinho aventureiro.

Rodrigo, que então formara o propósito inabalável de disputá-la viva ou morta ao oceano, ou para sempre submergir-se com ela nessas ondas malditas, onde a julgava sepultada, sentiu ao avistá-la súbita alegria alvoroçar-lhe o coração; mas foi apenas um lampejo fugaz como o relâmpago, que alumia as trevas para torná-las de chofre mais medonhas e profundas. Nas melodiosas notas da canção fatídica chegavam-lhe aos ouvidos os ecos lúgubres de sua condenação.

— E portanto ela vive! — murmurou soluçando o desventurado mancebo. — E com ela revivem os meus tormentos de todos os dias…! Ela vive para continuar a zombar de meu amor, como zomba dos temporais, e dos cachopos de sua ilha abominável…! Folga e ri com as tempestades do mar; folga e ri também com as tormentas, que concita no coração dos homens. Ah! É bem certo o que dizem; não é uma mulher; é uma filha das trevas, uma fada malfazeja; é o gênio do mal que, na figura de um anjo, veio ao mundo para torturar os corações. Sou uma de suas vítimas, a sentença é irrevogável, tenho de morrer por ela!

Poucas horas depois, Rodrigo dizia a seu irmão Roberto, confidente único de seus mal-aventurados amores:

— Roberto, meu caro irmão, estou irrevogavelmente condenado…! Apagou-se minha última esperança, e no futuro só vejo angústias, desespero e morte. Já tenho a morte na alma; o corpo em breve também sucumbirá. Eu deveria despedaçá-lo aos olhos desse ídolo feroz; seria para ela um prazer indefinível banhar-lhe os pés no sangue de sua vítima…! Mas não, não quero dar-lhe mais esse regozijo… irei para bem longe matar-me, ou finar-me lentamente entregue à angústia e à desesperação.

— Que lastimosa e fatal fraqueza entrou-te pelo coração, meu pobre irmão! — replicou Roberto. — Por uma simples barqueira que não tem outros merecimentos mais que a beleza e a mocidade, desprezas um futuro brilhante, esqueces um juramento…

— Basta, Roberto, basta — interrompeu o moço com voz suplicante —, bem sei o que me vais exprobrar. Poupa-me esse desgosto. Que hei de eu fazer…? Uma força sobrenatural, um poder inflexível e tirânico, a que não posso resistir, escravizou minha vontade. Acredita-me, Roberto, essa mulher verte dos olhos malditos um eflúvio satânico que enerva e envenena os corações e quebranta as mais poderosas energias. Ela tem em seu poder minha alma e minha vida, e é desejo dela perder minha alma e arrancar-me a vida. Foge de mim, Roberto, estou perdido, sou um prescrito…! Foge dela também; não creias que é uma mulher, não…! É o espírito das trevas que se encarnou naquela figura de maravilhosa beleza para arrojar-nos no abismo da eterna perdição!

Oh, Regina…! Regina…! Tu que podias ser um anjo para nos abrir as portas do céu, por que te convertes em fúria para nos levar ao inferno?!

Pronunciando estas frases com voz convulsa e rouca, as feições transtornadas, os lábios espumantes, desvairado e em fogo o olhar, Rodrigo parecia um possesso atormentado pelo espírito do mal. Roberto olhava consternado para seu irmão e, abalado pela mais profunda comiseração, não sabia o que dizer-lhe.

— Que desgraça, meu irmão…! Que fatal cegueira! — exclamou, enfim, depois de largo silêncio. — Um moço, como tu és, ágil, valente, cheio de prendas e galhardia, raça de ilustres e esforçados fidalgos, tu te resignares a morrer ignobilmente por amor de uma obscura mulher, só porque é bonita e sabe volver um leme e entoar bem uma cantiga?!

Valha-te Deus, meu irmão…! Pois faltam mulheres bonitas neste mundo…?

— Certo que não, mas aquela, Roberto, aquela não é uma mulher, é uma fada, um anjo, uma sereia, um demônio, um misto monstruoso de tudo quanto há de formoso, celeste e adorável, e de tudo quanto há de abominável e infernal. Eu parto, meu irmão, não sei para onde, o ar destas paragens me abafa e me envenena as entranhas. Se eu não voltar dentro de um ano, fica certo que nunca mais verás sobre a terra teu desgraçado irmão.